“It is not hardship or inconvenience or material loss itself which calls the principle of frustration into play. There must be as well such a change in the significance of the obligation that the thing undertaken would, if performed, be a different thing from that contracted for… It was not this that I promised to do”.
(Lord Radcliffe, Davis Contractors Ltd v Fareham Urban District Council [1956] UKHL 3)
Em 26 de junho de 1902 ocorreria a coroação de Eduardo VII da Inglaterra. O Sr. Krell era proprietário de uma casa no caminho da procissão da coroação, alugando-a para o Sr. Henry por um dia. A procissão foi cancelada em razão de uma cirurgia de urgência sofrida pelo futuro monarca. Consequentemente, o contratante se recusou a pagar o preço fixado. O tribunal entendeu que não houve violação do contrato com direito à indenização (“breach of contract”), porém uma impossibilidade que atingiu a raiz da avença por frustração da finalidade contratual almejada. Vale dizer, mesmo que o fim específico de locação para festejos da coroação não estivesse expresso em cláusula contratual, esvaiu-se a razão pela qual o demandado realizaria a sua prestação. O julgado Krell v. Henry (1903), serviu como uma espécie de um segundo capítulo de uma novela, a partir do precedente Taylor v. Caldwell. No leading case de 1863, Caldwell & Bishop era o titular do Surrey Gardens & Music Hall, concordando em alugá-lo para Taylor & Lewis por 100 libras por dia. Taylor havia planejado utilizar o Music Hall para quatro shows e festas diurnas e noturnas de junho a agosto de 1861, oferecendo ao público uma variedade de entretenimento. Então, em 11 de junho de 1861, uma semana antes do primeiro concerto, o auditório foi totalmente destruído. Os demandantes processaram os proprietários do Music Hall por quebra de contrato, pela não concretização da locação. O juiz Blackburn argumentou que a existência continuada do Music Hall em Surrey Gardens era uma condição implícita essencial para o cumprimento do contrato. A destruição do auditório não foi culpa de nenhuma das partes e impossibilitou a execução do contrato, sendo que ambas as partes estavam dispensadas de suas obrigações contratuais. No precedente a discussão sobre impossibilidade de cumprimento por eventos supervenientes de um contrato decorreu da própria cessação da existência física do objeto do contrato, enquanto no segundo julgado (coronation case), a extinção por impossibilidade foi ampliada para a inviabilização da performance da parte pela não existência de um estado de coisas que justifica a essência do contrato.
O terceiro capítulo se deu em casos de direito marítimo ao longo da segunda metade do século XIX, em tempos de guerra. Processos originados do fato de que proprietários de embarcações eram incapazes de entregar o frete no tempo e local ajustados, pois sem qualquer culpa de sua parte, o barco era requisitado pela marinha ou o porto ajustado para a entrega havia fechado em razão do conflito. Estas hipóteses de impossibilidade jurídica foram condensadas com àquelas de impossibilidade factual e frustração de propósito, alcançando então as hipóteses em que a alteração das circunstâncias modifica a tal ponto a natureza da performance devida, que, caso cumprida, seria algo completamente diferente do que fora originariamente previsto pelas partes. Com base em seguidas decisões, as distinções se deram conforme a alteração das circunstâncias tornasse a prestação impossível (“impossibility”), extremamente dificultada (“impracticability”) ou inútil (“frustration”), não se permitindo que as partes contratantes simplesmente se furtassem ao cumprimento utilizando um evento extremo (v.g uma guerra) como escusa para se eximir de uma “bad bargain”. Se em uma primeira fase prevaleceu a teoria pela qual juízes deveriam decidir tais casos construindo um hipotético contrato, com base em cláusulas implícitas, em uma segunda etapa, cortes e magistrados passaram a decidir conforme o que lhes parecesse razoável e justo nas circunstâncias do caso individual, observando se a mudança de circunstâncias é um daqueles riscos que empresários razoáveis imputariam à contraparte que buscasse evitar o contrato.
Com base na experiência angariada desde meados do século XIX, o que impressiona o observador estrangeiro não é apenas a cuidadosa análise dos fatos e dos casos individuais, mas a clara deferência jurisprudencial às necessidades do comércio. Quando se constata que as cortes inglesas são menos suscetíveis que as alemãs a admitir que uma alteração de circunstâncias conduza um contrato ao seu encerramento, isto certamente é atribuível ao fato de que os tribunais da Inglaterra estão prontos para compreender as demandas dos contratos internacionais, nos casos em que homens de negócio manteriam o contrato em execução. A confiança em princípios e cláusulas gerais pode negligenciar o fato de ser o contrato a lei adotada pelas partes e, portanto, direitos devam ser analisados tendo como ponto de partida as cláusulas nele consubstanciadas, seja conforme a expressa gestão de riscos antecipada pelos contratantes ou, em sua falta, pelo preenchimento das lacunas com relação ao evento imprevisto e causador da alteração das circunstâncias, conforme os standards desenvolvidos por homens com reputação comercial para contratos desta natureza, na extensão necessária para que se descubra a alocação de riscos típica de contratos semelhantes.
O respeito à historicidade do conceito de contrato e de sua interpretação não é a única variável em jogo. Diante de uma pandemia de coronavírus, é necessário vislumbrar o seu impacto na execução de contratos pela lente de uma tradição jurídica diversa daquela em que estamos imersos. A globalização impôs o receituário contratual das jurisdições da common law, um misto entre a tradição inglesa depurada pelo pragmatismo norte-americano. Os contratos internacionais pressupõem a paridade entre atores de diversos países. Nada obstante, a despeito da presunção de simetria das relações interempresariais, a assimetria econômica entre os países de origem e, sobremodo institucional, perante ordenamentos jurídicos que oferecem uma longa história de previsibilidade e segurança jurídica, normaliza os instrumentos, práticas e remédios contratuais norte-americanas e ingleses. Se após a edição da LLE o direito brasileiro tende a entender o contrato não apenas como uma espécie de negócio jurídico, porém como instrumento jurídico de alocação de riscos, é da tradição anglo-saxônica o significado do contrato como instrumento econômico para as partes, baseado em um modelo comercial de “bargain”. A privacidade do contrato é sustentada pelo princípio do “at arm’s length”, promovendo-se acordos equitativos do ponto de vista legal, nos quais cada parte não se sujeita à pressão ou influência indevida da outra. Atribui-se à cada parte a faculdade de buscar a melhor barganha, cuja tutela demanda restritas e cirúrgicas limitações à liberdade contratual, relutando os tribunais em interferir na substância do ajuste, mesmo quando circunstâncias supervenientes perturbem severamente o contrato. Não há um princípio geral de revisão de contrato ou a imposição de um dever de renegociar, pois mesmo diante de significativas dificuldades, prevalece a noção de que o contrato é para as partes e não para os tribunais.
Na tradição brasileira, o Código Civil é um instantâneo dos contratos e “saber o direito” significa uma ávida busca pela mais recente decisão das cortes superiores. Contudo, na common law, onde inexiste uma estrutura legislativa sistemática, o regramento contratual se encontra em livros nas prateleiras das bibliotecas. Ingleses e norte-americanos não se afeiçoam a amplos princípios e cláusulas gerais. Com exceção do princípio da força obrigatória dos contratos, prevalecem as provisões particulares, pois juízes desconfiam de regras indefinidas. As noções fundamentais provêm de precedentes de meados do século XIX, que determinam uma forte noção comercial dos contratos. Tal como preconizado no “chain novel” de Dworkin, para responder a novas perguntas, ao invés de princípios, parte-se dos “cases” – dos mais antigos aos mais atuais – atribuindo-se às cortes o papel de escrever novos capítulos do romance, tendo como base a racionalidade e coerência com os capítulos anteriores. Fora dos casos, vêm as regras. Estatutos são excepcionais e existem para preencher as lacunas, lidando com problemas específicos (como o consumer rights act de 2015).
Todos os sistemas jurídicos modernos enfatizam que de certa forma um contrato é “agreement”, e esta é a regra na common law. A peculiaridade é a de que cada contratante é uma espécie de garante de sua promessa e será responsabilizado por uma indenização por seu eventual descumprimento – “breach of contract”. O contratante só se exonera da “guarantee liability” caso determinadas circunstâncias obstaculizem a performance subsequentemente à contratação. Sendo objetiva a responsabilidade por descumprimento na common law, a avaliação da impossibilidade do cumprimento será aferida conforme as razoáveis expectativas de um homem honesto, caracterizados como “empresários sensatos” em contratos comerciais. Partindo da premissa de que “contract is for the parties, not for the courts”, ao contrário do que ocorre na maior parte das jurisdições da civil law, a tradição da common law não comunga com juízes que intervêm no contrato para adequá-lo à alteração das circunstâncias que rompem a sua base objetiva, ou magistrados que impõem às partes uma fase de renegociação contratual. Para sistemas nos quais inexiste um principio geral de agir conforme a boa fé, a renegociação ou a revisão são aspectos comerciais que concernem exclusivamente aos contratantes.
Propositalmente, omiti a razão pela qual o título do post se relaciona aos “coronation cases”, quando apenas relatei um único litígio relacionado ao adiamento da coroação. Na verdade, houve um segundo “coronation case”, no qual não se suprimiu a eficácia do contrato. Em Herne Bay Steamboat v. Hutton (1903), o demandado alugou o barco do demandante para o dia da coroação, pois Edward VII iria passar a marinha naval em revista na localidade de Spithead. Apesar do evento ter sido suspenso, foi mantido o pagamento do valor estipulado, pois o propósito contratual fora parcialmente alcançado, já que o demandado aproveitou o dia viajando de barco até o porto, mostrando a frota aos seus convidados. Esta comparação entre resultados diversos oriundos do mesmo evento, aplica-se à “enxurrada” de processos que terão a pandemia como gênese. Trazendo as repercussões para o direito brasileiros, as situações fáticas oscilarão e consequentemente a repercussão jurídica. Por vezes surgirão casos de hardship, outras vezes de força maior, por vezes haverá uma simples desculpa para alguém se eximir de um contrato incômodo. Em alguns casos uma alteração imprevisível de circunstâncias incidirá em certos contratos de forma a tornar impossível o cumprimento, em outros contratos, contudo, a performance ainda será possível, mas extremamente dificultada ou dispendiosa, com uma distorção de paridade. No que tange ao Coronavírus, o cenário ideal seria aquele em que as partes previamente gerissem o risco de definir se uma pandemia representaria uma impossibilidade ou uma dificuldade e quais as consequências se extraem em termos remediais (resolução contratual, suspensão, renegociação). Na omissão do contrato, se a parte invoca força maior, terá em vista o desejo de que a sua inexecução seja escusada. Todavia, caso alegue hardship, esta será a primeira instância para a proposição da renegociação dos termos do contrato, permitindo a sua sobrevivência em termos revisados. Em termos pragmáticos, o coronavírus poderá se manifestar como um hardship e alteração fundamental no equilíbrio contratual de duas diferentes maneiras. A primeira será caracterizada por um substancial acréscimo no custo do cumprimento do contrato para uma das partes. Este contratante será normalmente aquele que deve efetivar a prestação não monetária. O substancial acréscimo de custos poderá resultar, ilustrativamente, do vertiginoso aumento do preço da matéria prima necessária para a produção da mercadoria, a prestação de serviços, ou mesmo a introdução de novas regulamentações que demandam procedimentos de segurança mais onerosos. A segunda manifestação do hardship será caracterizada pela substancial redução do valor da performance recebida por uma das partes, incluindo casos em que objetivamente a prestação já não terá qualquer valor para o destinatário, seja em razão de drásticas alterações nas condições do mercado ou a frustração do propósito para o qual a prestação foi solicitada (v.g. como efeito da proibição de pessoas em cidades/países em razão da pandemia ou a proibição de abertura de estabelecimentos comerciais no mercado em que o contratante se insere). Evidente que quanto à frustração do propósito da performance, o hardship requer que o dito propósito seja conhecido ou presumivelmente teria que ser conhecido por ambas as partes.
Os aprimoramentos jurídicos da segunda metade do século XX alteraram tanto o direito inglês como o direito europeu continental, de forma a criar uma grande convergência. O nascimento de uma doutrina jurídica tornou o direito inglês muito mais acadêmico. Na área dos contratos o legislador intervém para trazer maior racionalidade às decisões dos juízes. Por outro lado, a influência doutrinária na Europa (e Brasil) está em declínio e a influência do judiciário cresceu enormemente. Assim, não é mais possível relacionar a civil law ao direito codificado e a common law com a jurisprudência: a realidade das fontes legais é muito mais complexa em ambos os lados. É claro que subsistem diferenças significativas, mas o antigo ideal das diferenças irreconciliáveis em termos de mentalidades jurídicas, torna-se cada vez mais insustentável. O título do post é uma homenagem a Miguel Reale que sustentava a posição transcendental pela qual o direito é inconcebível como valor em si, desvinculado do processo histórico ou sem referibilidade à experiência, havendo em todo fenômeno jurídico dois aspectos a serem analisados: um quanto à sua gênese, outro quanto as suas condições de possibilidade e de validade. No momento em que O CPC/15 verteu a noção de experiência para o respeito aos precedentes, espera-se que os tribunais individualizem as origens dos julgados, os seus significados e a pertinência que guardam com o caso concreto. Talvez, em 100 anos possam os acadêmicos de direito citar os casos de Coronavírus “de cor”, como primeiro capítulo de um romance, com coerência e integridade.