Nem sempre é fácil distinguir um crime contra o patrimônio de um crime contra a vida. A questão do homicídio mais furto versus latrocínio ainda desafia os operadores do direito e também àqueles que se preparam para concursos jurídicos.
É cediço que o crime de latrocínio (artigo 157, §3º, segunda parte, do Código PenalArt. 157 do CP (...) § 3º Se da violência resulta lesão corporal grave, a pena é de reclusão, de sete a quinze anos, além da multa; se resulta morte, a reclusão é de vinte a trinta anos, sem prejuízo da multa.) é classificado como crime complexo, formado pela união dos crimes de roubo mais homicídio, realizados em conexão consequencial ou teleológica e com animus necandiTrata-se de termo em latim, que significa que agiu com dolo, ou seja, vontade., podendo a violência caracterizadora do crime de roubo ser empregada antes, durante ou logo após a subtração do bem.
É igualmente evidente que o crime de homicídio aliado à subtração de bem móvel que estava na posse da vítima atenta contra duas objetividades jurídicas, quais sejam, a vida e o patrimônio.
De qualquer sorte, imagine-se a seguinte situação hipotética:
1- dois agressores conversam com a vítima, quando resolvem atacá-la com golpes de faca, causando sua morte;
2- terceira pessoa chega no local após a morte da vítima e aproveitando-se desta, subtrai a carteira do morto, mediante aceite de todos;
3- este terceiro que chegou por último foge dando carona para um dos agressores , levando consigo o bem subtraído.
Diante do quadro, poder-se-ia considerar duas hipóteses, a saber: uma, a ocorrência de latrocínio, envolvendo o crime patrimonial e contra a vida no mesmo contexto, havendo que se considerar a conexão entre ambos; e duas, a ocorrência dos crimes de homicídio (qualificado) e furto, uma vez havendo que se considerar que o intento dos dois primeiros era um (não se falava em subtração), assim com o intento do terceiro seria outro, não havendo conexão entre ambas as situações.
Muitas vezes questionado em concurso, situações como estas colocam o candidato em dúvida, ainda mais se forem considerados elementos externos, como ansiedade, tempo e estresse. A análise do caso, contudo, deve se dar de forma técnica e sempre utilizando de elementos que a prova fornece. Nunca se esqueçam disso! Se a banca de concurso exige capitulações precisas, que correspondem a pontos, os examinadores hão de fornecer caminhos para tanto.
Voltando ao caso apresentado, constata-se que após as agressões físicas contra a vítima, que foram a causa da morte, os agente se evadiram do local dos fatos na posse do bem subtraído, o que pode configurar a prática do crime de latrocínio.
Nesse entendimento, colhe-se o julgadoTAMG - RT 751/677:
“Inviável a desclassificação do crime de latrocínio para homicídio se o réu, após matar a vítima, a despoja de seus pertences, uma vez que é irrelevante, para a caracterização daquele delito, o motivo inicial da conduta criminosa”.
E ainda:
TJSCJCAT 77/670-1: “Mesmo que se admita como verdadeira a afirmação do réu de que não tinha a intenção de roubar, se após matar a vítima e ainda com o cadáver a sua mercê despoja-a de seus haveres, caracterizou-se o delito de latrocínio porque, não se podendo invadir o subconsciente de alguém para aferir das suas verdadeiras e reias intenções, pela ação é que se verifica a conformidade desta com aquela”
Igualmente nessa linha, já decidiu o Tribunal de Justiça de Santa CatarinaTJSC, Apelação Criminal n. 2014.015411-7, de Araranguá, Rel. Des. Paulo Roberto Sartorato, j. 03/03/2015. Grifamos:
[…] 2. Constatadas as agressões físicas na vítima, que foram a causa de sua morte, e verificado que após as agressões os réus evadiram-se do local na posse do veículo da vítima, fica inviabilizada a desclassificação do crime de latrocínio para os delitos de homicídio ou lesão corporal seguida de morte ou ainda furto ou roubo qualificado pela lesão corporal de natureza grave. […].
O tema é tormentoso. Diante disso, deve o candidato perguntar: os agentes queriam apenas matar? Veio a subtração a reboque? Este é o ponto central da questão, pois estabelece, ou não, o vínculo completo entre as condutas e os agentes.
Entende-se que os fatos melhor se amoldam ao latrocínio, pelo resumo que se segue do contexto:
1) a subtração só ocorreu por conta da morte da vítima, praticada pelo (s) próprio (s) acusado (s);
2) não houvesse morte, não haveria subtração, como ocorreu;
3) todos os fatos foram praticados no mesmo contexto, não havendo como separar a subtração da violência anteriormente praticada;
4) o (s) acusado (s) se aproveitou da morte da vítima, por ele mesmo causada, para a subtração;
5) muito embora somente dois tenham matado a vítima e somente um tenha subtraído seus pertences, todos concordaram com a conduta de todos, para que o ciclo criminoso completo se consumasse. Ainda, dois dos três agente fugiram juntos levando o bem subtraído.
Houve, portanto, um alinhamento dos atentados à vida e ao patrimônio, com perfeito vínculo subjetivo entre os participantes. Mas, lembrem-se que o caso é hipotético e admite outra interpretação.
Assim, cumpre esclarecer a perfeita possibilidade de concurso de crimesEm resumo: Dá-se o concurso de crimes quando o agente, com uma ou várias condutas (ação ou omissão), realiza pluralidade de crimes. (Trecho retirado do Manual de Direito Penal (parte geral) - Rogério Sanches Cunha entre homicídio e furto, desde que se consiga distinguir os dolos distintos.
Segundo se observa do julgado transcrito do Tribunal de Justiça de Santa CatarinaProcesso: 2013.089993-3 (Acórdão). Relator: Roberto Lucas Pacheco. Julgado em: 28/08/2014.:
[…]Quando a morte e a subtração patrimonial – ainda que praticadas no mesmo contexto – resultarem de ações distintas, motivadas por desígnios autônomos, não há falar em ato infracional análogo ao delito de latrocínio, mas, sim, em equiparação aos crimes de homicídio e de furto.
Como se vê, a questão é de interpretação. O mesmo caso pode constituir crime único contra o patrimônio, sujeito ao juízo singular, ou concurso entre crime contra a vida e crime contra o patrimônio, sujeito ao Tribunal do Júri. A pergunta na mesma situação pode variar o resultado, dependendo da forma com que os fatos ocorridos são interpretados.
Então, como sempre digo, a vida jurídica na sala de audiências é completamente diferente da vida jurídica de provas e concursos.
Na primeira, o operador analisa os fatos, videos, o lapso temporal entre as condutas, além dos depoimentos e, se for o caso, até as expressões corporais. Com tudo isso na mão, lança sua interpretação.
Em uma prova de concurso, não se tem nada disso. Tudo deve ser resolvido de acordo com o que a prova fornece. Lembrem-se que o examinador precisa indicar o caminho, ou então não há como se chegar até os pontos correspondentes, para a obtenção da note.
Caso a prova se utilize de expressões que unam as os crimes, que reforcem o vínculo subjetivo entre os agentes, tem-se o latrocínio. Assim, palavras como “aproveitando-se”, “em razão de (ou da)”, ou expressões que demonstrem que todos os envolvidos assentiram às condutas, que o bem subtraído se deu em proveito de todos, ou então a menção a um lapso temporal muito exíguo ou imediato entre uma conduta e outra, induzem que a banca examinadora deseja unir os bens jurídicos, subliminarmente induzindo a resposta (e assim tem que ser feito, pois senão não há como se chegar a uma resposta que equivale à note).
Por outro lado, caso a prova use palavras que separem as condutas criminosas, que induzam um lapso temporal maior entre estas, ou que coloque outras condutas irrelevantes entre o homicídio e a subtração, ou mesmo mencione que os agente tenham matado a vítima, saído do local e voltado tempos depois, tem-se que a prova está fazendo questão de distinguir os contextos, separando as condutas, os dolos, e portanto, sugerindo que o candidato vá para o concurso entre homicídio e furto.
Assim, além de conhecimento jurídico, deve estar o candidato preparado para interpretar a prova de concurso.
E, lembre-se, erro comum, mas fatal. Não queiram resolver uma prova de concurso como se estivessem em sala de audiência. Na vida real, não se buscam notas nem aprovações. Na prova de concurso, busca-se demonstrar conhecimento. Um grande abraço, até a próxima.
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