1 – OS FATOS
A comunicadora Bárbara Zambaldi Destefani, do Canal “Te Atualizei” do Youtube teve sua monetização cancelada por uma decisão proferida em processo administrativo do TSE, sem que fosse sequer notificada a respeito, bem como sob a alegação genérica de prática de “fake News” sem que se apontasse especificamente qual ou quais teriam sido as notícias ou alegações falsas por ela proferidas.
Já há alguns meses sofrendo esse prejuízo profissional que chega a atingir recursos alimentares da própria implicada e de sua família (ela tem um filho menor enfermo), sem conseguir nem mesmo saber qual a acusação que contra si paira no referido processo que, segundo consta, corre em sigilo, o que seria de se esperar por parte da comunidade de jornalistas e comunicadores em geral, não importando qual sua coloração político – ideológica? Seria a reação de solidariedade com a colega oprimida. Mas, não foi nada disso que aconteceu.
Eis que a conta do Twitter de Bárbara recebe um selo azul de autenticação da plataforma, tendo em vista tratar-se de figura pública com muitos seguidores e alto alcance midiático. O selo azul indiretamente confere credibilidade àqueles que o possuem, pois que significa tratar-se de perfil autêntico, bem como de maior capacidade influenciadora. No entanto, na verdade, o que o selo azul do Twitter realmente significa é que aquele perfil visualizado é o original e não algum imitador, apenas isso.
O que deveria ser algo indiferente ou rotineiro na dinâmica das redes sociais, acabou se transformando em uma polêmica criada exatamente por outros jornalistas e comunicadores, os quais pleiteavam a retirada do selo conferido. Mas, nem todos ficaram somente em uma crítica meramente deslocada ou sem sentido. Houve quem partisse para o abuso com a inequívoca intenção de ofender a honra da comunicadora em questão. Um desses chegou a afirmar no Twitter que Bárbara não merecia o selo azul, mas sim “uma tornozeleira eletrônica”. Seguiu afirmando, sem apontar fatos, que a comunicadora só faria “mentir” e seria uma “negacionista” (seja lá o que isso signifique). Não bastasse isso, aludiu ao filho menor de Bárbara, afirmando que a criança no futuro iria se envergonhar da mãe, tendo em vista ser ela uma propagadora de “mentiras na internet”. No seguimento, naquilo que se poderia chamar de um discurso direto de ódio, insinuou que o “futuro” da comunicadora poderia “também ser na cela”, dando a entender que não somente uma “tornozeleira” usada em criminosos seria suficiente, mas haveria necessidade, em algum momento, da própria prisão de Bárbara. Além disso, afirmou que Bárbara deveria (seria um conselho seu) se candidatar a cargo que lhe conferisse imunidade, reiterando indiretamente a afirmação de que ela poderia ser presa. Não resta dúvida de que o jornalista em questão atribuiu claramente o epíteto de “criminosa” a Bárbara, já que somente usam tornozeleiras eletrônicas e ficam confinados em celas tais pessoas, salvo algumas exceções de inocentes e indivíduos que sofrem abusos de autoridade, aos quais com certeza não estava se referindo o profissional em suas mensagens no Twitter.
Bárbara limitou-se a responder às ofensas e insistir na indagação ao jornalista sobre quais seriam seus crimes, quais seriam suas mentiras, pois, afinal de contas, nem mesmo o TSE até o momento a notificou a respeito e ela não é acusada formalmente de absolutamente nada. Quanto a isso o jornalista fez ouvidos moucos.
São estes os lamentáveis fatos que se passaram.
2 – A BÁRBARA INVERSÃO DE VALORES
Como já foi dito, o que se esperaria da classe dos jornalistas e comunicadores em geral com relação à situação de Bárbara, seria uma ação solidária para que pelo menos se justificassem ou fundamentassem as medidas contra ela tomadas. Isso não por uma questão de bondade, caridade ou mero espírito de corpo, mas por uma reação de autopreservação. Ora, hoje é a comunicadora em destaque que sofre restrições injustificadas e não fundamentadas de acordo com a lei. E amanhã? Quem será? Poderá ser o próprio jornalista acima enfocado ou quaisquer outros comunicadores de redes sociais ou de veículos de massa, artistas, escritores, acadêmicos, pessoas comuns etc.. Está em jogo a liberdade de pensamento, opinião, expressão e imprensa.
Entretanto, parece ser difícil para o indivíduo polarizado ideologicamente enxergar no “outro” um semelhante, exercitar um mínimo que seja de empatia.
Há bastante tempo escrevi um texto acerca da necessidade de conscientização quanto ao fato de que os direitos e garantias individuais não são “direitos dos outros” ou de “um outro” diverso de nós, são nossos próprios direitos. [1] No bojo daquele texto outrora produzido utilizei uma passagem literária que tomo a liberdade de novamente trazer à baila por seu alto poder ilustrativo e sua extrema pertinência na atual conjuntura. Trata-se de um conto inspirado de Bernardo de Carvalho, intitulado “Estão Apenas Ensaiando”.
O texto literário [2], narra a história de um ator que ensaia a fala de um lavrador que perdeu a esposa durante a guerra e que agora implora à Morte a restituição da mulher amada. Acontece que o ator diz o texto com certo “distanciamento”, o que leva o diretor da peça a frequentemente interromper os ensaios, exigindo muito mais vigor e desespero na interpretação. Não obstante, o ator insiste numa postura indiferente, que considera mais adequada, jamais cedendo aos apelos sensatos do diretor.
Durante o ensaio o ator aguarda a chegada de sua esposa no teatro, olhando constantemente no relógio, já que haviam combinado se encontrarem ali com horário marcado, estando ela atrasada.
É em meio a esse cenário que um personagem adentra o teatro e se dirige ao diretor, dizendo-lhe algo ao pé do ouvido. A simples troca de olhares e a reação da assistente do diretor, desatando em choro, dão ao ator a intuição de que algo terrível acontecera à sua mulher e que esta seria a razão do atraso. Nessa oportunidade o ator está no meio de sua fala e, por fim, encarna como nunca o lavrador desesperado. Nas palavras de Bernardo Carvalho:
“(…) e por fim compreende aterrorizado e a um só tempo a sinistra coincidência da cena e do momento, o que aquele vulto veio anunciar sobre o mundo do lado de fora, com buzinas, motores e sirenes; compreende por que o diretor não o interrompeu desta vez, porque por fim esteve perfeito na pele do lavrador em sua súplica diante da morte; compreende que por um instante encarnou de fato o lavrador, que involuntária e inconscientemente, por uma trapaça do destino, tornou-se o próprio lavrador pelo que aquele vulto veio anunciar; compreende tudo num segundo, antes mesmo de saber dos detalhes do acidente que a matou atravessando a rua a duas quadras do teatro, diante dos olhos arregalados do diretor e da assistente (…)”. [3]
Quão lamentável não seria um dia ver toda uma classe de comunicadores brasileiros recebendo um choque de realidade tão intenso como este que a literatura nos proporciona vivenciar!
Este é um claro exemplo de que a cultura geral e, em específico, a literatura, com sua carga sensibilizante, deve integrar a formação do jurista e do homem. Há incontáveis lições a serem aprendidas pelo jurista e por todos (incluindo obviamente jornalistas e comunicadores) com a arte, a literatura, a filosofia…, as quais jamais serão encontradas nas letras frias das leis ou nos limitadíssimos “comentários” doutrinários dos manuais “didáticos”.
Na realidade, a reflexão mais urgente e imprescindível para evitar reações irracionais a formularem pretensas justificativas para legislações de terror e autoritarismo ou mesmo para atos à margem da lei e da Constituição, é aquela de recordar e repisar constantemente que o “outro” é um semelhante, portador dos mesmos direitos e garantias que sua condição humana comum impõe e que, quando pensamos retirar-lhe esses direitos é de nós mesmos, nossos familiares, amigos e futuras gerações que retiramos. Desprezar ou destruir os direitos e garantias erigidos ao longo de anos é ato tão insano quanto um suicídio. É matar a própria liberdade.
A verdadeira emergência em tempos de crise é encarnar sem demora o humano que há nos “outros”, ou melhor, reconhecer e encarnar irresignavelmente “nossa” humanidade. Isso sob pena de algum dia experimentar essa identificação de forma abrupta como aconteceu ao ator no conto de Bernardo Carvalho.
Afinal, “se os homens não conseguem referir-se a um valor comum, reconhecido por todos em cada um deles, então o homem se torna incompreensível para o próprio homem”. [4] É somente neste estado de confusão mental e desespero diante daquilo que se apresenta como um incompreensível absurdo que se pode conceber a reação tresloucada descrita neste texto. As pessoas que assim agem por se acharem nesse estado de deterioração moral e intelectual são quase dignas de piedade.
Mas, não é somente a desensibilização empática que está a perverter os valores a serem levados em consideração no contexto.
Tendo em vista a condição em que se encontra Bárbara, é incrível que até mesmo juristas não venham manifestar-se de forma contundente a respeito da situação que se desenrolou. Não é admissível ou compreensível nem mesmo aos jornalistas e outros comunicadores sem formação jurídica, a alegação de ignorância a respeito dessa terrível perversão, que significou a atitude diante da concessão do selo azul à conta de Twitter da envolvida.
Considerando que Bárbara é tão somente submetida a uma preliminar investigação administrativa do TSE e de Inquéritos em andamento pela Polícia Federal, cuja legitimidade e legalidade já se demonstraram serem altamente duvidosas, [5] é inafastável o reconhecimento de plena aplicação da “Presunção de Inocência”, a qual é considerada uma “regra de tratamento” imposta constitucionalmente. Aliás, ainda que tais procedimentos fossem indiscutivelmente legítimos e legais, nada se alteraria a respeito da necessária obediência constitucional à “regra de tratamento” da “Presunção de Inocência”. Conforme ensina Moraes:
Na cultura da Civil Law, a forma mais tradicional de se compreender a presunção de inocência é considerá-la como uma garantia de que o cidadão será tratado na persecução penal como inocente. Isto é, garante-se que os efeitos de uma eventual decisão condenatória somente sejam aplicados após seu trânsito em julgado. Salienta-se, nesse sentido, que a presunção de inocência como norma de tratamento decorre diretamente dos direitos e garantias processuais do acusado, tais como o devido processo legal, legalidade, imparcialidade, contraditório e ampla defesa, duplo grau de jurisdição, dentre outros, assegurando ao réu o estado de inocente que apenas poderá ser vencido por uma decisão penal condenatória com trânsito em julgado legal e constitucional, ou seja, que tenha respeitado e observado tais princípios supra elencados. [6]
Note-se que a “Presunção de Inocência”, como nos alerta Malatesta, não é uma regra ou princípio que tenha sido erigida apenas no âmbito teórico, eventualmente confrontando a realidade dos fatos, derivando dos devaneios de algum nefelibata. Não, a “Presunção de Inocência” é algo que se impõe como um conhecimento por presença que deriva de uma intuição direta da realidade circundante. É fato real e conhecido de todos por experiência diretamente testemunhável que a grande maioria das pessoas não é criminosa. Dessa constatação real é que se chega à “Presunção de Inocência”, a qual, é obviamente uma presunção relativa ou “juris tantum”, cabendo e exigindo prova em contrário para eventual condenação e tratamento da pessoa envolvida como culpada. [7]
Nessas circunstâncias, Bárbara necessariamente teria de ser tratada como inocente, seja pela Polícia, pelo TSE ou por qualquer juízo ou tribunal, seja pela população em geral e, com ainda mais razão, por seus pares comunicadores e jornalistas. E não foi o que aconteceu.
Entretanto, a inversão de valores é ainda mais intensa do que se possa pensar. Estando Bárbara numa situação clara e evidente de “Presunção de Inocência”, o recebimento de um selo de autenticidade conferido por uma rede social desinteressada e que teria atuado tão somente por uma análise totalmente objetiva de seus critérios de reconhecimento, deveria ser um motivo de reforço dessa “Presunção de Inocência” e, portanto, de questionamento, não da rede social ou da comunicadora, mas do Tribunal que impõe restrições à atuação desta última nas redes sociais, sem qualquer fundamentação plausível. A atribuição do selo de autenticidade pelo Twitter a Bárbara deveria ter sido motivo para mobilização de toda a classe de jornalistas e comunicadores em uma cobrança rigorosa frente ao TSE a fim de que se justifiquem as restrições impostas à comunicadora em questão. Ao contrário disso, o que se viu foi uma avalanche de ofensas à honra da comunicadora e de críticas sustentadas exatamente na decisão judicial restritiva que não se sustenta em fundamentos concretos e se vê ainda mais questionada pelo evidente prestígio e idoneidade comprovados daquela que é oprimida sem maiores demonstrações de legitimidade dessa repressão.
Essa situação invertida somente pode ser explicada pela cegueira deliberada ou patológica provocada pela atuação enviesada seja da nossa “Justiça”, seja dos próprios comunicadores e jornalistas em suas interações e atuações.
Nesse ponto é interessante perceber que o nome da vítima de toda essa perversão, Bárbara, tem duas linhas de significação. Uma delas que pode retratar sua atuação vitoriosa como comunicadora. Popularmente o termo “bárbaro” pode designar aquilo que é muito interessante, de excelente qualidade, como quando se diz: “Ontem assisti a um filme bárbaro”. [8] Por outro lado, há um significado negativo para o termo “bárbaro”, que pode referir-se ao “estrangeiro”, “forasteiro” ou “a estranha”, isso em razão da origem histórica referente ao emprego do termo por Gregos e Romanos para designar povos diversos considerados inimigos, atrasados, violentos etc. A palavra “bárbaros” derivou no grego de “barbar”, que tem o significado de “língua incompreensível”, pois os gregos usavam essa onomatopeia para expressar o que ouviam quando presenciavam estrangeiros falando, um “Bar – bar”, que seria o equivalente ao “blá – blá” em português. [9]
É nítido que a comunicadora em questão foi tratada por seus pares como “uma estranha”, conforme se demonstrou já no início deste item, pela absoluta falta de seu reconhecimento como semelhante. Neste sentido, Bárbara foi tratada barbaramente por outros comunicadores e jornalistas (não se trata de trocadilho infame, mas da descrição rigorosa dos fatos). E toda essa barbárie se dá e é possível somente porque vivenciamos um momento de escalada do que Mário Ferreira dos Santos denominou de “Invasão Vertical dos Bárbaros”. O nome da comunicadora se adequa, em sua pessoa e no exercício de sua profissão ao sentido positivo do termo em comento. Mas, seus detratores estão em plena consonância com o “barbarismo vertical”, cuja característica das mais acentuadas é “apresentar a força como superior ao direito”, admitindo sem peias o afastamento do Direito “do campo da Ética para integrar-se apenas no campo da Política”. [10] Nesse plano se dá ainda a ação do “negativo”, que é exatamente o que permite uma “inversão da escala de valores” que atinge todos os setores. [11]
3 – OS CRIMES CONTRA A HONRA
Parece que além de uma inversão total quanto à posição que deveriam tomar com relação à situação por que passa a comunicadora Bárbara, bem como quanto à sua condição de presumidamente inocente, a qual se agiganta com a conferência do selo pela rede social Twitter, os detratores da comunicadora em destaque se olvidaram daquilo que tanto parecem gostar, ou seja, dos limites que realmente existem para a liberdade de expressão, seja em geral, seja nas redes sociais, devendo-se ter em conta bens jurídicos como a honra das pessoas afetadas pelas mais diversas manifestações. Não se admite em uma democracia a censura prévia, como tem ocorrido com várias pessoas, mas todos são responsáveis por aquilo que veiculam e, se desbordam voluntariamente e inequivocamente os limites de uma discussão, partindo para ofensas pessoais com dolo de difamar, injuriar ou caluniar, incidem em tipos penais previstos dentre os chamados “Crimes contra a Honra”, bem como em ilícito civil indenizável.
Utilizando o exemplo já narrado neste trabalho do jornalista e seus impropérios, é possível tipificar, em tese, a conduta de acordo com o Código Penal Brasileiro.
Um primeiro ponto importante é ter presente a distinção entre os crimes de calúnia, difamação e injúria.
O Código Penal prevê três modalidades de crimes contra a honra, a saber: calúnia (art. 138), difamação (art. 139) e injúria (art. 140). Uma das questões mais importantes é saber diferenciar cada um desses crimes. Assim sendo, vejamos os conceitos: a)Calúnia é a falsa imputação de fato criminoso a outrem; b)Difamação é a imputação a alguém de fato ofensivo à sua reputação; c)Injúria é a ofensa à dignidade ou decoro de outrem.
Verifica-se que nos dois primeiros (calúnia e difamação) atribui-se sempre um fato ofensivo da honra a uma pessoa. A diferença é que na calúnia o fato é criminoso e na difamação ele é apenas desonroso, imoral etc. Por seu turno, a injúria constitui não a atribuição de um fato (criminoso ou não), mas o mero xingamento, rotulação, palavreado ofensivo. [12]
De acordo com o exposto a respeito das ofensas proferidas pelo jornalista envolvido, verifica-se que ele atribui a qualidade negativa de “mentirosa” à comunicadora, alega que o filho menor desta “terá vergonha” dela no futuro, a chama de “negacionista” (seja lá o que isso queira dizer), diz que ela deveria ser encarcerada e/ou ser submetida a monitoramento com “tornozeleira” eletrônica. Todas essas afirmações são obviamente ofensivas diretamente à honra da vítima e não há como afirmar que se fazem sem inequívoca intenção de injuriar. O crime de injúria (artigo 140, CP), está, portanto, em tese, perfeitamente caracterizado e é perpetrado de forma continuada (inteligência do artigo 140, CP c/c artigo 71, CP). A continuidade delitiva se configura porque o agente reitera, mediante várias ações no Twitter, as diversas ofensas, perpetrando crimes da mesma espécie e em condições de tempo, lugar e modo de execução semelhantes.
Observe-se que embora se possa inferir que ao atribuir a condição de mendaz e criminosa à vítima poderia haver também crimes de difamação e calúnia, isso não se sustenta. Explica-se: como já exposto acima, para a configuração de ambos os delitos em comento seria necessário que o ofensor descrevesse condutas ou situações fáticas (narrativas com início, meio e fim), as quais indicassem a ofendida proferindo supostas mentiras ou praticando crimes que não praticou. Ocorre que, mesmo quando indagado por Bárbara a respeito de quais seriam as mentiras ou crimes por ela perpetrados, o ofensor simplesmente se cala. Ou seja, fica na mera ofensa escrita leviana sem qualquer substrato narrativo, tal como quando se xinga alguém com um palavrão, o que é exemplo típico de injúria e não de difamação ou calúnia. Fazendo uma ponte com o item anterior, é interessante notar que nem o ofensor nem os órgãos públicos se dispõem ou têm capacidade de efetivamente descrever condutas reais, mas apenas de proferir imputações genéricas.
Não é possível pugnar pela excludente de punibilidade prevista no artigo 142, II, CP em prol do jornalista enfocado, tendo em vista a ressalva legal de que não se aplica a benesse “quando inequívoca a intenção de injuriar”. Certamente o ofensor poderia discordar das ideias e afirmações de Bárbara e as criticar, até mesmo de forma incisiva. No entanto, parte para ofensas pessoais totalmente desnecessárias e que em nada contribuem para o debate de ideias. Ao contrário, quando instado a esclarecer quais seriam as tais ações mentirosas e/ou criminosas, não diz absolutamente nada, não desmente a comunicadora em nenhum ponto específico, não aponta qual infração à lei teria ocorrido para que tanto ela como o público possam avaliar a situação. Não, apenas permanece na conduta social e intelectualmente inútil de assacar ofensas genéricas “ad hominem”. Desse modo, não há como negar que o intento não é de eventual crítica séria, mas tão somente de ofender a honra de terceiro.
Importante salientar que, tendo em vista que o autor teria cometido os crimes de injúria por meio da internet na rede social Twitter, haverá, de acordo com o artigo 141, § 2º., CP, um aumento considerável da pena prevista da ordem do triplo (alteração feita pela Lei 13.964/19). Dessa forma, a pena prevista “in abstracto”, que seria normalmente de detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, passará a ser de detenção, de 3 (três) meses a 1(um) ano e 6 (meses). Há a possibilidade de aplicação de incremento penal em cascata, devido ao crime continuado, conforme acima exposto, variando o aumento entre um sexto e dois terços. Entretanto, o mais comum nestes casos é que se opte pela aplicação do maior aumento (triplo), afastando o menor, isso nos termos do artigo 68, Parágrafo Único, CP. Obviamente é inviável cumular o aumento do triplo, previsto no artigo 141, § 2º., CP com o aumento de um terço, previsto no artigo 141, III, CP (crime praticado na presença de várias pessoas ou por meio que facilite a divulgação da ofensa). O aumento do § 2º. é uma clara especialização da fórmula geral contida no inciso III, de modo que seu uso conjunto configuraria “bis in idem”, ou seja, o infrator seria punido duas vezes pelo mesmo motivo, o que não é aceitável de acordo com os princípios gerais do Direito Penal. Dessa forma, parece que o mais natural será que o caso seja abrangido pelos Juizados Especiais Criminais, uma vez que, mesmo com as exasperações legais, a pena “in abstracto” tem seu máximo menor que dois anos (inteligência do artigo 61 da Lei 9.099/95).
Não há dúvida de que, além da responsabilidade criminal, haverá o dever de indenizar no cível pela prática de ato ilícito, nos estritos termos dos artigos 186, 187 e 927, do Código Civil Brasileiro.
Fato é que a avalanche de manifestações ofensivas à comunicadora Bárbara, certamente situa a todos os envolvidos naquilo que Pablo Malo, fazendo referência ao trabalho de Laird Wilcox, descreve como “difamação ritual” (sendo a palavra “difamação” aqui usada em seu caráter amplo ou lato de ofensa à honra e não em seu sentido estrito técnico – jurídico). Essa “difamação ritual” se constitui da destruição ou do intento de destruição da reputação, “status” ou caráter de uma pessoa ou grupo por meio de linguagem ou publicações injustas. O elemento central da “difamação ritual” é a retaliação por atitudes, opiniões ou crenças, reais ou imaginárias da vítima, com a intenção de silenciar ou neutralizar sua influência, a fim de que sirva de exemplo aos demais, evitando que outros mostrem uma independência ou “insensibilidade” similar e não observem os tabus ou ideias hegemônicas supostamente devidas. A “difamação ritual” não se encaixa num debate aberto ou no intento de argumentar, persuadir ou fazer um contraponto civilizado de ideias. Ela é usada como um meio de “castigo” e “opressão”. Mesmo quando tem elementos cognitivos, seu ânimo é primariamente emocional. A “difamação ritual” é usada para “ferir, intimidar, destruir e perseguir e para evitar o diálogo, o debate e a discussão de que depende uma sociedade livre”. [13]
4 – CONCLUSÃO
Percebe-se que o ocorrido com a comunicadora Bárbara Zambaldi Destefani é demonstrativo de um fenômeno de inversão de valores e incapacidade de empatia, ocasionado por uma polarização ideológica cega. Isso leva os indivíduos a atuarem em prejuízo de suas próprias liberdades e direitos, movidos por uma reação emocional de satisfação em observar a opressão sofrida por seus semelhantes, ao ponto de olvidar princípios básicos como a “Presunção de Inocência”. Isso conduz ao descontrole e ao cometimento de abusos no exercício de direitos que seriam legítimos, mas acabam, devido ao uso abusivo, descambando para os ilícitos penal e civil.
Dessa forma é que é possível que a simples conferência de um selo azul do Twitter a uma comunicadora de comprovada capacidade agregadora e que reflete os sentimentos e opiniões de grande parcela da população, se transforme numa polêmica homérica e no linchamento virtual da influenciadora digital.
Um mero pontinho azul na tela. Isso faz lembrar um livro em que Carl Sagan descreve a Terra como um “Pálido Ponto Azul”, explorando uma percepção materialista apequenada daquilo que somos, bem como do lugar que ocupamos no universo. [14] Embora discordando da visão materialista e diminuidora do humano apregoada por Sagan na sua obra, a expressão “pálido ponto azul” pode ser bem empregada para demonstrar como uma bagatela pode ser motivo para reações exacerbadas de pessoas movidas pelo desejo de calar toda e qualquer dissidência do discurso hegemônico ao qual ideologicamente aderem. A única coisa necessária é um pretexto que possa ser utilizado, mesmo que de forma distorcida, pervertida ou até mesmo invertida.
5 – REFERÊNCIAS
BÁRBARA. Significado do Nome Bárbara. Dicionário de Nomes Próprios. Disponível em https://www.dicionariodenomesproprios.com.br, acesso em 19.01.2022.
BÁRBARO. Significado de bárbaro. Dicionário on line de Português. Disponível em https://www.dicio.com.br/barbaro, acesso em 19.01.2022.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal Parte Especial. Rio de Janeiro: Processo, 2017.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Inquérito Judicial das “Fake News”: as obviedades que precisam ser explicadas. Disponível em https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/artigos/854579298/inquerito-judicial-das-fake-news-as-obviedades-que-precisam-ser-explicadas , acesso em 19.01.2022.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Valorizando as Garantias ou a Difícil Arte de Enxergar o Outro como Igual.
CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.
MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996.
MALO, Pablo. La Difamación Ritual. Evolución y Neurociencias.
MORAES, Maurício Zanoide. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2010.
MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.
SAGAN, Carl. Pálido Ponto Azul. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
SANTOS, Mário Ferreira dos. Invasão Vertical dos Bárbaros. São Paulo: É Realizações, 2012.
TUMA JÚNIOR, Romeu, TOGNOLLI, Claudio. Assassinato de Reputações – Um Crime de Estado. Rio de Janeiro: TopBooks, 2013.
WILCOX, Laird. The Practice of Ritual Defamation – How Values, Opinions, and Beliefs are Controlled in Democratic Societies.
NOTAS
[1] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Valorizando as Garantias ou a Difícil Arte de Enxergar o Outro como Igual.
[2] MORICONI, Ítalo (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 592 – 595.
[3] Op. Cit., p. 595.
[4] CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Trad. Valerie Rumjanek. 6ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 39.
[5] Cf. CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Inquérito Judicial das “Fake News”: as obviedades que precisam ser explicadas.
[6] MORAES, Maurício Zanoide. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2010, p. 427.
[7] MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996, p. 133 – 134.
[8] BÁRBARO. Significado de bárbaro. Dicionário on line de Português. “[Popular] que é muito legal, interessante, filme bárbaro”.
[9] BÁRBARA. Significado do Nome Bárbara. Dicionário de Nomes Próprios.
[10] SANTOS, Mário Ferreira dos. Invasão Vertical dos Bárbaros. São Paulo: É Realizações, 2012, p. 27 – 28.
[11] Op. Cit., p. 52.
[12] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Direito Penal Parte Especial. Rio de Janeiro: Processo, 2017, p. 141.
[13] MALO, Pablo. La Difamación Ritual. Evolución y Neurociencias. Similarmente sobre o tema temos no Brasil: TUMA JÚNIOR, Romeu, TOGNOLLI, Claudio. Assassinato de Reputações – Um Crime de Estado. Rio de Janeiro: TopBooks, 2013, “passim”.
[14] SAGAN, Carl. Pálido Ponto Azul. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, “passim”.