Um casal aluga um apartamento para passar alguns dias no litoral e, depois de se instalar, percebe uma pequena luz atrás de um espelho que guarnece o quarto. O inusitado sinal faz com que um deles vistorie o espelho e, espantado, descubra que ali há uma câmera instalada. O equipamento é imediatamente desligado e, logo em seguida, o casal recebe uma ligação do proprietário do imóvel, que indaga se havia ocorrido algum problema, o que indica que as imagens estavam sendo transmitidas em tempo real.
Foi o que ocorreu com um casal na cidade de São Vicente, litoral de São Paulo, segundo informaram inúmeros órgãos de imprensa.
O casal registrou boletim de ocorrência e a polícia apreendeu o equipamento para encaminhá-lo a perícia e instaurou inquérito policial.
Mas o que investiga a polícia neste caso? O voyeurismo é crime?
À primeira vista, o ato de quem instala um equipamento de gravação nas dependências de um imóvel para captar imagens íntimas sem o consentimento dos ocupantes não se subsume a nenhum tipo penal. Não há dúvida de que se trata de conduta que viola gravemente a intimidade e que inequivocamente dá ensejo a indenização por danos morais, mas, lege lata, não há tipo penal ao qual se possa adequar.
Diante disso, qual seria o propósito da investigação deflagrada pela polícia?
Bem, não obstante esta específica forma de violação da intimidade não seja criminosa, é interessante apurar com cuidado quais os propósitos do proprietário do imóvel e, principalmente, há quanto tempo essa conduta vinha sendo perpetrada e exatamente em que circunstâncias.
Não inovaria, por exemplo, quem decidisse instalar câmeras num quarto para posteriormente exigir das pessoas envolvidas nas filmagens alguma forma de vantagem financeira para não divulgar as imagens. Teríamos, no caso, o crime de extorsão, consistente em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa. Dadas as consequências que podem advir da divulgação de um vídeo íntimo, a exigência de vantagem financeira para preservar as imagens pode sem dúvida enquadrar-se no conceito de grave ameaça.
Tampouco inovaria quem exigisse, para não divulgar o vídeo indevidamente produzido, a prestação de favores sexuais. E, no caso, a mesma grave ameaça seria apta para caracterizar o crime de estupro.
Além disso, há de ter em consideração a possibilidade de que, em alguma circunstância, menores de idade tenham sido filmados em situações nas quais os vídeos (ou imagens estáticas deles extraídas) podem ser considerados pornográficos, afinal, o art. 241-E da Lei 8.069/90 trata dessa forma “qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais”. Filmar uma criança nua – mesmo que ela não esteja em atividade sexual – para em seguida distribuir o vídeo na internet é crime. E, considerando que aparentemente as imagens eram transmitidas em tempo real, não se descarta a possibilidade de apurar a transmissão de dados por meio do IP (Internet Protocol).
A conduta noticiada também não pode ser subsumida ao tipo do art. 154-A do CP, porque não se tratou de invasão de dispositivo informático, mas de instalação de equipamento ambiental previamente à ocupação do imóvel pelo casal. Se fosse o caso – de que já se tem conhecimento – de invasão de um computador para obter imagens por meio da câmera do próprio equipamento violado, aí sim poderíamos cogitar a incidência do art. 154-A. Mas, da forma como se deram os fatos, não há, realmente, relação de subsunção da conduta ao tipo.
O que nos resta é esperar que o legislador se atente para situações como esta e adéque a legislação penal. Será, com efeito, imprescindível que os órgãos de persecução criminal tenham meios de coibir conduta tão grave e que tende a se disseminar em virtude não só da lacuna normativa, mas também pela facilidade para adquirir e instalar equipamentos de gravação de qualidade cada vez mais avançada, menores (isto é, fáceis de camuflar) e baratos, o que permite a aquisição por muitas pessoas.
Ademais, esse tipo de conduta pode causar imensos e inimagináveis transtornos às pessoas indevidamente filmadas. Uma vez divulgadas as imagens pela internet, torna-se praticamente impossível evitar a perpetuação do conteúdo na rede, acessível por qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo e a qualquer momento. É imperioso, portanto, que o Direito Penal, limitado pelo princípio da reserva legal, seja dotado de instrumentos capazes de resguardar bem jurídico caro como a intimidade, que tem status constitucional (art. 5º, inc. X) e é atingido com tamanha gravidade.
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