9) É necessária a realização do exame de corpo de delito para comprovação da materialidade do crime quando a conduta deixar vestígios, entretanto, o laudo pericial será substituído por outros elementos de prova na hipótese em que as evidências tenham desaparecido ou que o lugar se tenha tornado impróprio ou, ainda, quando as circunstâncias do crime não permitirem a análise técnica.
Sabemos que determinados crimes, dada a sua natureza, deixam vestígios materiais (facta permanentes), ao passo que outros, sem resultado naturalístico, não permitem que se constatem vestígios (facta transeuntes). Em relação aos primeiros, por força de expressa disposição do art. 158 do CPP, há necessidade da realização do exame de corpo de delito:
“Art. 158. Quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado.”
Com isso, pretendeu o legislador cercar-se de certas garantias contra acusações injustas e preferiu relacionar a prova do fato (e, em última análise, a condenação do réu) à existência do exame de corpo de delito, vinculando o juiz a tal prova, como no antigo sistema tarifado. É destarte justificável tal cautela, pois, conforme indaga Tourinho FilhoCódigo de Processo Penal comentado, São Paulo: Saraiva, 2005, 9ª. ed. 2005, p. 247, “se, com os exames de corpo de delito, muitos erros judiciários têm sido cometidos, a que extremos não chagaríamos, se a lei os dispensasse?”.
A regra, no entanto, não é aplicada em termos absolutos, pois há circunstâncias que impedem a realização do exame. Se, por exemplo, um furto é cometido por meio do arrombamento da porta de um estabelecimento comercial, não é razoável que se impeça a reparação da porta até que a perícia seja feita, pois isso faria com que o local permanecesse desguarnecido e suscetível a outras condutas criminosas. Assim, é possível que o rompimento de obstáculo seja comprovado de outras formas, como se extrai do seguinte julgado:
“1. A jurisprudência deste Tribunal firmou-se no sentido de que somente é possível a substituição da prova técnica para o reconhecimento do furto qualificado pelo rompimento de obstáculo por outros meios de prova quando o delito não deixa vestígios, estes tenham desaparecido ou, ainda, se as circunstâncias do crime não permitirem a confecção do laudo.
2. A Corte de origem registrou que a impossibilidade de o laudo pericial atestar o rompimento de obstáculo decorreu da inexistência dos vestígios materiais, já que a manutenção do local a ser periciado nas condições em que se encontrava após a realização do crime de furto, ou seja, sem o telhado e uma das portas, e, ainda, por se tratar de estabelecimento comercial, impediria a própria continuidade das atividades e causaria insegurança no local. Assim, tendo as instâncias ordinárias apresentado justificativas para a não realização da perícia, é válido o exame indireto para atestar o rompimento do obstáculo, como feito.” (AgRg no HC 371.211/MS, j. 22/11/2016)
Note-se, no entanto, que o tribunal tem sido cauteloso frente à relativização da regra do art. 158, que se considera violada se o próprio Estado dá causa à não realização do exame:
“1. Segundo a pacífica jurisprudência desta Corte Superior, quando a conduta deixar vestígios, o exame de corpo de delito é indispensável à comprovação da materialidade do crime. O laudo pericial somente poderá ser substituído por outros elementos de prova se os vestígios tiverem desaparecido por completo ou o lugar se tenha tornado impróprio para a constatação dos peritos.
2. Na espécie, embora os vestígios não tenham desaparecido, não foi realizado laudo pericial, revelando-se a impossibilidade de sua substituição por prova testemunhal.” (AgRg no REsp 1.622.139/MG, j. 22/05/2018)
*****
“1. A hodierna jurisprudência das Turmas que compõem a Terceira Seção deste Superior Tribunal entende que, para a configuração do tipo penal descrito no art. 7°, IX, da Lei n. 8.137/1990, impõe-se a demonstração inequívoca da impropriedade do produto.
2. Por ser infração que deixa vestígio, é imprescindível a realização de exame de corpo de delito direto, por expressa imposição legal. Somente pode ser substituído o laudo pericial por outros meios de prova se o delito não deixar vestígios, se estes tiverem desaparecido ou, ainda, se as circunstâncias do crime não permitirem a confecção do laudo.
3. Na hipótese dos autos, o próprio Estado deu causa ao desaparecimento dos vestígios, ao inutilizar os produtos antes de sua submissão à perícia técnica, motivo pelo qual não pode agora querer alegar o desaparecimento dos vestígios e comprovar a materialidade por outros meios de prova.” (AgRg no REsp 1.300.606/DF, j. 07/03/2017)
10) O laudo toxicológico definitivo é imprescindível para a configuração do crime de tráfico ilícito de entorpecentes, sob pena de se ter por incerta a materialidade do delito e, por conseguinte, ensejar a absolvição do acusado.
Vimos nos comentários à tese anterior que o art. 158 do CPP impõe a realização do exame de corpo de delito nas situações em que o crime deixa vestígios. No caso do crime de tráfico de drogas, os §§ 1º e 2º do art. 50 da Lei 11.343/06 dispõem:
“§ 1º Para efeito da lavratura do auto de prisão em flagrante e estabelecimento da materialidade do delito, é suficiente o laudo de constatação da natureza e quantidade da droga, firmado por perito oficial ou, na falta deste, por pessoa idônea.
§ 2º O perito que subscrever o laudo a que se refere o § 1.º deste artigo não ficará impedido de participar da elaboração do laudo definitivo.”
Como se extrai dos dispositivos acima transcritos, são dois os laudos que devem ser elaborados. O primeiro, chamado laudo de constatação, deve indicar se o material apreendido, efetivamente, é uma droga incluída em lista da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária, do Ministério da Saúde), apontando, ainda, sua quantidade. Trata-se, portanto, de um exame provisório, apto, ainda que sem maior aprofundamento, a comprovar a materialidade do delito e, como tal, a autorizar a prisão do agente ou a instauração do respectivo inquérito policial, caso não verificado o estado de flagrância. É firmado por um perito oficial ou, em sua falta, por pessoa idônea.
Além deste, há o laudo definitivo, presumivelmente mais complexo, que, como o nome indica, traz a certeza quanto à materialidade do delito, definindo, de vez, se o material pesquisado é de fato uma droga. Esse laudo, a teor do art. 159 do Código de Processo Penal, deve ser elaborado por perito oficial ou, na sua falta, “por 2 (duas) pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior preferencialmente na área específica, dentre as que tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do exame”, nos termos do § 1º do mesmo dispositivo. Nada impede, outrossim, que o mesmo perito elabore o laudo de constatação e, mais adiante, o laudo definitivo. É isso, aliás, que ocorre na prática.
No geral, a jurisprudência se inclina no sentido de ser obrigatória a apresentação do laudo definitivo, vedando, assim, a condenação do agente com lastro, apenas, no laudo de constatação:
“1. A Terceira Seção desta Corte, nos autos do Eresp n.º 1.544.057/RJ, em sessão realizada 26.10.2016, pacificou o entendimento no sentido de que o laudo toxicológico definitivo é imprescindível para a condenação pelo crime de tráfico ilícito de entorpecentes, sob pena de se ter por incerta a materialidade do delito e, por conseguinte, ensejar a absolvição do acusado. Ressalva do entendimento da Relatora. 2. Na espécie, não consta dos autos laudo toxicológico definitivo, não tendo as instâncias de origem logrado comprovar a materialidade do crime de tráfico de drogas, sendo de rigor a absolvição quanto ao referido delito.” (PExt no HC 399.159/SP, j. 08/05/2018)
11) É possível, em situações excepcionais, a comprovação da materialidade do crime de tráfico de drogas pelo laudo de constatação provisório, desde que esteja dotado de certeza idêntica à do laudo definitivo e que tenha sido elaborado por perito oficial, em procedimento e com conclusões equivalentes.
Esta tese relativiza a nº 10, mitigando o rigor relativo à necessidade do laudo definitivo.
Com efeito, admite a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em casos excepcionais, que a materialidade do crime de tráfico de drogas seja comprovada pelo próprio laudo de constatação. Trata-se de situações em que a constatação permite grau de certeza correspondente ao laudo definitivo, pois elaborado por perito oficial, em procedimento e com conclusões equivalentes e sobre substâncias já conhecidas, que não demandam exame complexo ou maiores investigações, como maconha e cocaína, por exemplo:
“1. A Terceira Seção deste Sodalício pacificou entendimento segundo o qual ‘o laudo preliminar de constatação, assinado por perito criminal, identificando o material apreendido como cocaína em pó, entorpecente identificável com facilidade mesmo por narcotestes pré-fabricados, constitui uma das exceções em que a materialidade do delito pode ser provada apenas com base no laudo preliminar de constatação’. (EREsp 1544057/RJ, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/10/2016, DJe 09/11/2016) 2. In casu, o laudo de constatação preliminar das substâncias entorpecentes apreendidas, assinado por perito da Polícia Civil, que embasou a condenação pelo Juízo de primeiro grau, nos termos da jurisprudência deste Sodalício configura documento válido para a comprovação da materialidade delitiva, reforçada pela confissão do acusado e depoimentos colhidos em regular instrução.” (AgRg no AREsp 1.092.574/RJ, j. 07/06/2018)
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“No julgamento do EREsp n. 1.544.057/RJ, a Terceira Seção desta Corte pacificou o entendimento de que o laudo toxicológico definitivo, de regra, é imprescindível à comprovação da materialidade dos delitos envolvendo entorpecentes. Sem o referido exame, é forçosa a absolvição do acusado, admitindo-se, no entanto, em situações excepcionais, que a materialidade do crime de drogas seja atestada por laudo de constatação provisório, desde que ele permita grau de certeza idêntico ao do laudo definitivo e tenha sido elaborado por perito oficial.
Na hipótese, como ficou consignado na origem, embora o laudo pericial juntado aos autos tenha sido confeccionado ainda na fase inquisitiva, equipara-se a laudo definitivo, “contendo todas as informações necessárias à comprovação da materialidade” (fl. 101), assim, não há razão para que a referida prova seja desconsiderada, tanto mais, porque a Defesa pôde impugná-la sob o crivo do contraditório judicial.” (HC 394.346/RJ, j. 23/08/2018)
Seja como for, é necessária a realização de um exame que constate a materialidade delitiva para que se cumpra a disposição do art. 158 do CPP. Não é possível basear a condenação apenas em depoimentos e na confissão do acusado.
12) É prescindível a apreensão e a perícia de arma de fogo para a caracterização de causa de aumento de pena prevista no art. 157, § 2º-A, I, do Código Penal, quando evidenciado o seu emprego por outros meios de prova.
O art. 157, § 2º-A, inciso I, do Código Penal estabelece causa de aumento de pena para as situações em que o roubo é cometido com emprego de arma de fogo.
No que concerne à caracterização da majorante, os tribunais superiores têm decidido que a apreensão e a perícia do artefato são dispensáveis, ou seja, basta que por outros meios de prova se demonstre que o roubador empregou uma arma de fogo para que se justifique o aumento da pena da subtração. Como exemplo, temos o seguinte julgado do STF:
“Prescinde de apreensão e perícia da arma de fogo a qualificadora decorrente de violência ou ameaça implementadas – artigo 157, § 2º, inciso I, do Código Penal. Precedente: Habeas Corpus nº 96.099-5/RS, Pleno, relator ministro Ricardo Lewandowski, acórdão publicado no Diário da Justiça do dia 5 de junho seguinte” (HC 96.985/DF, DJe 27/11/2015).
A Terceira Seção do STJ firmou a mesma orientação ainda na vigência do inciso I do § 2º do art. 157, revogado pela Lei 13.654/18:
“1. Consoante entendimento firmado pela Terceira Seção deste Tribunal Superior, para o reconhecimento da causa de aumento de pena prevista no inciso I do § 2º do art. 157 do Código Penal, mostra-se dispensável a apreensão do objeto e a realização de exame pericial para atestar a sua potencialidade lesiva, quando presentes outros elementos probatórios que atestem o seu efetivo emprego na prática delitiva (EResp 961.863/RS).
2. O poder vulnerante integra a própria natureza do artefato, sendo ônus da defesa, caso alegue o contrário, provar tal evidência. Exegese do art. 156 do CPP.” (AgRg no AREsp 1.076.476/RO, j. 04/10/2018)
Note-se que, devido à recorrência de questionamentos envolvendo a matéria, a Terceira Seção do STJ chegou a determinar a suspensão, em todo o Brasil, da tramitação dos processos criminais cujo objeto fosse a necessidade de apreensão e perícia de arma de fogo para a incidência de aumento de pena nos delitos de roubo. Afetaram-se dois recursos especiais para julgamento pelo rito dos recursos repetitivos. O ministro Sebastião Reis Junior – relator – citou manifestação do ministro presidente da Comissão Gestora de Precedentes, que observou:
“[…] Assim, a definição desta matéria sob o rito dos recursos repetitivos, precedente qualificado de estrita observância pelos juízes e tribunais nos termos do art. 121-A do RISTJ e do art. 927 do CPC, orientará todas as instâncias ordinárias, com importantes reflexos na análise de admissibilidade de recursos. Ademais, poderá evitar decisões divergentes nos juízos de origem e o envio desnecessário de recursos ao Superior Tribunal de Justiça, bem como a interposição de habeas corpus perante esta Corte. […]”.
Devido, no entanto, à entrada em vigor da Lei 13.654/18, que revogou o dispositivo sobre o qual incidia a controvérsia (o inciso I do § 2º do art. 157), o ministro Sebastião Reis Junior houve por bem suspender a afetação dos recursos especiais porque alterou-se o objeto dos recursos repetitivos, o que por sua vez impediria que os casos utilizados como parâmetros fossem idênticos aos casos futuros, cujos julgamentos estariam vinculados à decisão tomada.
Não obstante a edição desta tese, é possível que o tribunal volte a adotar o procedimento da afetação para que a Terceira Seção decida definitivamente a questão sob o rito dos recursos repetitivos.
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