A Lei 14.245/2021, publicada em 22.11.2021, denominada Lei Mariana Ferrer, traz alterações no Código Penal, Código de Processo Penal e Lei 9.099/1995, visando a coibir a atos que atentem contra a integridade física e psicológica da vítima.
O diploma legal teve como inspiração os fatos ocorridos em audiência de instrução e julgamento envolvendo processo sobre suposto delito sexual, em que Mariana Ferrer, independente do resultado processual, teve tratamento considerado incondizente pelos atores do processo judicial. Naquele momento, questionou-se os limites da atuação da defesa, acusação e do magistrado diante de pessoa que se encontra na condição de vítima no processo.
Nos atendo às alterações de cunho processual, a Lei Mariana Ferrer inseriu o art. 400-A no âmbito do processo comum, trazendo a seguinte redação:
“Art. 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I – a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II – a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.”
No mesmo sentido, referida lei inseriu novo dispositivo legal no regramento do procedimento do Tribunal do Júri, conforme segue:
“Art. 474-A. Durante a instrução em plenário, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz presidente garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I – a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II – a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.”
Exatamente no mesmo sentido, inseriu-se regramento para a audiência de instrução e julgamento no rito sumaríssimo, regulado pela Lei 9.099/1995:
“Art. 81. …………………………………………………………………………………………
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§ 1º-A.Durante a audiência, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I – a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II – a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.
O objetivo da lei é evitar que os atos instrutórios, especialmente aqueles relacionados à oitiva da ofendida/vítima e a testemunhas, configurem constrangimento ilegal.
Considerando os efeitos do crime, podemos mencionar a vitimização primária, decorrente do próprio delito. A vitimização secundária ou revitimização está relacionada a desdobramentos do fato criminoso em que a vítima experimenta, novamente, os efeitos do delito, especialmente quando necessita praticar atos decorrentes da apuração estatal, a exemplo de exames de corpo de delito, depoimentos na esfera policial e em juízo, reconhecimento do agressor, dentre outros.
Portanto, alguns efeitos da revitimização decorrem da atuação das instâncias formais de controle social, dentre elas, a Polícia Judiciária, o Ministério Público e o Poder Judiciário. É importante pontuar, entretanto, que esses efeitos, como regra, são involuntários, decorrentes da necessária apuração dos fatos pelo Estado, cabendo, então, a implementação de procedimentos que reduzam os danos à vítima.
A Lei 14.245/2021 possui um viés diferente, ou seja, procura combater a violência processual – subespécie de violência institucional, que, por sua vez, é uma modalidade de revitimização secundária – levada a efeito pelo poder público, que transborda a atuação normal e esperada na condução de processos e da Administração da Justiça.
Para fins de entendimento, podemos trazer o conceito legal de violência institucional trazidos na Lei 13.431/2017 e no Decreto 9603/1998, respectivamente:
Art. 4º Para os efeitos desta Lei, sem prejuízo da tipificação das condutas criminosas, são formas de violência:
(…)
IV – violência institucional, entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização.
Art. 5º Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:
violência institucional – violência praticada por agente público no desempenho de função pública, em instituição de qualquer natureza, por meio de atos comissivos ou omissivos que prejudiquem o atendimento à criança ou ao adolescente vítima ou testemunha de violência;
Em relação aos dispositivos processuais trazidos pela Lei 14.245/2021, é importante ressaltar a necessidade de, a um só tempo, ter-se cuidado com a sua aplicação e, ainda, garantir-lhe a esperada efetividade.
Isso porque os termos trazidos possuem certa dose de abstração que devem ser interpretados com cautelas, senão vejamos:
§ 1º-A.Durante a audiência, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão respeitar a dignidade da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas:
I – a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos;
II – a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.
O dispositivo visa a evitar que o foco das discussões esteja dissociado, objetivamente, do caso examinado, fazendo com que circunstâncias precedentes como o modo de vida vítima ou seus atributos pessoais sejam, por si só, considerados para o julgamento da causa. A título de exemplo, não cabe às partes indagarem sobre a vida da ofendida, que se dedica a programas sexuais, focando neste assunto de modo a obter, a partir de um juízo sobre seu modo de vida, uma conclusão sobre suposto crime de estupro no qual ela figure como vítima. Assim como se rechaça um direito penal calcado na pessoa do autor (direito penal do autor), há que se rechaçar, com muito mais razão, um direito penal calcado no modo de vida da vítima (direito penal da vítima). O que importa para o caso concreto é o comportamento da vítima no caso sob exame.
Caso o tratamento vexatório ou humilhante à vítima ou testemunha, por ocasião da sua oitiva, tenha sido dispensado em razão de sua condição do sexo feminino, estará configurada uma violência processual contra a mulher ou violência processual de gênero.
Ainda que seja aplicável ao processo penal, o Princípio da Busca da Verdade não pode legitimar ofensas ou comportamento desrespeitoso pelas partes no curso do processo de modo que atente contra a privacidade, intimidade e dignidade da vítima ou testemunha. Por isso, tem-se que uma violação às normas do art. 400-A, 474-A, ambos do CPP, e do art. 81, § 1º-A da Lei 9.099/1995 constituem violação a norma de direito material (intimidade, personalidade, dignidade), constituindo uma prova ilícita, não obstante a alteração legislativa ter sido promovida por norma processual. Em verdade, trata-se de normas heterotópicas ou de conteúdo misto (processual-penal), que possuem conteúdo material.
Contudo, é necessário lembrar que as partes não devem ser impedidas, antecipadamente, de trazerem circunstâncias à discussão judicial, prejudicando a compreensão do complexo fato criminoso. Nos chamados casos difíceis, em que a situação analisada pode restar bastante nebulosa, até mesmo os indícios podem ser valorados para o livre convencimento motivado, nos termos do art. 239, CPP. Portanto, o filtro sobre o que é adequado trazer aos autos e a sua relevância para o caso continua sendo de atribuição concreta do magistrado, evitando-se que a abordagem sobre predicados morais da vítima ou de sua conduta social sejam os únicos meios utilizados pelas partes como forma de discutir o fato criminoso.
Na mesma linha, o inciso II impede a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas, impondo um tratamento respeitoso à vítima e testemunhas.
Por outro lado, a questão torna-se complexa porque às partes é permitida a avaliação da credibilidade da testemunha e dos relatos da vítima. E, certamente, haverá que se diferenciar as informações e o material que ofendem deliberadamente a vítima, daqueles em que, sendo verdadeiros e apresentando perfeita conexão com o tema objeto da prova, possam fazê-la sentir-se ofendida pela citação ou utilização em juízo. Será necessária e com bastante parcimônia, uma análise da situação concreta.
Assim, tem-se que não obstante as previsões dos artigos 360, inciso IVArt. 360. O juiz exerce o poder de polícia, incumbindo-lhe: (...) IV - tratar com urbanidade as partes, os advogados, os membros do Ministério Público e da Defensoria Pública e qualquer pessoa que participe do processo; e 459, § 2ºArt. 459. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, começando pela que a arrolou, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com as questões de fato objeto da atividade probatória ou importarem repetição de outra já respondida. (...) § 2º As testemunhas devem ser tratadas com urbanidade, não se lhes fazendo perguntas ou considerações impertinentes, capciosas ou vexatórias. do Código de Processo Civil, aplicáveis, subsidiariamente, ao processo penal por força do art. 3º do CPP, a Lei 14.245/2021 possui a louvável intenção de demarcar a necessidade de que casos acintosos de desrespeito a vítimas não passem invisibilizados durante o processo penal.
A crítica ao legislador fica por conta da inexistência de adequações, de modo expresso, no âmbito do inquérito policial, momento em que a vítima apresenta especial vulnerabilidade diante da proximidade temporal com a ocorrência do fato criminal.
Contudo, o Delegado de Polícia deverá, por analogia e com as devidas adequações, adotar as mesmas cautelas do art. 400-A, CPP na presidência do inquérito policial, zelando pela análise objetiva dos fatos e certificando-se de que as condições pessoais, personalidade e modo de vida da vítima não sejam elementos exclusivos a fundamentar o juízo técnico-jurídico necessário à conclusão sobre a investigação.
Deve se afastar o Direito Penal da Vítima, ou seja, aquele em que se analisa a vida e o modo de ser da vítima como elemento bastante a desacreditá-la e, por consequência, avaliar, conclusivamente, o fato criminoso.