Trata o reconhecimento de um cotejo entre elementos atuais e passados, capazes de propiciar a identidade de determinada pessoa ou coisa. Nesse sentido pronuncia-se Enrico Altavilla, citado por Adalberto Camargo AranhaDa prova no processo penal. Saraiva: São Paulo, 2007, p. 168, para quem o reconhecimento “é um juízo de identidade entre uma percepção presente e uma percepção passada”. Numa definição mais estrita, formulada por Hélio TornaghiCurso de processo penal, 1990, vol. 1, p. 429, “reconhecimento é o ato pelo qual alguém verifica e confirma a identidade de pessoa ou coisa que lhe é mostrada, com pessoa ou coisa que já viu”.
Há duas espécies de reconhecimento: o formal e o informal. O primeiro é aquele realizado com toda a solenidade, atendendo aos critérios legais que veremos logo em seguida. O segundo ocorre em audiência, quando se indaga, da vítima ou testemunha, se reconhece o acusado. Esse segundo ato processual, todavia, não pode ser tido como um verdadeiro reconhecimento porque nenhuma das formalidades elencadas pelo legislador é atendida, “contudo, como adotamos o sistema das provas amplas e não somente as taxativamente enumeradas, bem como o da convicção condicionada, podemos aproveitá-la como uma prova, inominada, nunca como reconhecimento, dando um valor de acordo com a convicção do julgador”, na precisa lição de Adalberto Camargo Aranha.
Tem se destacado, de há muito, a fragilidade do reconhecimento como meio de prova. Tourinho FilhoProcesso penal, 1997, São Paulo: Saraiva, vol. 3, p. 330, em feliz exemplo, recorre à mitologia, para destacar que Ulysses, da Ilíada, após permanecer por dez anos afastado de sua casa, ao retornar não foi reconhecido, desde logo, por Penélope, sua esposa, mas apenas pelo cachorro. E, no mesmo trecho, ensina que “o reconhecimento é, de todas as provas, a mais falha, a mais precária. A ação do tempo, o disfarce, más condições de observação, erros por semelhança, a vontade de se reconhecer, tudo, absolutamente tudo, torna o reconhecimento uma prova altamente precária”.
Hélio Tornaghi Curso de Processo Penal, São Paulo: Saraiva, 7ª. Ed., 1990, pp. 433-4 é ainda mais contundente, ao ressaltar que “quase todos os erros judiciários provêm de três tipos de provas perigosíssimas: a confissão, os indícios e o reconhecimento. Dos três, o último é o mais insidioso. Grandes injustiças, que se tornaram antológicas, e graves enganos que nunca vieram à luz têm decorrido de reconhecimentos equivocados” e exemplifica: “para um ocidental é mais fácil confundir dois chineses que dois americanos. Para um civil é mais viável a confusão entre dois militares uniformizados que entre dois civis com roupas diferentes”.
Por essas razões, a lei processual penal estabelece os critérios sob os quais o reconhecimento deve ser efetuado. Não se trata de um ato no qual o agente é simplesmente trazido sozinho à presença da vítima ou da testemunha para ser reconhecido. Há um procedimento a ser seguido para evitar que o reconhecedor seja induzido, em virtude das circunstâncias, de pressão ou do ambiente, a afirmar a identidade do suspeito.
Os incisos I a IV do art. 226 do CPP estabelecem o seguinte método para que seja efetuado o reconhecimento:
1) a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida: É a primeira forma de cautela que visa a evitar que o reconhecedor seja sugestionado ao ser colocado já de início frente ao suspeito.
2) a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la: Outra forma de evitar que o reconhecedor aponte o suspeito de forma irrefletida e impetuosa.
3) se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela: Trata-se de uma medida que visa, principalmente, à segurança da pessoa que procede ao reconhecimento. Com isso, garante-se também que o reconhecimento seja bem sucedido na medida em que se evita que o reconhecedor se sinta constrangido.
4) do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais: Os pormenores mencionados pela lei referem-se ao nome do reconhecedor, do suposto autor do crime e daqueles que foram colocados a seu lado. Realizado o reconhecimento em juízo, torna-se desnecessário o cumprimento deste requisito, bastando que o juiz faça constar do termo que a testemunha ou a vítima reconheceram o agente, quer diretamente, quer ao ser-lhes apresentado em uma sala de reconhecimento.
Pois bem. E se o reconhecimento realizado na fase policial não cumprir com exatidão os critérios estabelecidos no art. 226 do CPP?
Dentre os quatro requisitos acima expostos, na prática é comum que os reconhecimentos realizados na fase policial não sejam efetuados com observância estrita da regra que determina a colocação da pessoa cujo reconhecimento se pretende ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança. Esta regra deixa de ser cumprida em virtude das óbvias dificuldades de reunir, no momento da produção da prova – que muitas vezes se dá na ocasião da prisão em flagrante –, pessoas com características físicas semelhantes às do suspeito. Daí a razão pela qual a lei estabelece expressamente que a providência deve ser adotada “se possível”.
E, no caso, reconhece-se a nulidade da prova produzida?
De acordo com a orientação firmada pelo STJ, não, pois as disposições do art. 226 do CPP são apenas recomendações para que o reconhecimento ocorra com o menor sugestionamento possível. Não se trata de algo que deve observado estritamente, mas apenas na medida do possível, especialmente porque, ao valorar a prova, o juiz não considera o ato reconhecimento de forma isolada, mas em conjunto com os elementos probatórios advindos da instrução processual:
“1. O acórdão recorrido está alinhado à jurisprudência desta Corte Superior, no sentido de que as disposições contidas no art. 226 do Código de Processo Penal configuram uma recomendação legal, e não uma exigência absoluta, não se cuidando, portanto, de nulidade quando praticado o ato processual (reconhecimento pessoal) de forma diversa da prevista em lei. Precedentes. 2. O Tribunal estadual consignou que o conjunto probatório dos autos, notadamente os depoimentos das vítimas e das testemunhas ouvidas em juízo, não deixa dúvida de que foi o ora agravante o autor do delito, e que a tese de negativa de autoria se encontra totalmente divorciada das provas colhidas nos autos; entender de forma diversa, tal como pretendido, demandaria o revolvimento das provas carreadas aos autos, procedimento sabidamente inviável na instância especial. Inafastável, assim, a aplicação da Súmula 7⁄STJ” (AgRg no AREsp 1.054.280/PE, 6ª Turma, j. 06/06/2017).
“É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que é legítimo o reconhecimento pessoal ainda quando realizado de modo diverso do previsto no art. 226 do Código de Processo Penal, servindo o paradigma legal como mera recomendação (RHC 67.675⁄SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, DJe 28⁄03⁄2016)” (HC 311.080/SP, 5ª Turma, j. 16/05/2017).
Não é diverso o entendimento do STF, que também interpreta a regra do art. 226 do CPP como uma recomendação:
“Consoante jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal, o art. 226 do Código de Processo Penal “não exige, mas recomenda a colocação de outras pessoas junto ao acusado, devendo tal procedimento ser observado sempre que possível” (RHC 119.439/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, DJe 05.9.2014). 5. Ausência de prejuízo obstaculiza o reconhecimento de nulidade do ato” (RHC 125.026 AgR/SP, j. 23/06/2015).
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