A Lei 11.340/06, denominada Lei Maria da Penha, constitui ferramenta essencial de combate à violência contra a mulher. Esta legislação traz importantes mecanismos para evitar a violência que ocorre no âmbito doméstico, familiar e nas relações de afeto.
Apesar de ser uma lei ainda nova, isto é, tendo origem em 2006, trata-se de diploma que vem sofrendo relevantes alterações legislativas que visam conferir maior proteção à mulher. Uma dessas alterações foi a trazida pela Lei 13.882/2019, que inseriu no art. 23, inciso V, a medida protetiva de urgência de “determinar a matrícula dos dependentes da ofendida em instituição de educação básica mais próxima do seu domicílio, ou a transferência deles para essa instituição, independentemente da existência de vaga.”
Destaca-se que esta medida protetiva não é endereçada ao agressor da mulher, mas sim ao responsável pela matrícula no estabelecimento institucional de educação básica. Interessante a alteração legislativa mencionada, pois traz em seu texto elementos que permitem trazer o real alcance da lei, isto é, a intenção do legislador ao criar a referida medida protetiva.
Adentrando aos detalhes do dispositivo, inicialmente, faz-se interessante saber qual seria o sentido da expressão “dependentes”, e neste caso deve-se conferir o sentido mais amplo possível, de modo que o alcance não se dê apenas aos filhos biológicos, mas que inclua também os filhos socio afetivos, os enteados, e aqueles que estão, inclusive, sob sua guarda de fato, tutela ou curatela, pois todos eles são dependentes em sentido lato sensu.
Por outro lado, ao se interpretar a terminologia “instituição de educação básica”, faz-se necessário recorrer à literalidade da Lei. 9.394/96, conhecida por Lei de Diretrizes Básicas da Educação Nacional, que logo em seu art. 4º diz que a educação básica constitui um dever do Estado e deve ser obrigatória e gratuita dos 04 (quatro) aos 17 (dezessete) anos, organizando-se em pré-escola, ensino fundamental e médio.
Assim, ao se analisar a referida terminologia, não há margem para interpretação ampliativa no sentido de abranger dependentes menores de 17 (dezessete) anos que estejam cursando o ensino superior, ainda que estejam cursando os primeiros semestres do curso, pois o ensino superior não integra a educação básica. Todavia, admite-se o possível raciocínio no sentido de admitir a medida protetiva quando o dependente possui idade superior a 17 (dezessete) anos e esteja cursando a educação básica. Este ponto é interessante, pois apesar de a Lei 9.394/96 afirmar que constitui obrigação estatal providenciar a educação básica gratuita àqueles que possuem entre 04 (quatro) e 17 (dezessete) anos, isto não quer dizer que não seria possível proteger o dependente da vítima de violência doméstica que possua idade superior a 17 (dezessete) anos e curse a educação básica, porque o que o legislador quis trazer foi a obrigatoriedade e a gratuidade da educação básica àqueles que se encontram dentro da idade estabelecida, e não um fator limitador etário para o ingresso na educação básica.
Já a análise do termo “domicílio” deve ser a prevista no Código Civil, tendo em vista este diploma trazer em seu art. 70 e seguintes regras gerais do conceito de domicílio. Diz o Código que constitui domicílio da pessoa natural o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo. Aqui, sem dúvidas, o domicílio da vítima de violência doméstica e familiar seria o local onde ela estabelece como o de suas principais atividades, o ambiente onde cuida de seus dependentes ou que utiliza para receber visitas de parentes, amigos, bem como utiliza como ambiente para descanso após o exercício de suas atividades laborais.
Observa-se que na educação básica, conforme lições de Lauro Ribeiro em sua obra de autoria coletiva denominada Interesses Difusos e Coletivos vol. II, “a responsabilidade – e os respectivos encargos – pela educação é comum e compartilhada entre a União, Estados, o Distrito Federal e os Municípios”. Segundo a Constituição Federal, os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil, enquanto os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio.
Nesse diapasão, questiona-se, a quem seria direcionado o cumprimento da medida protetiva de matrícula do dependente da vítima de violência doméstica? Trata-se de um ponto interessante, pois, em tese, a responsabilidade seria daquele que possui o poder de efetuar ou deferir a matrícula, e “a priori”, possui essa incumbência o diretor da escola na maioria dos regimentos internos escolares.
Vale destacar que a efetivação da matrícula deve ocorrer, independentemente de existir ou não a vaga para o dependente da vítima de violência doméstica e familiar, isto quer dizer que não há dilação para discussão quanto à reserva do possível, argumento comumente utilizado pelo Poder Público para se justificar da impossibilidade de cumprimento de determinada decisão judicial sob o argumento de ausência de orçamento disponível ou até mesmo estrutura física para comportar um determinado número de alunos dentro de sala de aula, como no caso em tela.
A discussão desse ponto é interessante, pois como se sabe hoje há delito específico na própria Lei Maria da Penha, que é o de descumprimento de medida protetiva de urgência, delito este que está tipificado no art. 24-A. O tipo penal em espécie surgiu justamente porque antes se tinha discussão da possibilidade ou não de aplicação do delito de desobediência caso o agressor descumprisse medidas protetivas impostas pelo Juiz de Direito. A jurisprudência, antes do surgimento do art. 24-A, direcionava-se no sentido de não admitir a possibilidade de aplicação do delito de desobediência em eventual descumprimento de medida protetiva, pois não havia previsão específica na Lei Maria da Penha. Assim, com o intuito de suprir a ausência de delito e visando conferir maior proteção à vítima surgiu o delito de descumprimento de medida protetiva de urgência que compôs o texto da Lei. 11.340/06, constituindo, hoje, o único delito previsto no diploma legal.
Sem dúvidas, ao inserir a nova medida protetiva de urgência, havendo o seu descumprimento, seria sujeito ativo do delito aquele que tem a incumbência legal de matricular o dependente da vítima de violência doméstica e familiar. O raciocínio é simples, pois não teria sentido algum não penalizar aquele que descumpre ao bel prazer decisão judicial que determina a matrícula, deixando o dependente da vítima de violência doméstica e familiar sem frequentar a escola ou frequentando escola em local distante do domicílio da vítima, fazendo com que esta seja novamente vítima, mas desta vez do sistema de ensino, ao não ver seu filho frequentar o ambiente escolar. Vale ressalvar, no entanto, que o delito somente pode ser praticado na forma dolosa, então imprescindível se faz uma análise a respeito do possível dolo do agente que não deferiu a matrícula, porquanto não se admite o delito de descumprimento de medida protetiva caso o ato tenha ocorrido na modalidade culposa, seja por negligência ou imprudência do diretor escolar.
Assim, no que diz respeito à responsabilidade legal pelo efetivo cumprimento da medida protetiva, deve-se frisar que a decisão judicial deve direcionar a determinação do cumprimento ao responsável pelo seu devido cumprimento, que no caso em tela, via de regra, seria o diretor escolar. A especificação na decisão judicial se faz necessária, pois o eventual descumprimento, como vimos, poderá fazer surgir o delito previsto no art. 24-A, e como o Direito Penal não admite a responsabilização objetiva, faz-se imprescindível que o responsável em efetuar a matrícula do dependente da vítima de violência doméstica possua conhecimento do teor da decisão, e que seu eventual descumprimento poderá lhe trazer a responsabilização pelo delito previsto na Lei 11.340/06.
Feitas todas essas considerações acima, vale salientar que o presente trabalho tem por intuito trazer esclarecimentos quanto à alteração legislativa promovida pela Lei 13.882/19, aprofundando especificamente no que diz respeito ao delito de descumprimento de decisão judicial que determina a medida protetiva pela não efetivação de matrícula em ensino de educação básica do(s) dependente(s) de vítima de violência doméstica e familiar em razão de violência de gênero.
Referências bibliográficas
1-Masson, Cleber. Interesses difusos e coletivos, volume 2/ Adriano Andrade …. [et. Al.]. 1- ed. – Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2018.
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3-Lei 11.340/06. Lei Maria da Penha. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20042006/2006/lei/l11340.htm Acesso em: 25 out. 2019.
4-Lei 13.882/19. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20192022/2019/Lei/L13882.htm#art2 Acesso em: 25 out. 2019.
5- Lei 9.394/96. Lei de Diretrizes e Base da Educação Brasileira. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm Acesso em: 25 out. 2019.
6- Lei 10.406/02. Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm Acesso em: 25 out. 2019.