8) Os fatos que justificam a prisão preventiva devem ser contemporâneos à decisão que a decreta.
A prisão preventiva se justifica, nos termos do art. 312 do CPP, como forma de preservação da ordem pública e econômica, por conveniência da instrução criminal e como garantia da futura aplicação da lei penal. Como aponta Antônio Magalhães Gomes Filho, “na técnica processual, as providências cautelares constituem os instrumentos através dos quais se obtém a antecipação dos efeitos de um futuro provimento definitivo, exatamente com o objetivo de assegurar os meios para que esse mesmo provimento definitivo possa ser conseguido e, principalmente, possa ser eficaz” (Presunção de Inocência e prisão cautelar. São Paulo, Saraiva, 1991, p. 53). Tem, portanto, inegável caráter de prisão cautelar de natureza processual e, por conta disso, deve preencher os requisitos típicos de toda e qualquer medida cautelar, a saber, o fumus boni iuris e o periculum in mora.
O perigo da demora se revela exatamente pela necessidade de se adotarem medidas de pronto, ante o risco causado por eventual demora, existente, por exemplo, na concreta possibilidade de fuga, de modo a frustrar a futura aplicação da lei penal. Diz-se que o correto seria falar periculum libertatis, isto é, o perigo que a condição de liberdade do agente, enquanto solto, possa acarretar à sociedade.
Só é possível considerar preenchido este requisito se o fato utilizado como fundamento para a prisão é contemporâneo à decretação. Do contrário, desaparecem as circunstâncias excepcionais que podem justificar a custódia cautelar, que perde seu caráter de urgência:
“1. A prisão preventiva possui natureza excepcional, sempre sujeita a reavaliação, de modo que a decisão judicial que a impõe ou a mantém, para compatibilizar-se com a presunção de não culpabilidade e com o Estado Democrático de Direito – o qual se ocupa de proteger tanto a liberdade individual quanto a segurança e a paz públicas –, deve ser suficientemente motivada, com indicação concreta das razões fáticas e jurídicas que justificam a cautela, nos termos dos arts. 312, 313 e 282, I e II, do Código de Processo Penal. 2. A jurisprudência desta Corte Superior é firme em assinalar que a urgência intrínseca às cautelares exige a contemporaneidade dos fatos justificadores dos riscos que se pretende evitar com a segregação processual. 3. O Juiz sentenciante, mais de dois anos após os delitos, decretou a custódia provisória do réu, sem indicar fatos novos para evidenciar que ele, durante o longo período em que permaneceu solto, colocou em risco a ordem pública ou a instrução criminal. 4. A prevalecer a argumentação da decisão, todos os crimes de natureza grave ensejariam o aprisionamento cautelar de seus respectivos autores em qualquer tempo, o que não se coaduna com a excepcionalidade da prisão preventiva, princípio que há de ser observado para a convivência harmônica da cautela pessoal extrema com a presunção de não culpabilidade. 5. Ordem concedida para, confirmada a liminar anteriormente deferida, cassar a decisão que decretou a prisão preventiva, ressalvada a possibilidade de nova decretação da custódia cautelar caso efetivamente demonstrada a sua necessidade, sem prejuízo de fixação de medida alternativa, nos termos do art. 319 do CPP. Extensão dos efeitos aos corréus presos pela mesma decisão.” (HC 509.878/SP, j. 05/09/2019)
9) A alusão genérica sobre a gravidade do delito, o clamor público ou a comoção social não constituem fundamentação idônea a autorizar a prisão preventiva.
Esta tese vem na esteira de milhares de decisões nas quais prisões preventivas são revertidas porque as decretações se baseiam em simples alusões aos fundamentos elencados no Código de Processo Penal, à pena cominada ao crime e à repercussão de sua prática. Atualmente, é orientação unânime dos tribunais superiores que os fundamentos da prisão preventiva e outros elementos de caráter abstrato devem ser cotejados com dados concretos que indiquem a necessidade de encarcerar determinado indivíduo antes da formação definitiva da culpa:
“2. As prisões cautelares materializam-se como exceção às regras constitucionais e, como tal, sua incidência em cada caso concreto deve vir fulcrada em elementos que demonstrem a sua efetiva necessidade no contexto fático-probatório apreciado, sendo inadmissível sem a existência de razão sólida e individualizada a motivá-la, especialmente com a edição e entrada em vigor da Lei n. 12.403⁄2011. 4. No caso, da leitura das decisões que ordenaram e mantiveram a segregação cautelar do paciente, constata-se que não foi apresentado qualquer fundamento idôneo para tanto, limitando-se o Juiz singular a fazer referência à gravidade em abstrato do delito que lhe foi imputado, ao clamor público e à credibilidade da justiça, o que, por si só, não justifica a segregação antecipada.” (HC 497.006/MS, j. 07/05/2019)
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“3. A privação antecipada da liberdade do cidadão acusado de crime reveste-se de caráter excepcional em nosso ordenamento jurídico (art. 5º, LXI, LXV e LXVI, da CF). Assim, a medida, embora possível, deve estar embasada em decisão judicial fundamentada (art. 93, IX, da CF), que demonstre a existência da prova da materialidade do crime e a presença de indícios suficientes da autoria, bem como a ocorrência de um ou mais pressupostos do artigo 312 do Código de Processo Penal. Exige-se, ainda, na linha perfilhada pela jurisprudência dominante deste Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, que a decisão esteja pautada em motivação concreta, sendo vedadas considerações abstratas sobre a gravidade do crime. 4. No caso, destacou-se a repercussão social e a maneira pela qual foi realizado o crime, uma vez que ao paciente é imputada conduta de exacerbada culpabilidade, a indicar sua periculosidade e justificar a prisão como forma de garantia da ordem pública. De fato, ao examinar a conduta apontada como fundamento para indeferir-se o direito de recorrer em liberdade, o magistrado singular destacou que “há, pois, elevado grau de culpabilidade, em razão da quantidade de droga transportada pelo acusado, eis que fora apreendido 20kg (vinte) quilos de substância entorpecente – crack – separadas em tabletes de 01 kg (um) quilo cada”. Ressalte-se que, em razão da natureza altamente destrutiva e extremamente concentrada da droga, a quantidade, por si só expressiva, revela-se enorme, evidenciando a necessidade da prisão.” (AgRg no HC 507.725/TO, j. 04/06/2019)
10) A prisão preventiva pode ser decretada em crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para o fim de garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
O inc. III do art. 313 do CPP alargou as hipóteses de cabimento da prisão preventiva, possibilitando ao juiz, de ofício ou provocado, decretar a medida se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.
Assim, cometido, por exemplo, um delito de lesão corporal leve contra a mulher, em situação que caracterize violência doméstica e familiar, pode o autor ter decretada a prisão preventiva, embora este crime seja apenado com detenção máxima de um ano. Esta espécie de prisão provisória, na redação anterior do art. 313 do CPP, praticamente não existia para os crimes apenados com detenção (a menos que o agente já tivesse sido condenado pela prática de crime doloso ou que fosse vadio ou pairasse dúvida quanto à sua identidade, hipótese raríssima de se verificar). A tese foi editada principalmente em razão de situações como a de nosso exemplo, que, normalmente, não são abarcadas pela prisão cautelar:
“A despeito de os crimes pelos quais responde o Paciente serem punidos com detenção, não se perca de vista que o próprio ordenamento jurídico – art. 313, inciso IV, do Código de Processo Penal, com a redação dada pela Lei n.º 11.340⁄2006 – prevê a possibilidade de decretação de prisão preventiva mesmo diante de crimes apenados com detenção, em circunstâncias especiais, tais como a hipótese ora em apreço, com vistas a garantir a execução de medidas protetivas de urgência. Precedentes.” (HC 490.988/MS, j. 27/08/2019)
11) A prisão cautelar deve ser fundamentada em elementos concretos que justifiquem, efetivamente, sua necessidade.
A tese nº 11 pode ser considerada apenas um reforço da nº 9. A alusão genérica à gravidade do delito, ao clamor público ou à comoção social não constitui fundamentação idônea a autorizar a prisão preventiva porque a decisão deve ser fundamentada em elementos concretos que justifiquem, efetivamente, sua necessidade.
12) A prisão cautelar pode ser decretada para garantia da ordem pública potencialmente ofendida, especialmente nos casos de: reiteração delitiva, participação em organizações criminosas, gravidade em concreto da conduta, periculosidade social do agente, ou pelas circunstâncias em que praticado o delito (modus operandi).
A tese nº 12 reúne algumas circunstâncias que o juiz pode utilizar para fundamentar a prisão preventiva na manutenção da ordem pública.
Ordem pública é a paz social, a tranquilidade cuja manutenção é um dos objetivos principais do Estado. Quando tal tranquilidade se vê ameaçada, é possível a decretação da prisão preventiva, a fim de evitar que o agente, solto, continue a delinquir. Assim, é possível a decretação da medida quando se constata que, dada a periculosidade que ostenta em razão de diversas condenações, o agente se sente incentivado a prosseguir em suas práticas delituosas; ou quando a investigação aponta a participação em organização criminosa, que, além de ser um crime em si mesma, é normalmente constituída para a prática de crimes graves; ou ainda quando peculiaridades de determinado crime revelam extrema gravidade e permitem identificar um intenso desvio de caráter e a probabilidade de reiteração:
“2. Em vista da natureza excepcional da prisão preventiva, somente se verifica a possibilidade da sua imposição quando evidenciado, de forma fundamentada e com base em dados concretos, o preenchimento dos pressupostos e requisitos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal – CPP. Deve, ainda, ser mantida a prisão antecipada apenas quando não for possível a aplicação de medida cautelar diversa, nos termos previstos no art. 319 do CPP. 3. No caso em apreço, conforme se tem da leitura do decreto preventivo e do acórdão impugnado, verifica-se que a custódia cautelar foi adequadamente motivada pelas instâncias ordinárias, tendo sido demonstradas, com base em elementos concretos, a periculosidade da recorrente e a gravidade dos delitos, consubstanciadas nos fortes indícios de que integraria organização criminosa altamente articulada e voltada para prática de lavagem de dinheiro e tráfico de drogas, sendo apreendidos, inclusive, veículos, elevadas quantias em espécie e grande quantidade de cocaína, avaliada em mais de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais); o que demonstra concreto risco ao meio social. Nesse contexto, forçoso concluir que a prisão processual está devidamente fundamentada na garantia da ordem pública, não havendo falar, portanto, em existência de evidente flagrante ilegalidade capaz de justificar a sua revogação.” (RHC 116.383/MG, j. 05/09/2019)
13) Não pode o tribunal de segundo grau, em sede de habeas corpus, inovar ou suprir a falta de fundamentação da decisão de prisão preventiva do juízo singular.
Vimos nas teses anteriores que o juiz de primeiro grau deve fundamentar adequadamente o decreto de prisão preventiva, sempre baseado em elementos concretos que correspondam ao periculum in mora e ao fumus boni iuris. Em regra, os indivíduos presos não se conformam com a imposição e, para alcançar a liberdade, impetram habeas corpus na instância superior apontando falhas nos fundamentos da decisão. Caso o Tribunal de Justiça identifique tais falhas, não pode, no lugar de conceder a ordem, suprir a falta de fundamentação do juiz para manter a prisão decretada. O STJ considera que este procedimento contraria a natureza do habeas corpus, concebido para tutelar a liberdade individual cerceada por um ato de constrangimento ilegal:
“A jurisprudência desta Corte Superior é firme em assinalar que o acréscimo de fundamentos, pelo Tribunal local, não se presta a suprir a ausente motivação do Juízo natural, sob pena de, em ação concebida para a tutela da liberdade humana, legitimar-se o vício do ato constritivo ao direito de locomoção do paciente.” (HC 518.979/SP, j. 20/08/2019)
14) Inquéritos policiais e processos em andamento, embora não tenham o condão de exasperar a pena-base no momento da dosimetria da pena, são elementos aptos a demonstrar eventual reiteração delitiva, fundamento suficiente para a decretação da prisão preventiva.
Os antecedentes são uma circunstância judicial que representa a vida pregressa do agente, sua vida antes do crime. Num Estado democrático norteado pelo princípio da presunção de inocência (ou de não culpabilidade), inquéritos policiais em andamento ou já arquivados (seja qual for o motivo) não devem ser considerados como maus antecedentes. O mesmo raciocínio se aplica às ações penais em curso ou já encerradas com decisão absolutória (seja qual for o fundamento). É o que dispõe a súmula nº 444 do STJ.
Isto não se aplica, no entanto, na análise das circunstâncias para a decretação da prisão preventiva, em que inquéritos e processos em andamento são elementos que, não obstante precários, podem ser utilizados para fundamentar a prisão em virtude da probabilidade de reiteração delitiva:
“8. Embora a defesa tenha demonstrado que a condenação anterior da recorrente por furto qualificado pelo concurso de pessoas e mediante fraude fora anulada a partir da sentença por revisão criminal, a anulação mencionada não invalida a fundamentação expedida pelas instâncias ordinárias. Isso porque “inquéritos policiais e processos penais em andamento, muito embora não possam exasperar a pena-base, a teor da Súmula 444⁄STJ, constituem elementos aptos a revelar o efetivo risco de reiteração delitiva, justificando a decretação ou a manutenção da prisão preventiva” (RHC n. 68550⁄RN, Sexta Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 31⁄3⁄2016). 9. Desse modo, o histórico da recorrente – ainda mais em conjunto com o de outros 3 acusados que também ostentam registros criminais prévios – indica personalidade voltada para o crime e reforça a necessidade da segregação como forma de prevenir a reiteração delitiva.” (RHC 114.168/PR, j. 20/08/2019)
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“2. Os fundamentos utilizados para decretar a prisão preventiva não se mostram ilegais ou desarrazoados, especialmente porque ressaltado, pelas instâncias ordinárias, que o Paciente possui ações penais em andamento pelos crimes de ameaça, resistência e homicídio, circunstâncias aptas a justificar, a princípio, a imposição da medida extrema para a garantia da ordem pública, pois tais fatos revelam o risco concreto de reiteração delitiva do Recorrente. 3. A existência de maus antecedentes, reincidência, atos infracionais pretéritos, inquéritos ou mesmo ações penais em curso denota o risco de reiteração delitiva e constitui fundamentação idônea a justificar a segregação cautelar. Precedentes.” (RHC 105.591/GO, j. 13/08/2019)
15) A segregação cautelar é medida excepcional, mesmo no tocante aos crimes de tráfico de entorpecente e associação para o tráfico, e o decreto de prisão processual exige a especificação de que a custódia atende a pelo menos um dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal.
A tese nº 15 também não acrescenta muito ao que já estudamos, pois reitera que a prisão preventiva deve ser decretada com fundamento em elementos de gravidade concreta. A natureza do crime, por si, não é suficiente para sustentar a cautelar.
Não obstante a aparente redundância, a tese foi editada porque são muito frequentes as prisões preventivas no crime de tráfico de drogas, cuja prática é de acentuada gravidade, mas que, isoladamente, não tem servido para amparar as prisões. Mesmo em delitos desta natureza, é preciso fundamentar a prisão em um plus, como, por exemplo, a prática simultânea da associação para o tráfico, a internacionalidade ou a interestadualidade do crime, a grande quantidade e a diversidade de drogas, a apreensão de instrumentos e matéria-prima para a fabricação e a preparação de drogas, todos elementos indicativos de que não se trata de alguém que foi surpreendido enquanto praticava eventualmente a mercancia de drogas:
“No caso, a manutenção da constrição cautelar está baseada em elementos vinculados à realidade, pois as instâncias ordinárias fazem referências às circunstâncias fáticas justificadoras, destacando, além da quantidade de drogas encontradas (113 g de crack), apreensão de apetrechos para o tráfico de entorpecentes e munições de uso restrito. Tudo a revelar a periculosidade in concreto do agente.” (RHC 114.285/RS, j. 05/09/2019)
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“2. A quantidade, a variedade e a natureza das drogas apreendidas podem servir para o magistrado reconhecer a gravidade concreta da ação e a dedicação do agente a atividade criminosa, elementos capazes de justificar a necessidade da custódia preventiva para garantia da ordem pública. 3. No caso, os Recorrentes foram presos em flagrante, no dia 04⁄01⁄2019, pela prática, em tese, dos delitos descritos no art. 33, caput, c.c o art. 40, da Lei n.º 11.343⁄2006, após serem surpreendidos fazendo o transporte de 9,9kg (nove quilos e novecentos gramas) de maconha adquiridos no Paraguai, que por si demonstra a perniciosidade social da ação.” (RHC 115.528/MS, j. 03/09/2019)
O afastamento da prisão preventiva fundamentada apenas na prática do tráfico, sem elementos adicionais que apontem maior gravidade, é decorrente da atual política criminal que pune menos severamente traficantes primários, de bons antecedentes, que não integram organização criminosa e não se dedicam à prática delituosa. Estes traficantes são beneficiados pela causa de diminuição de pena do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/06 e podem ser beneficiados até mesmo pela substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
Para se aprofundar, recomendamos:
Livro: Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal Comentados por Artigos