O art. 2º da Lei 8.137/90 pune, no inciso II, a conduta de deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos.
Em fatos que envolvem o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), há certa controvérsia a respeito do alcance do tipo, que estabelece uma espécie de apropriação indébita tributária: seria aplicável apenas e tão somente ao substituto tributário ou abarcaria também quem destaca o ICMS na nota fiscal, repassa o valor respectivo ao consumidor, mas não o recolhe ao fisco estadual?
O substituto tributário é aquele a quem a lei impõe o recolhimento do tributo embora não se trate do praticante do fato gerador. A substituição pode ser para a frente, para trás ou propriamente dita.
Na definição de Luiz Emygdio F. da Rosa JrDireito Financeiro e Tributário, 10ª ed. – Rio de Janeiro: Renovar, 1995, pp. 482/483, a substituição para a frente “é uma forma de antecipação do tributo, pela qual o substituto deve recolher o tributo que seria devido pelo substituído em momento posterior do ciclo econômico, ou seja, o imposto é pago pelo substituto, com recursos que lhe são fornecidos pelo substituído, embora o fato gerador normalmente só ocorreria posteriormente”. Já a substituição para trás “ocorre quando o substituto é responsável pelo pagamento do imposto devido pelo substituído na etapa anterior do processo de circulação da mercadoria. Tal substituição normalmente se dá quando o contribuinte-substituído, transmitente da mercadoria, é produtor de pequeno porte ou comerciante individual, enquanto o substituto, adquirente da mercadoria, é contribuinte de maior peso, inspirando maior confiança no fisco no que toca ao pagamento do tributo, principalmente em razão da sua melhor organização. Na realidade, ocorre um diferimento do imposto porque o fisco não recebe o tributo no momento da saída da mercadoria do estabelecimento do comerciante de pequeno porte, mas em etapa posterior do ciclo econômico, sendo o recolhimento feito pelo substituto”. Por fim, a substituição propriamente dita ocorre em um negócio específico, isto é, quando substituto e substituído integram o mesmo negócio jurídico.
A outra situação mencionada no segundo parágrafo – e que gera a dúvida sobre a caracterização do crime – não se confunde com a substituição tributária. No caso, a sociedade comercial é contribuinte direta de uma obrigação tributária própria. Embora haja o destaque do valor do ICMS e seu repasse ao consumidor, este jamais pode ser considerado contribuinte substituído do tributo estadual. A própria sociedade comercial dá ensejo ao fato gerador e é a única responsável pelo recolhimento do tributo.
Por que, então, há dúvida sobre se o crime se caracteriza?
Porque o tipo penal pune a conduta de deixar de recolher valor de tributo ou de contribuição social descontado ou cobrado. Os que advogam a tese de que o crime se caracteriza fora das situações de substituição o fazem baseados no fato de que se trata de um tributo efetivamente cobrado mas não repassado ao fisco. O tipo, portanto, abarcaria duas situações: o não recolhimento do tributo descontado por substituição e o não recolhimento do tributo cobrado (repassado ao consumidor).
Havia no próprio STJ certa divergência a respeito da caracterização do crime no caso do tributo cobrado. A Sexta Turma, por exemplo, tem decisões nas quais considera que quem cobra o imposto do consumidor e não promove o recolhimento é simples inadimplente, não autor de crime tributário:
“1. O delito do artigo 2º, inciso II da Lei nº 8.137/90 exige que o sujeito passivo desconte ou cobre valores de terceiro e deixe de recolher o tributo aos cofres públicos. 2. O comerciante que vende mercadorias com ICMS embutido no preço e, posteriormente, não realiza o pagamento do tributo não deixa de repassar ao Fisco valor cobrado ou descontado de terceiro, mas simplesmente torna-se inadimplente de obrigação tributária própria.” (REsp 1.543.485/GO, j. 05/04/2016)
A Quinta Turma, por outro lado, tem decisões em sentido contrário:
“2. Da leitura do artigo 2º, inciso II, da Lei 8.137/1990, depreende-se que pratica o ilícito nele descrito aquele que não paga, no prazo legal, tributo aos cofres públicos que tenha sido descontado ou cobrado de terceiro, exatamente como ocorreu na hipótese em exame, em que o ICMS foi incluído em serviços ou mercadorias colocadas em circulação, mas não recolhido ao Fisco. 3. Não há que se falar em atipicidade da conduta de deixar de pagar impostos, pois é o próprio ordenamento jurídico pátrio, no caso a Lei 8.137/1990, que incrimina a conduta daquele que deixa de recolher, no prazo legal, tributo descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação, e que deveria recolher aos cofres públicos, nos termos do artigo 2º, inciso II, do referido diploma legal. Precedente” (RHC 44.465/SC, j. 18/06/2015)
Em julgamento do habeas corpus 399.109/SC, realizado em 22 de agosto de 2018, a Terceira Seção do STJ dirimiu a divergência para estabelecer, por maioria, a tipicidade da conduta.
Divergindo da tese vencedora, a ministra Maria Thereza de Assis Moura se alinhou à orientação de que a expressão descontado ou cobrado, contida no tipo, diz respeito aos casos de responsabilidade tributária, não de simples repasse do custo do tributo ao consumidor, que não é o contribuinte do ICMS e não tem relação tributária com o fisco. É, portanto, incorreto considerar que o valor do ICMS embutido no preço é cobrado – na acepção do tipo penal – do consumidor:
“Sob esta perspectiva, é também o consumidor quem arca, por exemplo, com o ônus econômico do imposto de renda e com a contribuição previdenciária pagos pelo comerciante, já que, na formação do preço da mercadoria, são levados em consideração todos os custos, diretos e indiretos, da atividade. Da mesma forma, o custo do aluguel do imóvel, da energia elétrica, dos funcionários etc., tudo isso é repassado ao consumidor.
Nem por isso alguém sustenta que há apropriação indébita do imposto de renda quando o consumidor compra um produto e o comerciante, após contabilizar corretamente o tributo, simplesmente deixa de recolhê-lo.”
Já segundo o ministro Rogério Schietti Cruz – relator –, o tipo penal abrange ambas as situações. A expressão descontado se relaciona a tributos diretos em que se verifica a responsabilidade por substituição tributária (o substituto retém o tributo na fonte e não o recolhe). Já a expressão cobrado compreende as relações tributárias relativas a tributos indiretos, ainda que decorrentes de operações próprias, pois o contribuinte de direito retém valor do tributo e o repassa ao adquirente do produto. No caso do ICMS, o valor é sempre suportado pelo consumidor, pois, tanto em substituição tributária quanto em operações próprias, o tributo é repassado na cadeia de produção.
No voto em que acompanhou o relator, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca afirmou que, antes, alinhava-se à orientação dominante na Sexta Turma, de que o crime só poderia se caracterizar se o tributo fosse descontado ou cobrado do contribuinte, o que não ocorre no simples repasse ao consumidor, que – repita-se – não é sujeito passivo da obrigação tributária relativa ao ICMS. Reavaliando, no entanto, sua posição, o ministro chegou à conclusão de que o tipo penal não exige que o desconto ou a cobrança seja feita do contribuinte. Não há limitação expressa que autorize a conclusão de que somente o substituto tributário pode ser sujeito ativo. Dessa forma, basta que seja feito o desconto ou a cobrança para que o delito se aperfeiçoe:
“Nada obstante, ao lançar novo olhar sobre a matéria, verifico que a limitação realizada, no sentido de que o tipo penal somente se perfaz quando o valor é descontado ou cobrado de quem também é contribuinte, não encontra amparo no tipo penal em estudo, uma vez que a norma não traz essa especificação. Nesse contexto, entendo que a conclusão no sentido de que o tipo só é preenchido nos casos de substituição tributária não resiste à mais simples forma interpretação normativa, que é a gramatical.
(…)
Dessa forma, o crime em tela só pode ser praticado pelo sujeito passivo de obrigação tributária, que, nessa qualidade, descontar ou cobrar valor de tributo ou de contribuição social, de terceiro, não necessariamente contribuinte, e não recolher o valor aos cofres públicos.
Irrelevante, assim, a ausência de relação jurídica entre o Fisco e o consumidor, porquanto o que se criminaliza é o fato de o contribuinte se apropriar do dinheiro relativo ao imposto, devidamente recebido de terceiro, quer porque descontou do substituído tributário quer porque cobrou do consumidor, não repassando aos cofres públicos.”
Ainda segundo o voto, o fato de outros custos também serem repassados ao consumidor não impede a caracterização do crime, pois o ICMS é imposto sobre o consumo, isto é, incide apenas se o produto for efetivamente comercializado, ao contrário de outros custos fixos (outros tributos, aluguel, funcionários, estrutura de funcionamento, equipamentos, etc.) pagos pelo comerciante independentemente da comercialização da mercadoria.
A decisão também se fundamentou em aresto do Supremo Tribunal Federal segundo o qual o ICMS não pode ser incluído na base de cálculo da COFINS e do PIS/PASEP porque não se trata de receita, mas de simples ingresso de caixa de valores não pertencentes à empresa. Trata-se do recurso extraordinário 574.706/PR (j. 15/03/2017), noticiado no Informativo 857 nos seguintes termos:
“Prevaleceu o voto da ministra Cármen Lúcia (Presidente e relatora). Consignou que a inclusão do ICMS na base de cálculo das referidas contribuições sociais leva ao inaceitável entendimento de que os sujeitos passivos desses tributos faturariam ICMS, o que não ocorre. Assim, enquanto o montante de ICMS circula por suas contabilidades, os sujeitos passivos das contribuições apenas obtêm ingresso de caixa de valores que não lhes pertencem. Em outras palavras, o montante de ICMS, nessas situações, não se incorpora ao patrimônio dos sujeitos passivos das contribuições, até porque tais valores são destinados aos cofres públicos dos Estados-Membros ou do Distrito Federal.
Ponderou, igualmente, que a parcela correspondente ao ICMS pago não tem natureza de faturamento (nem mesmo de receita), mas de simples ingresso de caixa. Por essa razão, não pode compor a base de cálculo da contribuição para o PIS ou da COFINS.”
Ressalte-se que, naquele julgamento, o ministro Rogério Schietti Cruz destacou quatro aspectos essenciais para a caracterização do delito:
1º) O fato de o agente registrar, apurar e declarar em guia própria ou em livros fiscais o imposto devido não exerce influência na prática do delito, que, a exemplo da apropriação indébita comum, não pressupõe clandestinidade, mas, ao contrário, tem como elemento estrutural a posse lícita e legítima da coisa apropriada;
2º) Ao estabelecer que o crime consiste em “deixar de recolher […] na qualidade de sujeito passivo da obrigação”, a lei não distingue o sujeito passivo direto do indireto da obrigação tributária, razão pela qual o sujeito ativo do crime pode ser tanto o contribuinte (sujeito passivo direto da obrigação tributária) quanto o responsável tributário (sujeito passivo indireto da obrigação tributária);
3º) O tipo pressupõe apenas o dolo de não recolher o valor do tributo descontado ou cobrado, dispensando-se motivação especial, como o intuito de fraudar o fisco;
4º) Considerando que o tipo contém a expressão “valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado”, conclui-se que o sujeito ativo do crime é restrito, isto é, nem todos os sujeitos passivos de obrigação tributária que deixam de recolher tributo ou contribuição social devem responder pelo crime, mas somente os que descontam ou cobram o tributo nas circunstâncias tratadas no julgamento. Exclui-se, portanto, a punição do mero inadimplemento.
Este mesmo caso chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio do recurso em habeas corpus 163.334/RS, no qual o agente pretendia reverter a decisão do STJ. O tribunal, no entanto, em decisão proferida há alguns dias, manteve o entendimento de que a conduta tipifica o crime tributário e firmou a seguinte tese:
“O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990”.
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Livro: Leis Penais Especiais – Comentadas artigo por artigo
Artigo publicado originalmente em 28/09/2018 e atualizado em 20/12/2019.