A igualdade substancial é algo relativamente recente nas preocupações jurídicas, é algo que não integrava o quadro de conceitos tradicionais da responsabilidade civil. Durante o século XIX e boa parte do século XX, o direito civil orgulhava-se do rigor formal dos seus conceitos, em sistema logicamente impecável. Porém, paralelamente aos encadeamentos lógicos dos juristas, os poderes privados eram – e, de certo modo, ainda são – marcados por forte carga despótica. O marido sobrepunha-se, social e juridicamente, à mulher; o pai sobrepunha-se ao filho; os empregadores a seus empregados. A igualdade material não inspirava os códigos civis. Os códigos civis clássicos não se preocupavam com esses desníveis de poder privado. Pelo contrário: os códigos civis costumavam consagrar as desigualdades. Padrões de comportamento preconceituosos se repetiam, e a lei os incentivava.
Hoje, porém, a situação se desenha de modo diverso.
Nossos dias são marcados por amplo pluralismo, com muitos e distintos interesses interagindo (às vezes de modo conflituoso) na esfera social. Isso, de certo modo, explica a heterogeneidade de valores e princípios acolhidos na Constituição da República. Temos uma Constituição pluralista – como a sociedade que ela busca reger – que tem, entre outros objetivos, a proteção da dignidade humana e a redução das desigualdades sociais. Pontes de Miranda lembrava que a liberdade de contratar praticamente se traduzia, no direito clássico, na liberdade para os mais fortes de impor sua vontade aos mais fracos. A igualdade substancial ou material, por exemplo, atua nesse campo, buscando diminuir as desigualdades, evitando relações jurídicas injustamente assimétricas.
O princípio do equilíbrio material entre as prestações, cuja base normativa é o art. 3º, III, CF/88, impõe um contínuo acompanhamento da relação contratual, verificando, caso a caso, a existência de desigualdades reais que exijam correção (aliás, a verificação de validade dos contratos deslocou-se do momento de formação do vínculo para, além dele, espalhar-se pelos momentos posteriores à contratação). Nesse sentido Teresa Negreiros destaca que “um contrato livremente pactuado pode ser, não obstante, um contrato injusto e, nesta medida, pode ser revisto, modificado judicialmente ou mesmo integralmente rescindido: à ênfase na liberdade sucede a ênfase na paridade”.
Podemos resumir a questão atualmente do seguinte modo: quanto maior a desigualdade fática entre as partes, menor é o peso da argumentação ligada à autonomia da vontade, e maior é o peso da argumentação ligada aos direitos fundamentais.
Nem tudo porém é avanço. Certas situações de desequiparação talvez não estejam sendo sequer percebidas, embora cristalizadas na prática jurisprudencial brasileira. Há, na jurisprudência brasileira, uma compreensão restrita acerca dos riscos, pelo menos de certos riscos (diante de certas vítimas, de certas situações). Por exemplo, o que o STJ tem dito, até agora – esperamos que isso mude – é que os usuários de transporte público não têm direito à segurança, mas os usuários dos shoppings (e de seus estacionamentos) têm. No primeiro caso, o assalto não gera consequência jurídica alguma (sob o ângulo da responsabilidade civil – nem das empresas de transporte, nem do Estado). Já no segundo caso, o shopping responderá pelos danos (morais, materiais e estéticos). Há, sem dúvida, um desnível de proteção, escalas diferenciadas relativamente ao que podem esperar do direito de danos os usuários de transporte público e os usuários de shopping centers (lembremos, aliás, que ambos são consumidores, à luz do Código de Defesa do Consumidor).
Convém destacar a firme posição da jurisprudência atual no sentido de repudiar que as empresas de transporte público possam responder pelos danos sofridos pelos passageiros em assaltos. Já em relação aos shoppings, o entendimento é diverso: “Na esteira do entendimento mantido por esta Corte, a responsabilidade civil do shopping center no caso de danos causados à integridade física dos consumidores ou aos seus bens não pode ser afastada sob a alegação de caso fortuito ou força maior, pois a prestação de segurança devida por este tipo de estabelecimento é inerente à atividade comercial exercida por ele” (STJ, AgRg no REsp 1.487.443). De modo semelhante: “Nos termos da orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, o roubo à mão armada ocorrido nas dependências de estacionamento mantido por estabelecimento comercial não configura caso fortuito apto a afastar o dever de indenizar” (STJ, AgRg no AREsp 840.534). Já os assaltos em ônibus, quaisquer que sejam, não geram o dever de indenizar – nem das empresas de transporte, nem do Estado, segundo nossa pacífica jurisprudência.
E não é só na dimensão patrimonial que a igualdade tem (importantes) reflexos, mas também na dimensão existencial. A Constituição nos assegura amplo espaço de escolha nas opções íntimas, existenciais. Todos têm liberdade existencial de escolher a entidade familiar que melhor realize suas opções individuais (e há igualdade entre as entidades familiares, não podendo o legislador definir essa ou aquela como sendo a melhor). As experiências sociais, explícitas ou veladas, de desigualdade e discriminação, exigem que superemos o prisma de asseguramento formal de direitos (podemos, aliás, observar, em vários países, uma progressiva luta pela implementação da igualdade substancial). Nesse contexto, os direitos humanos abarcam também uma ideia de diferença. O reconhecimento da diferença traz ao menos três implicações para a configuração de direitos: a) o reconhecimento de iguais direitos na diferença; b) o reconhecimento de direitos específicos; c) o reconhecimento da diversidade como um valor.
Ainda a propósito da igualdade – e de suas conexões normativas com a dignidade – convém frisar que a igualdade, hoje, é encarada sob uma perspectiva concreta e não apenas abstrata. Nossa Constituição tem como objetivos fundamentais construir uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I), garantir o desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, II), erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (CF, art. 3º, III), promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CF, art. 3º, IV). A descrição da norma constitucional permite perceber que a igualdade aí consagrada é substancial (e não apenas a formal). Convém lembrar que a igualdade substancial, no Brasil, não é um dado de realidade, é um objetivo a ser buscado e construído. E a igualdade não se restringe à proibição de exclusão. Igualdade é também obrigação de inclusão. É sempre relevante investigar em que medida as diferenças estão se convertendo em desigualdades.
Tudo o que, brevemente, dissemos aqui, tem repercussões profundas na responsabilidade civil atual. Ela não é regida apenas por regras jurídicas, mas fundamentalmente por princípios. E as soluções que encontra, em inúmeros casos concretos, muitas vezes leva em conta a desigualdade existente entre o ofensor e a vítima, o que pode ser um fator para que os danos ocorram, ou assumam cores mais graves. Atualmente, por certo, já não nos satisfaz consagrações apenas formais de direitos.
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