Estabelecido que não há direito absoluto, mesmo na realidade constitucional, colabora para normalização do exercício da liberdade de expressão na internet, além da exigência de não anonimato e da vedação ao discurso violento e de ódio (art. 5º, IV. CRFB), também um recente esforço contra campanhas de desinformação e difusão de notícias falsas (fake news), notadamente nas redes sociais – hoje o primordial fórum de debate e discussão da sociedade contemporânea.
Entenda-se, de ponta, por fake news como “[…] qualquer informação que é intencionalmente criada sob o pretexto de que é credível quando, na realidade, não o é” [1]. Assim, sob o simulacro de informação verdadeira, as fake news são veiculadas com o fim deliberado de engodo do leitor em prol ou contra determinada ideologia, agenda, valor, pessoa ou instituição.
Nessa linha, os artigos de notícias intencionalmente fabricados não se confundem com textos satíricos que desvirtuam a verdade para fins de humor irônico e crítico, desde que a finalidade cômica do conteúdo seja perceptível e não possa ser interpretada como efetivamente fidedigna.
Irrelevante, ainda, para qualificação de fake news que a notícia falsa seja produzida por veículo ou jornalista profissional ou por um indivíduo médio que assim não se identifica, porquanto o qualificador do falso é o intento de sua difusão: simular-se como credível quando, em verdade, o emissor sabe não sê-lo e assim persiste com o único fim de enganar, desvirtuar e difamar.
Embora se tenha popularizado no imaginário moderno desde a eleição presidencial dos EUA de 2016, o fenômeno das fake news, considerando em seu contexto, não é inédito: pode-se ter a própria propaganda sob tal qualificador, a exemplo das campanhas de difamação que sempre grassaram as disputas políticas desde que Cícero denunciou Catilina no senado romano no ano 63 a.C. [2].
E é justamente a realidade político-eleitoral o seio do combate às fake news.
Em terras nacionais, destaca-se o Programa de Enfrentamento à Desinformação com Foco nas Eleições 2020, capitaneada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Também em termos eleitorais se extrai desde já um dever de checagem prévio de informações imposto a partidos e candidatos, consistente na presunção de que postagens ou qualquer forma de difusão de conteúdo foram precedidas de uma análise de sua fidedignidade; sob de pena de se autorizar, aos eventuais ofendidos por um dado posteriormente comprovado por inverídico, um necessário direito de resposta, pelos mesmos meios e escala por que se veiculou o falso (art. 58, Lei nº 9.504/1997 [3]).
Nesse sentido é, por exemplo, o art. 9º da Resolução TSE nº 23.610/2019, que disciplinou a propaganda eleitoral para o pleito de 2020: “A utilização, na propaganda eleitoral, de qualquer modalidade de conteúdo, inclusive veiculado por terceiros, pressupõe que o candidato, o partido ou a coligação tenha verificado a presença de elementos que permitam concluir, com razoável segurança, pela fidedignidade da informação, sujeitando-se os responsáveis ao disposto no art. 58 da Lei n° 9.504/1997, sem prejuízo de eventual responsabilidade penal”.
No entanto, a recente preocupação da sociedade brasileira com a difusão e os deletérios efeitos das notícias falsas também motiva iniciativas que ultrapassam a realidade eleitoral e partidária, desembocando, hoje, em standards e obrigações que se pretendem impor, de lege ferenda, indistintamente aos usuários dos serviços de internet, bem como, sobretudo, a seus provedores.
Destaca-se, nesse sentido, o atual Projeto de Lei do Senado nº 2.630/2020, de autoria do Senador Alessandro Vieira (CIDADANIA/SE), que institui a “Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet” – popularmente batizada como “PL/Lei das Fake News”.
Trata-se de proposição que visa estabelecer normas, diretrizes e mecanismos de transparência para provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada, tudo a pretexto de garantir segurança e ampla liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento.
O objetivo inconfesso do projeto é sobretudo o combate à difusão de notícias falsas em comunidades virtuais – no que não se revela inédito, pois que exemplo nacional de uma iniciativa que também se observa no direito comparado.
Com efeito, pode-se dizer que uma das grandes inspirações para o PL nº 2.630/2020 é a recente “Lei Alemã para a Melhoria da Aplicação da Lei nas Redes Sociais” (Netzwerkdurchsetzungsgesetz – NetzDG), elaborada especificamente em prol do combate à difusão de fake news em comunidades virtuais de motivação social.
Na realidade alemã, a NetzDG institui um sistema de compliance vinculante às comunidades virtuais quanto à remoção de conteúdos ilícitos, mas, ao invés de impor configurações pormenorizadas para esse fim, opta por disposições gerais que legam aos provedores de aplicações certa liberdade para sua implantação.
Tal sistema, que atribui aos provedores de redes sociais a responsabilidade quanto ao recebimento de reclamações, processamento e tomada de decisões (inclusive remoção) relativamente a conteúdos ilícitos, é senão expressão do tradicional “princípio de intervenção não-governamental” (Staatsferne), de longeva aplicação no direito germânico ao menos, v.g., desde o “Tratado Interestadual sobre Proteção dos Menores” (Jugendmedienschutz-Staatsvertrag) de 2002, que impõe aos Estados alemães o dever de regular a proteção de crianças e adolescentes na área das telecomunicações, inclusive eletrônicas, e de radiodifusão.
Trata-se de princípio cujo ideal subjacente é evitar que se arrisque qualquer violação, ainda que mínima, ao princípio democrático e à liberdade de expressão em razão da intervenção ou supervisão direta dos entes estatais sobre a mídia a pretexto da regulação. A solução, para tanto, é delegar aos setores de telecomunicação (regulados), mediante estipulação de objetivos gerais e orientações, o dever quanto à solução de problemas que envolvam interesses vinculados ao bem comum, deixando, assim, de monopolizar a defesa do interesse coletivo no funcionamento das comunicações.
Isto se manifesta naquilo que também se convencionou cognominar, na doutrina alemã, de autorregulação regulada (Regulierte Selbstregulierung).
No plano nacional, quanto ao PL 2.630/2020 se destaca de início um estreitamento de sua aplicação, uma vez que, por intenção legislativa, sua disciplina não alcançará, ao menos de modo cogente, os provedores de redes sociais e os serviços de mensageria com menos de 2 milhões de usuários. Isto evidencia o intento inconfesso da lei projetada de voltar suas atenções às grandes comunidades virtuais que hoje são local chave para o discurso político, a exemplo de Twitter, Facebook e do aplicativo Whatsapp e seus congêneres.
Há também aí uma opção pragmática, eis que se afigura impossível à fiscalização estatal alcançar, de modo preventivo, todas as inúmeras comunidades virtuais que pululam na rede mundial.
Às comunidades que foca o PL visa impor em geral, acrescido das obrigações já decorrentes de outros diplomas como o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei nº 13.709/2018), a estruturação de práticas transparentes de moderação de conteúdo, a adoção de processos técnicos mais eficientes para combater a distribuição em massa de conteúdo gerada por contas automatizadas (isto é, as geridas por programas de computador, chamadas vulgarmente de bots) – que a rigor operam de modo coordenado para inflar artificialmente a distribuição de conteúdo além da capacidade humana –, bem como mecanismos para desabilitação do funcionamento de contas inautênticas, criadas com o propósito de assumir falsamente a identidade de terceiros para enganar o público.
Cuida também de exigir a expressa identificação de conteúdo pago, seja o decorrente de impulsionamento em geral, seja o com finalidade publicitária, este de modo a permitir ao usuário que distinga de pronto a chamada publicidade nativa.
Para deixarem mais transparentes as políticas e práticas de moderação de conteúdo (tanto aos usuários, quanto aos órgãos fiscalizatórios), o PL nacional – a exemplo do que faz o NetzDG alemão – impõe aos provedores de redes sociais a elaboração de relatórios trimestrais, a serem disponibilizados em seus respectivos sites, que informem os procedimentos e as decisões de tratamento de conteúdos lá gerados.
Quanto a estes relatórios de transparência já se antevê sério ônus aos provedores de aplicações, eis que, a despeito do nobre intento da proposição, ostentarão detalhamentos que só com muito custo serão compreensíveis, ou atraentes, ao usuário médio que, em grande maioria, já tem parca familiaridade com o termos e condições gerais de uso que são condição prévia para ingresso na plataforma e com os quais consente sem atenta leitura.
Particularmente quanto aos serviços de mensageria, a proposição pretende impor aos respectivos provedores, dentre outras obrigações, a limitação do número de encaminhamentos de uma mensagem a usuários ou a grupos – prática já adotada, v.g., pelo aplicativo Whatsapp – bem como obriga à implantação de um design padrão de opt out quanto à possibilidade de inclusão do usuário em grupos ou em quaisquer listas de transmissão de mensagens para múltiplos destinatários. Ainda quantos aos provedores de mensageria, passa a definir o que entende por encaminhamento em massa, assim entendido como o envio de uma mesma mensagem por mais 05 usuários num intervalo de até 15 dias.
É digna de atenção, por inédito, o regime que a proposição pretende aplicar às contas de redes sociais dos órgãos e entidades da Administração Pública (direta e indireta) e dos agentes políticos, que passa a reputar como sendo de interesse público, sendo seu funcionamento submetido aos princípios administrativos do art. 37 da Constituição Federal (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência).
Imputa-se, assim, espécie de regime jurídico de direito público à tais contas, já presumido para os órgãos e entidades da Administração (eis que equiparados a seus bens) e novo para os agentes políticos – o que, quanto aos últimos, será sem dúvida objeto de grande polêmica e potenciais questionamentos, dadas as recentes discussões travadas a respeito das redes sociais do Presidente da República.
O busílis reside na obrigação, prevista no PL 2.630/2020, de que os titulares das contas de redes sociais da Administração e dos agentes políticos – o que inclui detentores de mandado eletivo, ministros e secretários (em todas as esferas federativas), diretores de entidades administrativas, bem como julgadores de tribunais de contas [4] – não restrinjam o acesso de terceiros às suas publicações, via, v.g., bloqueio de outros usuários.
Assim, a princípio, as contas oficiais da Administração e dos agentes políticos estão desautorizadas a bloquear outros usuários de modo a evitar que estes acompanhem e tenham acesso a suas publicações.
No entanto, tal obrigação – assim como regime jurídico que pretende aplicar – fica limitada apenas às contas que representem oficialmente seu mandato ou cargo, de modo que se o agente for titular de outros perfis, estes estarão dispensados da proibição de bloqueio.
Sobre o tema, rememore-se os pareceres do Procurador-geral da República, Augusto Aras, tanto em mandado de segurança impetrado pela deputada Natália Bonavides (PT-RN) (MS nº 36.648, Rel. Min. Alexandre de Moraes) [5], quanto em writ do jornalista William de Lucca Martinez (MS nº 36.666, Rel. Min. Carmen Lúcia) [6] – ambos bloqueados pelo Presidente da República em sua conta no Twitter – no qual se posicionou quanto à possibilidade de que Chefe do Executivo restrinja o acesso de terceiros a seus perfis naquele plataforma, os quais não gozariam de caráter oficial estrito e não constituiriam direitos ou obrigações da Administração Pública.
Ambos os writs pendem de julgamento.
Comparativamente, em decisão de 23 de maio de 2018, o Tribunal Distrital para o Distrito Sul de Nova York entendeu que Presidente dos EUA, Donald Trump, violou a Primeira Emenda da Constituição daquele País ao bloquear críticos de seu governo em sua conta no Twitter [7]. Conforme a Juíza Federal Naomi Reice Buchwald, o histórico de publicações do presidente norte-americano naquela rede social – dado seu cargo e o modo como utiliza seu perfil para comunicar políticas e atos de governo – deve ser equiparado a um “fórum público”, livre para acesso, participação e discussão por todos os cidadãos.
Voltando à realidade do projeto em análise, pretende-se a criação de um Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet via ato próprio do Congresso Nacional – o que segue a linha de outras legislações temáticas (a exemplo da própria LGPD) e não destoa do fenômeno de “agencificação” de há muito existente no Ordenamento, embora o referido Conselho (assim como a própria Autoridade Nacional de Proteção de Dados – ANPD), pela atual redação pretendida, não goze do mesmo regime especial que qualifica as autoridades reguladoras independentes.
Quanto ao Conselho, a ser composto por 21 representantes dos Poderes, da Administração e de setores da sociedade civil para um mandato de 02 anos, destaque-se, dentre outras, a exigência pessoal de que não sejam membros efetivos do Executivo, Legislativo e Judiciário, não ocupem cargo público demissível ad nutum ou sejam vinculados a filiados a partido político – esta última condicionante algo problemática, eis que o óbice à composição pela mera atuação em agremiação pode ser enquadrada, em questionamento futuro, como ultraje a direito político, de óbvia tessitura constitucional.
Como de resto, o PL cuida de sancionar o descumprimento das obrigações lá estatuídas pelos provedores de redes sociais e serviços de mensageria com advertência ou multa de até 10% de seu faturamento no último exercício, dosimetria que se pautará pela proporcionalidade, condição econômica do infrator e consequências coletivas de sua infração, assim como eventual reincidência – esta reputada como a repetição de infração à lei no prazo de 06 meses.
A despeito de alguns desacertos e de questionamentos que sem dúvidas se seguirão à sanção do PL nº 2.630/2020 – se aprovado for –, trata-se de iniciativa que, compassada com a experiência internacional sobre o tema, merece encômios. Sem embargo, a prudência recomenda que sempre se deva encarar com parcimônia qualquer invectiva que, sob o (nobre) propósito de racionalização do discurso democrático, possa, no abuso restritivo, desaguar em práticas como overblocking e, pois, desarrazoada restrição à liberdade de expressão e manifestação do pensamento.
[1] BARCLAY, Donald A.. Fake News, Propaganda, and Plain Old Lie: How to Find Trustworthy Information in the Digital Age. Lanham: Rowman & Littlefield, 2018, p. 30.
[2] DOMENACH, Jean-Marie. A propaganda política. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/sugestao_leitura/filosofia/texto_pdf/apropagandapolitica.pdf. Acesso em: 10/08/2020.
[3] Art. 58. A partir da escolha de candidatos em convenção, é assegurado o direito de resposta a candidato, partido ou coligação atingidos, ainda que de forma indireta, por conceito, imagem ou afirmação caluniosa, difamatória, injuriosa ou sabidamente inverídica, difundidos por qualquer veículo de comunicação social.
[4] Embora se arrisque à especulação, a locução “especialmente” que antecede o rol de agentes políticos prevista do art. 18 do PL pode induzir interpretação de que se tratar de lista aberta e não exaustiva.
[5] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-nov-30/pgr-desbloqueio-jornalista-twitter-bolsonaro
[6] Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-nov-07/pgr-defende-opcao-bolsonaro-bloquear-seguidores-internet
[7] Disponível em https://www.lawfareblog.com/document-trumps-blocking-critics-twitter-unconstitutional-us-district-court-southern-district-new
Para aprofundar-se no assunto, recomendamos: Proteção de Dados: Fundamentos Jurídicos (2020)