Em 2018, a Lei 13.718 tipificou condutas cuja punição vinha sendo reclamada em virtude de diversos casos de divulgação de imagens envolvendo conteúdo sexual. De cenas reais de estupro a cenas de sexo e de nudez consentida mas que não deveriam ter sido expostas, foram incontáveis os casos noticiados por órgãos de mídia em que diversas pessoas tiveram sua intimidade sexual exposta ao público sem que os responsáveis pudessem ser devidamente punidos.
A tipificação de tais condutas foi promovida por meio do art. 218-C do Código Penal, que consiste em “Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia”.
Sobre o crime já tratamos em artigo publicado quando da promulgação da lei. Em síntese – para o que nos interessa no momento –, as condutas punidas podem recair em três objetos materiais: a) cenas relativas a estupro ou estupro de vulnerável: trata-se de violência sexual real, ao mesmo tempo registrada e depois difundida por qualquer meio; b) cenas que façam apologia ou induzam a prática de estupro: não é necessário que as imagens veiculem cenas sexuais. O que se busca punir é a divulgação de material que de alguma forma faça apologia ou induza a prática de estupro, como um vídeo em que alguém defenda a legitimidade da prática ou de alguma forma a conclame; c) cenas que consistam em registros de sexo, nudez ou pornografia: não se trata de cenas de violência sexual, mas de sexo, nudez ou pornografia sem que a pessoa fotografada ou gravada tenha dado consentimento para a difusão.
O crime só pode ser cometido dolosamente, e o dolo consiste em praticar uma das ações nucleares típicas, sem nenhum elemento subjetivo especial, como o propósito de ofender a dignidade da vítima ou mesmo de obter lucro na modalidade de venda.
É evidente que, ao tipificar condutas como estas, o legislador tinha em mente a punição de atos semelhantes àqueles que até então vinham sendo cometidos, isto é, em que se divulgassem deliberadamente imagens íntimas de pessoas pelo deleite de vê-las expostas. Mas a realidade, fonte inesgotável de criatividade, normalmente nos proporciona situações em que a incidência da lei não é tão simples, intuitiva e imediata como pretendia o legislador.
Uma dessas situações nos foi exposta durante o último final de semana, em que o jogador Neymar, acusado por uma brasileira de ter cometido estupro na França, para se defender divulgou o histórico de mensagens trocadas entre ambos desde um período anterior ao encontro até alguns dias que se seguiram a ele. O problema é que, entre as mensagens, havia imagens íntimas da mulher que se dizia vítima do estupro (imagens que ela havia transmitido ao jogador).
Como foi amplamente divulgado, a Polícia Civil do Rio de Janeiro instaurou inquérito policial para apurar a prática do crime do art. 218-C, tendo em vista a divulgação não autorizada de cenas de nudez. Nota: não se trata de aplicar extraterritorialmente a lei penal brasileira, pois, ao que tudo indica, o jogador estava no Rio de Janeiro no momento em que divulgou as mensagens com as imagens.
A questão que se coloca é a seguinte: tendo em vista que o propósito da divulgação das mensagens foi o de rebater a acusação de um crime grave como o estupro, caracteriza-se o crime do art. 218-C, mesmo que o estupro se prove de fato inexistente?
Partindo do pressuposto de que a acusação imputada ao jogador é efetivamente falsa, podemos abordar a questão sob três ângulos: o da tipicidade, o da ilicitude e o da culpabilidade.
Pode-se argumentar que, ao divulgar as mensagens e as imagens de teor sexual que precederam e que se seguiram ao fato, o jogador não teve o propósito de ofender a dignidade sexual da acusadora, mas apenas de demonstrar que a viagem à França e o encontro foram combinados para que culminassem na relação sexual. A divulgação, portanto, tinha a finalidade de demonstrar ao público a consensualidade da relação sexual e de refutar o crime imputado.
O problema disso reside no elemento subjetivo do tipo do art. 218-C, que, como destacamos acima, consiste apenas no dolo de divulgação das imagens, sem a necessidade de algum propósito específico que anime o agente. Para sustentar a ausência do dolo – e, portanto, da tipicidade – seria necessário que o tipo exigisse um plus, como a intenção de provocar danos à dignidade sexual de alguém. Mas este elemento específico não existe porque, normalmente, a divulgação de imagens ou cenas íntimas traz ínsita a ofensa à dignidade sexual, razão por que é dispensável que o tipo traga algum elemento especial que evidencie essa circunstância. Além disso, inserir no tipo um elemento subjetivo que consistisse em algo como “para atingir a dignidade sexual da vítima” poderia provocar sérias limitações à punição, que somente seria possível se o agente deixasse claros seus propósitos. Aliás, este é um dos motivos pelos quais a doutrina mais atual afasta do crime de estupro a necessidade de satisfação da lascívia, algo de difícil comprovação e que, ademais, não abrange todas as situações em que se dá uma relação sexual forçada.
Afastada a hipótese de atipicidade, analisemos o fato sob o prisma da ilicitude.
Não se trata – sem a menor dúvida – da causa de exclusão da ilicitude disposta no próprio tipo penal.
O § 2º do art. 218-C estabelece excludente da ilicitude para as situações em que o fato é praticado em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica, desde que sejam adotados recursos que impossibilitem a identificação da vítima. Se, por exemplo, um jornal televisivo exibe cena de estupro que tenha sido gravada e divulgada pelo próprio autor do crime, e o faça para facilitar a identificação daquele indivíduo, preservando a identidade da vítima, não se cogita a ocorrência do crime.
Inserem-se também na justificante as condutas praticadas com prévia autorização de quem foi registrado nas imagens, desde que maior de dezoito anos (se menor, o consentimento não tem relevância e incidem as regras do ECA).
Como parece óbvio, a divulgação promovida pelo jogador não se insere na natureza de publicação jornalística, científica, cultural ou acadêmica. Nem tampouco houve autorização da pessoa que enviou as imagens, sendo certo que esta autorização pode ser presumida apenas nas situações em que pessoas se exibem nuas publicamente, em eventos cuja natureza supõe a inexistência de intimidade a ser tutelada, como em certos desfiles e bailes de carnaval e em peças de teatro ou outras exibições públicas.
Parece-nos que a conduta pode ser tratada como legítima defesa.
Segundo se extrai do art. 25 do CP, considera-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. São, portanto, requisitos da legítima defesa: a) agressão injusta: entende-se por agressão a conduta (ação ou omissão) humana que ataca ou coloca em perigo bens jurídicos de alguém. Injusta é a agressão contrária ao direito, não necessariamente típica; b) atual ou iminente: agressão atual é a presente, a que está ocorrendo. Iminente é a que está prestes a ocorrer. Não se admite legítima defesa contra agressão passada (vingança) ou futura (mera suposição); c) uso moderado dos meios necessários: com o presente requisito, o legislador quer assegurar proporcionalidade entre o ataque e a defesa. Para repelir a injusta agressão (ataque), deve o agredido usar de forma moderada o meio necessário que servirá na sua defesa (contra-ataque); d) proteção do direito próprio ou de outrem: admite-se legítima defesa no resguardo de qualquer bem jurídico (vida, integridade física, honra, patrimônio, dignidade sexual etc.) próprio (legítima defesa própria ou in persona) ou alheio (legítima defesa de terceiro ou ex persona); e) conhecimento da situação de fato justificante: deve o agente conhecer as circunstâncias do fato justificante, demonstrando ter ciência de que está agindo diante de um ataque atual ou iminente (requisito subjetivo).
Não há dúvida de que a imputação falsa de um crime é agressão injusta, especialmente quando se traduz em denunciação caluniosa, crime a que o Código Penal comina pena de dois a oito anos de reclusão (art. 339). Se a imputação consistiu, como mencionado, em dar causa à instauração de investigação policial, a agressão injusta é sem dúvida atual. O jogador estava protegendo direitos seus (honra e imagem pública) e, obviamente, tinha conhecimento da situação justificante.
O que pode provocar certo debate é o uso moderado dos meios necessários: a divulgação das mensagens e das imagens íntimas era a forma menos lesiva de reação? E esta forma foi proporcional diante da agressão sofrida? Ou houve excesso?
Entende-se como necessário o meio menos lesivo à disposição do agredido no momento da agressão, porém capaz de repelir o ataque com eficiência. Encontrado o meio necessário, deve ser ele utilizado sem excessos, o suficiente para impedir a continuidade da ofensa.
É óbvio que se deve julgar esse requisito objetivamente, sem desconsiderar as condições de fato, do caso concreto. Sobre o tema, Nélson Hungria, há muito, já orientava:
“A apreciação deve ser feita objetivamente, mas sempre de caso em caso, segundo um critério de relatividade, ou um cálculo aproximativo; não se trata de pesagem em balança de farmácia, mas de uma aferição ajustada às condições de fato do caso vertente; não se pode exigir uma perfeita equação entre o quantum da reação e a intensidade da agressão.” (Comentários ao Código Penal. Vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1949, vol. 1 t. II, p. 302).
Bem, diante de uma imputação pública de estupro, parece óbvio que, havendo diálogos e imagens que comprovem os contatos prévios entre acusadora e acusado, a disposição de ambos para a relação sexual, a satisfação com o que havia ocorrido e o desejo de que tudo se repetisse, não há outro meio mais adequado (ou, nos termos da lei, “necessário”) para que se viabilize a defesa pública.
No que concerne à moderação no uso do meio, deve-se ter em mente que a imputação foi pública e provocou enorme repercussão, inclusive na imprensa internacional. A divulgação, ao que parece à primeira vista, era a forma de impedir a continuidade da ofensa, pois, sem as mensagens e as imagens trocadas, restaria apenas a palavra do jogador, que certamente não seria suficiente para conter a ofensa pública à sua honra e à sua imagem.
Seja como for, se aventada a possibilidade de excesso na justificante, neste caso somente se cogita a punição do excesso doloso, pois, caso se considere que a divulgação das imagens íntimas tenha sido decorrente de inobservância do dever de cuidado enquanto o jogador atuava respaldado pela excludente da ilicitude, o fato deve ser considerado atípico diante da inexistência da modalidade culposa do crime.
Por fim, caso afastada a justificante, é possível suscitar a hipótese de inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade.
Um dos elementos da culpabilidade é a exigibilidade de conduta diversa, ou seja, para a reprovação social, não basta que o autor do fato lesivo seja imputável e tenha possibilidade de lhe conhecer o caráter ilícito. Exige-se, ainda, que nas circunstâncias tivesse a possibilidade de atuar de acordo com o ordenamento jurídico. Explica Fernando de Almeida Pedroso:
“O cometimento de fato típico e antijurídico, por agente imputável que procedeu com dolo ou culpa, de nada vale em termos penais se dele não era exigível, nas circunstâncias em que atuou, comportamento diferente. Não se pode formular um juízo de censura ou reprovação, destarte, se do sujeito ativo era inviável requestar outra conduta.” (Direito Penal-Parte Geral. São Paulo: Editora Método, 2008, p. 569).
A exigibilidade de conduta diversa é afastada, segundo o Código Penal, pela coação moral irresistível e pela obediência hierárquica. A doutrina atual, no entanto, admite a inexigibilidade de conduta diversa como causa dirimente supralegal, pois se percebeu, sem muita dificuldade, que, por mais previdente que seja, o legislador não consegue prever todos os casos em que é inexigível do agente conduta diversa, sendo perfeitamente possível, diante das circunstâncias do caso concreto, revelar hipóteses não antevistas. As dirimentes supralegais se fundamentam, basicamente, no fato de que a exigibilidade de conduta diversa é característica fundamental da culpabilidade, motivo pelo qual não é admissível que se estabeleça a responsabilidade penal em decorrência de comportamentos humanos inevitáveis.
A divulgação das imagens pelo jogador pode também se inserir nesta causa dirimente na medida em que a conduta só foi praticada em virtude da acusação de estupro, que, na visão dele, que havia sido acusado, merecia pronta resposta. Neste contexto, não seria razoável reprovar sua conduta e dele exigir que permanecesse em silêncio diante da execração pública.
Reforçamos que as hipóteses aqui analisadas só se legitimam a partir do pressuposto de que a acusação de estupro tenha de fato consistido em denunciação caluniosa, pois, do contrário, a incidência do tipo do art. 218-C não poderia ser questionada, ainda que sob o pretexto da autodefesa.
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