O art. 47 do Decreto-lei 3.688/41 pune, com prisão simples de quinze dias a três meses, as condutas de exercer profissão ou atividade econômica, ou anunciar que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício.
Trata-se de norma penal em branco, pois o tipo estabelece que a profissão ou atividade econômica deve ser exercida sem que se preencham as condições estabelecidas por lei.
No caso dos denominados “flanelinhas” (guardadores de veículos) há a Lei 6.242/75, regulamentada pelo Decreto 79.797/77, cujo art. 1º dispõe: “O exercício das profissões de guardador e lavador autônomo de veículos automotores, com as atribuições estabelecidas neste Decreto, somente será permitido aos profissionais registrados na Delegacia Regional do Trabalho do Ministério do Trabalho”. Além disso, pode haver normas em outras esferas que disciplinem o exercício desse tipo de atividade, como ocorre no Rio de Janeiro com a Lei Municipal 1.182/87, que exige cadastro na Secretaria Municipal de Transportes e uso de jalecos e crachás.
Como são incontáveis os casos de abusos envolvendo flanelinhas em inúmeros municípios brasileiros, especialmente nos de grande porte, nos quais o estacionamento em vias públicas é concorrido em razão do imenso número de veículos circulantes, diversas medidas têm sido adotadas para tentar, se não impedir, ao menos minimizar os transtornos decorrentes dessas práticas. Uma dessas medidas decorre das regulamentações que têm sido estabelecidas e se verifica na seara penal, por meio da imputação do art. 47 da Lei de Contravenções Penais aos indivíduos que insistem em exercer sua atividade sem se adequar às regras impostas pelo poder público.
A tentativa de lidar com o problema pela via penal não tem, todavia, obtido sucesso, pois os tribunais superiores consideram atípico o exercício da atividade de guardador de carros sem o registro determinado em regulamentos.
O STF tem ao menos um julgado no qual afastou a tipicidade em seu aspecto material, reconhecendo, por isso, o princípio da insignificância:
“I – A profissão de guardador e lavador autônomo de veículos automotores está regulamentada pela Lei 6.242/1975, que determina, em seu art. 1º, que o seu exercício “depende de registro na Delegacia Regional do Trabalho competente”. II – Entretanto, a não observância dessa disposição legal pelos pacientes não gerou lesão relevante ao bem jurídico tutelado pela norma, bem como não revelou elevado grau de reprovabilidade, razão pela qual é aplicável, à hipótese dos autos, o princípio da insignificância.” (HC 115.046/MG, j. 19/03/2013)
O STJ também segue a linha da atipicidade, embora sob outro aspecto: o propósito do art. 47 do DL 3.688/41 é o de punir quem exerce, sem as condições estabelecidas em lei, profissões que exigem certa habilidade técnica. Não basta, como ocorre no caso de leis que regulamentam a profissão de guardador ou lavador de veículos, que se imponha um simples cadastro em órgãos públicos; é preciso que o agente exerça alguma função que lhe exigiria conhecimentos especializados:
“A existência de norma estabelecendo a necessidade de registro para o exercício da atividade do “flanelinha”, mediante a simples apresentação de documentos pessoais sem exigência de conhecimentos técnicos especializados, não se afigura, todavia, apta a criminalizar referida conduta à luz dos princípios do direito penal, em especial o da intervenção mínima e da ofensividade.” (RHC 88.815/RJ, j. 28/11/2017)
É nesse sentido a lição de Guilherme de Souza Nucci, para quem o tipo busca “coibir o abuso de certas pessoas, ludibriando inocentes que acreditam estar diante de profissionais habilitados, quando, na realidade, trata-se de uma simulação de atividade laborativa especializada.” (Leis Penais e Processuais Penais Comentadas, Rio de Janeiro: Editora Forense, 2017, vol. 1, p. 165)
Em razão disso, o STJ deferiu liminar no habeas corpus 457.849/RJ para suspender os efeitos da condenação imposta contra um guardador autônomo de carros que trabalhava sem autorização na cidade do Rio de Janeiro.
No caso julgado, o agente havia sido surpreendido cobrando vinte reais para vigiar um veículo estacionado na via pública, e inclusive chegou a discutir com uma pessoa que havia discordado do valor cobrado.
A condenação em primeira instância foi mantida pelo Tribunal de Justiça sob o fundamento de que o agente de fato exercia a profissão sem se adequar à legislação de regência. Além disso, afastou-se o princípio da insignificância porque essa espécie de conduta não pode ser considerada irrelevante em virtude da insegurança social que provoca.
A ministra Laurita Vaz, no entanto, fez incidir a orientação de que a conduta é atípica.
Lembramos apenas que o fato de se considerar atípica a conduta de exercer a atividade sem se adequar aos regulamentos não impede a punição caso o agente constranja alguém a pagar para estacionar o veículo na via pública. A depender das circunstâncias, é possível a imputação do crime de extorsão, como já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo:
“O constrangimento através de grave ameaça para a entrega de dinheiro, porém, decorre inequivocamente do depoimento judicial do ofendido.
Ele confirmou em linhas gerais os fatos descritos na denúncia. Estacionou o veículo no local dos acontecimentos, quando o acusado já se aproximou e exigiu dinheiro para cuidar do automóvel. O ofendido disse que não tinha naquele momento e que pagaria, se tivesse o numerário, na volta. Ato contínuo, o apelante afirmou: “então você vai ver o que vai acontecer com o seu carro”. A vítima deixou o veículo estacionado e, ao retornar, avistou a viatura policial e a acionou, pois estava temeroso por conta da ameaça pretérita. Reconheceu o acusado sem sombra de dúvidas em juízo.
(…)
Assim, o que se tem nos autos é o bastante para a caracterização da extorsão, vez que presentes todas as suas elementares: constrangimento a outrem para que fizesse algo, mediante grave ameaça e com o intuito de obter indevida vantagem econômica.” (Apelação nº 0059997-80.2008.8.26.0050, j. 13/09/2017)
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