Informativo: 633 do STJ – Direito Penal
Resumo: Somente pode ser agente ativo do crime de tortura-castigo (art. 1º, II, da Lei n. 9.455/1997) aquele que detiver outra pessoa sob sua guarda, poder ou autoridade (crime próprio).
Comentários:
O art. 1º da Lei 9.455/97 pune a tortura em dois incisos. O inciso I tipifica a denominada tortura-prova (alínea a); a tortura para a prática de crime (alínea b); e a tortura discriminatória (alínea c). Já o inciso II trata da tortura-castigo, consistente em submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.
Como ensina a doutrina, a segunda figura criminosa, ao contrário da anterior, é própria, exigindo qualidade ou condição especial do agente, qual seja, a presença de uma prévia relação jurídica entre o torturador e a vítima. O sujeito ativo, aqui, se encontra na posição de garante (pela lei ou outra relação jurídica), razão por que só pode praticar o delito quem tem a guarda (de direito ou de fato) ou quem exerce vigilância, poder (de direito público ou privado) ou autoridade sobre o torturado.
No julgamento do REsp 1.738.264/DF (j. 23/08/2018), o STJ confirmou a necessidade de que o agente ostente a qualidade de garante para que cometa a tortura-castigo.
No caso julgado, dois indivíduos haviam sido condenados em primeira instância por terem submetido uma pessoa a intenso sofrimento físico para aplicar castigo pessoal e para constrangê-la a devolver determinada quantia em dinheiro a um dos agentes. A condenação foi mantida em sede de apelação, mas, nos embargos infringentes, o Tribunal de Justiça desclassificou a tortura para lesão corporal porque a conduta perpetrada não se subsumia a nenhum dos incisos do art. 1º da Lei 9.455/97: não havia, com efeito, as finalidades nem o motivo que caracterizam o inciso I, tampouco a qualidade especial dos sujeitos ativos necessária para a caracterização do inciso II, dispositivo no qual se baseara a condenação.
O Ministério Público interpôs recurso especial para reverter a desclassificação imposta em sede de embargos. Neste recurso a controvérsia se assentou na extensão que se poderia conferir à expressão guarda, poder ou autoridade contida no inciso II.
Para o ministro Rogério Schietti Cruz – que deu provimento ao recurso ministerial, mas foi vencido –, a referida expressão deve ser tomada em sentido amplo. Especialmente quando se trata de exercício de poder, não há necessidade de que seja um poder formal, bastando que se verifique, na prática, o tolhimento da liberdade de ir e vir, como ocorreu no caso julgado:
“Então, vejo como uma questão de interpretar o que significa a vítima “estar sob a guarda, o poder ou a autoridade” de outrem. Podem ser autores do crime mesmo os particulares – e não só agentes públicos – como na presente situação, em que mantiveram a vítima sob o seu poder, sem lhe permitir livremente ir e vir, e após a tentativa, por meio de coação voltada a obter o que eles consideravam até uma providência justa – o ressarcimento por um serviço não prestado pela vítima – eles passaram a empregar meios cruéis de tortura, a saber, pimenta nos olhos, jogar thinner na região genital, o que já ultrapassava, digamos assim, os limites de algum ato que pudesse configurar o aventado exercício arbitrário das próprias razões. Assinalo que esta ação cruel já foi perpetrada em um momento posterior àquele em que não havia mais como ressarcir o prejuízo referido pelos agentes da tortura, tendo sido apenas um modo de castigar a vítima por não lhes haver ressarcido o valor gasto.
E, portanto, pareceu-me ser inequivocamente um ato de tortura, castigo, uma forma de impingir sofrimento cruel a alguém pelo fato de ser um inadimplente de uma dívida.”
Já o ministro Antonio Saldanha Palheiro considerou que é preciso demonstrar uma relação preexistente de poder entre o autor e a vítima, isto é, a existência da subordinação deve criar as condições para que alguém submeta outra pessoa a intenso sofrimento físico como forma de aplicar castigo pessoal. No caso julgado, a subordinação foi criada no próprio contexto da ação criminosa para que fosse possível praticá-la, o que não é suficiente para caracterizar a tortura:
“Todavia, como dito, somente o jugo derivado de vinculação – jurídica ou de fato – pré-estabelecida é que se adequa à definição de poder e de autoridade citadas no inciso II do art. 1º da Lei de Tortura, e entender o contrário vulgarizaria o conceito de soberania ao qual a norma se refere e fatalmente banalizaria o próprio crime em testilha.
Desse modo, os réus não podem ser considerados sujeitos ativos do crime de tortura, na hipótese, pois a submissão que exerceram sobre a vítima derivou da própria ação criminosa e não de vínculo de subordinação anteriormente firmado.”
Além disso, o ministro considerou que a ação criminosa não teve por finalidade a imposição de castigo pessoal, mas sim o recebimento de quantia em dinheiro, outra circunstância que descaracteriza o crime.
No mesmo sentido foi o voto do relator Sebastião Reis Junior, para quem a figura do inciso II pode ser praticada por particulares, desde que haja uma relação jurídica preexistente de natureza pública da qual emane a qualidade de garante:
“Nítido, pois, que, no referido preceito, há um vínculo preexistente, de natureza pública, entre o agente ativo e o agente passivo do crime. Logo, o delito até pode ser perpetrado por um particular, mas ele deve ocupar posição de garante (obrigação de cuidado, proteção ou vigilância), seja em virtude da lei ou de outra relação jurídica.
(…)
Ampliar o âmbito normativo, de forma a admitir que o crime possa ser perpetrado por particular que não ocupe a posição de garante, seja em decorrência da lei ou por prévia relação jurídica, parece-me uma interpretação desarrazoada e desproporcional, não consentânea com os instrumentos internacionais que tratam da tortura.”
Em razão disso, o recurso foi improvido, mantendo-se a desclassificação da conduta imposta em segunda instância.
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