Resumo
O presente estudo examina a reforma da prisão provisória promovida pela Lei nº 15.272/2025, que revisita o modelo cautelar penal brasileiro com vistas a ampliar a objetividade decisória e a eficiência investigativa. Trata-se de análise dogmática fundamentada em método hermenêutico-teleológico, com foco nas audiências de custódia e nos novos critérios legais de periculosidade. Observa-se maior racionalidade normativa, reforço do dever de fundamentação e incremento de instrumentos probatórios. Conclui-se, em primeiras impressões, que a reforma aperfeiçoa a funcionalidade do sistema, embora exija vigilância quanto à preservação das garantias fundamentais e ao caráter excepcional da prisão preventiva.
Palavras-chave
Prisão preventiva. Audiência de custódia. Reforma processual penal. Periculosidade do agente. Fundamentação judicial. Garantias fundamentais. Lei nº 15.272/2025.
Introdução
A nova Lei nº 15.272/2025 promove mais uma significativa reforma no regime processual penal da prisão provisória, instituto que tem sido reiteradamente revisitado pelo legislador brasileiro. Diferentemente das alterações anteriores, contudo, a nova disciplina imprime um viés de maior eficiência e racionalidade ao sistema cautelar, conferindo-lhe instrumentos destinados a facilitar, dentro dos limites constitucionais, a restrição provisória da liberdade de agentes envolvidos em práticas delitivas de elevada gravidade e potencial lesividade social.
As inovações introduzidas abrangem desde os desdobramentos decorrentes da audiência de custódia até a coleta de materiais biológicos e a definição de critérios objetivos para a aferição da periculosidade concreta do agente, delineando um novo modelo de funcionalização da prisão provisória no processo penal.
As próximas seções deste estudo examinarão, de forma sistemática e aprofundada, cada uma das alterações introduzidas pela nova lei, destacando seus impactos práticos e dogmáticos na arquitetura contemporânea do processo penal brasileiro.
Os novos § 5º e § 6º do art. 310 do Código de Processo Penal
A Lei nº 15.272/2025 introduziu relevantes inovações no art. 310 do Código de Processo Penal, entre elas o § 5º, que cria parâmetros objetivos (já trabalhados pela nossa jurisprudência) para a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva. Vejamos:
Art. 310…………………………………………………………………………………….
§ 5º São circunstâncias que, sem prejuízo de outras, recomendam a conversão da prisão em flagrante em preventiva:
I – haver provas que indiquem a prática reiterada de infrações penais pelo agente;
II – ter a infração penal sido praticada com violência ou grave ameaça contra a pessoa;
III – ter o agente já sido liberado em prévia audiência de custódia por outra infração penal, salvo se por ela tiver sido absolvido posteriormente;
IV – ter o agente praticado a infração penal na pendência de inquérito ou ação penal;
V – ter havido fuga ou haver perigo de fuga; ou
VI – haver perigo de perturbação da tramitação e do decurso do inquérito ou da instrução criminal, bem como perigo para a coleta, a conservação ou a incolumidade da prova.
§ 6º A decisão de que trata o caput deste artigo deve ser motivada e fundamentada, sendo obrigatório o exame, pelo juiz, das circunstâncias previstas nos §§ 2º e 5º deste artigo e dos critérios de periculosidade previstos no § 3º do art. 312.
Trata-se de avanço normativo que visa conferir maior racionalidade e previsibilidade ao exercício do poder cautelar, reduzindo a margem de discricionariedade judicial e reforçando a necessidade de decisões ancoradas em critérios empíricos e verificáveis.
O primeiro aspecto que merece destaque é que a nova disposição não suprime a possibilidade de relaxamento da prisão ilegal — consectário direto do art. 5º, inciso LXV, da Constituição Federal — segundo o qual toda prisão ilegal deve ser imediatamente relaxada pela autoridade judiciária. A recusa arbitrária do magistrado em fazê-lo configura crime de abuso de autoridade (Lei nº 13.869/2019, art. 9º, parágrafo único, inciso I). Da decisão que relaxa o flagrante cabe recurso em sentido estrito (art. 581, V, CPP); da que o mantém, cabe habeas corpus.
Além disso, a conversão da prisão em flagrante em preventiva somente é admissível quando preenchidos os requisitos do art. 312 do CPP e quando se demonstrarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão. A adoção dessas medidas alternativas não vulnera os direitos das vítimas nem traduz impunidade; ao contrário, representa instrumento de modernização da justiça penal e de racionalização do sistema penitenciário, contribuindo para a contenção do encarceramento desnecessário e para a gestão eficiente da política criminal.
De acordo com a nova redação, são circunstâncias que recomendam a conversão: a prática reiterada de infrações, o cometimento de crime com violência ou grave ameaça, a reincidência em audiência de custódia, a prática de novo delito durante inquérito ou ação penal, a fuga ou perigo de fuga e o risco à investigação ou à prova. Tais hipóteses, contudo, não se revestem de automaticidade. São critérios orientadores, de caráter indicativo, cuja aplicação exige sempre decisão individualizada e devidamente fundamentada, à luz do princípio da proporcionalidade, sob pena de configurar indevida antecipação de pena.
O emprego do verbo recomendar, expressão já utilizada pelo legislador em outros dispositivos do CPP (arts. 313, § 1º; 325, § 1º; e 492, I, “e”), evidencia tratar-se de situações em que a prisão preventiva, embora não obrigatória, se apresenta como resposta cautelar juridicamente adequada e socialmente necessária. A inovação legal não impõe um dever de decretar, mas estabelece zonas de plausibilidade que ampliam a segurança hermenêutica do julgador. Ao enunciar circunstâncias em que a prisão é recomendável, o legislador fornece ao magistrado um itinerário normativo para a decisão, mitigando subjetivismos e assegurando maior uniformidade interpretativa, sem, contudo, esvaziar o dever de fundamentação concreta.
É certo, porém, que as características pessoais do preso ou a gravidade abstrata do delito não constituem, por si sós, fundamento legítimo para a prisão preventiva. A jurisprudência nacional e interamericana converge no sentido de que a medida cautelar extrema deve apoiar-se em elementos fáticos concretos, vedando-se justificativas genéricas ou fórmulas estereotipadas. Ademais, reafirma-se o dever de reavaliar periodicamente a necessidade da custódia e de privilegiar, sempre que possível, alternativas menos gravosas à liberdade.
A nova lei, portanto, busca atenuar a volatilidade decisória e a insegurança jurídica, ao enunciar de forma expressa circunstâncias que recomendam a conversão do flagrante em preventiva, favorecendo maior coerência e previsibilidade nas decisões judiciais.
Nesse contexto, o combate à reiteração delitiva é fortalecido pela inclusão explícita da “prática reiterada de infrações penais” e pela previsão de que o agente liberado em audiência de custódia por outra infração possa ter a prisão convertida, quando demonstrado risco de reincidência. A medida visa proteger a ordem pública e assegurar maior efetividade à tutela penal.
De igual modo, o foco na gravidade e na instrução processual se reflete nas referências a crimes cometidos com violência ou grave ameaça, ao perigo de fuga e ao risco de perturbação da prova — elementos que orientam o juiz a avaliar concretamente a necessidade da prisão cautelar, garantindo a higidez da investigação e do processo.
Por isso o § 6º, também introduzido pela Lei nº 15.272/2025, reforça o dever de fundamentação das decisões proferidas na audiência de custódia. Determina que o juiz examine expressamente as circunstâncias previstas nos §§ 2º e 5º e os critérios de periculosidade estabelecidos no § 3º do art. 312. Essa exigência visa coibir decisões genéricas, apoiadas apenas na gravidade abstrata do delito, vício reiteradamente censurado pelos tribunais superiores e pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Com isso, o novo texto normativo impõe um controle mais rigoroso da motivação judicial, em harmonia com o art. 93, IX, da Constituição Federal e com as diretrizes internacionais. O processo penal brasileiro, assim, evolui para um modelo de decisões dialogadas, transparentes e fundadas em elementos concretos, aptas a permitir o controle recursal e a verificação da proporcionalidade e da necessidade da prisão cautelar.
Coleta do perfil genético na audiência de custódia – Comentários ao Art. 310-A do Código de Processo Penal
A nova Lei introduziu o art. 310-A ao CPP, in verbis:
Art. 310-A. No caso de prisão em flagrante por crime praticado com violência ou grave ameaça contra a pessoa, por crime contra a dignidade sexual ou por crime praticado por agente em relação ao qual existam elementos probatórios que indiquem integrar organização criminosa que utilize ou tenha à sua disposição armas de fogo ou em relação ao qual seja imputada a prática de crime previsto no art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), o Ministério Público ou a autoridade policial deverá requerer ao juiz a coleta de material biológico para obtenção e armazenamento do perfil genético do custodiado, na forma da Lei nº 12.037, de 1º de outubro de 2009.
§ 1º A coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético deverá ser feita, preferencialmente, na própria audiência de custódia ou no prazo de 10 (dez) dias, contado de sua realização.
§ 2º A coleta de material biológico será realizada por agente público treinado e respeitará os procedimentos de cadeia de custódia definidos pela legislação em vigor e complementados pelo órgão de perícia oficial de natureza criminal.
O novo artigo 310-A do CPP introduz uma medida de natureza identificatória, voltada à coleta e armazenamento do perfil genético (DNA) de custodiados presos em flagrante por determinados crimes de maior gravidade — entre eles, os cometidos com violência ou grave ameaça, contra a dignidade sexual, os previstos na Lei dos Crimes Hediondos e os praticados por integrantes de organizações criminosas armadas.
Trata-se de uma providência administrativa e auxiliar à persecução penal, e não propriamente de uma medida cautelar como a prisão preventiva. Seu fundamento reside na Lei nº 12.037/2009, que disciplina a identificação criminal, e no art. 9º-A da Lei de Execução Penal, que regulamenta o Banco Nacional de Perfis Genéticos. A medida busca aprimorar a capacidade estatal de identificação e rastreio de agentes criminosos, permitindo a integração entre investigações dispersas e a articulação probatória entre órgãos de segurança e justiça.
A utilidade prática é evidente. Em crimes violentos, o vestígio biológico pode vincular o autor à cena do crime (por exemplo, em casos de estupro ou homicídio); no tráfico e na organização criminosa, o DNA pode ser correlacionado a outros inquéritos ou locais de armazenamento de armas e drogas, facilitando a descoberta de redes estruturadas. A coleta permite a criação de uma base de dados genética unificada, fortalecendo o enfrentamento à macrocriminalidade.
O dispositivo prevê que o Ministério Público ou a Autoridade Policial requeira a coleta — o que não significa imposição automática, mas sim faculdade técnica diante da pertinência da medida. O juiz, por sua vez, também pode determinar a providência de ofício, visto que não se trata de ato probatório, mas de mera formalidade identificatória, similar à tomada de impressões digitais. A coleta deve ocorrer na audiência de custódia ou em até 10 dias, por agente público treinado, observando-se rigorosamente a cadeia de custódia.
Nos termos da Lei nº 12.037/2009, os dados genéticos são armazenados sob sigilo, geridos por unidades oficiais de perícia criminal, sendo vedada a revelação de traços somáticos ou comportamentais, salvo determinação de gênero. A indevida divulgação ou uso indevido desses dados enseja responsabilidade civil, penal e administrativa.
Importante recordar que a obrigatoriedade de fornecimento do perfil genético não viola o princípio da não autoincriminação. O STJ já decidiu que a recusa do condenado configura falta grave (HC 879.757-GO, 6ª Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, j. 20/08/2024).
Por fim, o art. 7º-A da Lei nº 12.037/2009 determina que os perfis genéticos sejam excluídos em caso de absolvição ou, se houver condenação, vinte anos após o cumprimento da pena, mediante requerimento.
Em síntese, o art. 310-A representa um avanço estratégico na persecução penal moderna, especialmente no combate às organizações criminosas, permitindo o cruzamento eficiente de dados genéticos, a unificação de investigações e a formação de um repositório seguro de informações — instrumento indispensável à política criminal contemporânea.
A aferição da periculosidade para fins de prisão preventiva – os novos parágrafos 3º e 4º art. 312 do CPP
A lei 15.272/25 também promoveu alterações referentes à prisão preventiva na disciplina estabelecida no art. 312 do CPP. De plano, verifica-se que a tônica dos §§ 3º e 4º do artigo situa-se no aperfeiçoamento na fundamentação do decreto cautelar, sobretudo para a demonstração de periculosidade baseada em elementos concretos do caso analisado, seguindo, nesse tanto, copiosa jurisprudência dos nossos Tribunais.
Vejamos os dispositivos:
Art. 312…
§ 3º Devem ser considerados na aferição da periculosidade do agente, geradora de riscos à ordem pública:
I – o modus operandi, inclusive quanto ao uso reiterado de violência ou grave ameaça à pessoa ou quanto à premeditação do agente para a prática delituosa;
II – a participação em organização criminosa;
III – a natureza, a quantidade e a variedade de drogas, armas ou munições apreendidas; ou
IV – o fundado receio de reiteração delitiva, inclusive à vista da existência de outros inquéritos e ações penais em curso.
Inicialmente, é preciso notar que o dispositivo traz aparente inovação, pois elege a periculosidade do agente como um dos critérios para aferição do abalo à ordem pública. Ocorre que, em procedendo a uma interpretação sistemática, conclui-se que a periculosidade do agente descrita nos incisos do § 3º do art. 312 do CPP deve ser compreendida como o indicativo concreto do “perigo gerado pelo estado de liberdade do acusado”, ou seja, do “periculum libertatis”, reconhecido há muito pela doutrina e jurisprudência, e incorporado ao caput do mesmo artigo desde a redação que lhe foi conferida pelo Pacote Anticrime em 2019. Fazemos questão de repetir o que acima já se afirmou: as características pessoais do preso ou a gravidade abstrata do delito não constituem, por si sós, fundamento legítimo para a prisão preventiva. A jurisprudência nacional e interamericana converge no sentido de que a medida cautelar extrema deve apoiar-se em elementos fáticos concretos, vedando-se justificativas genéricas ou fórmulas estereotipadas. Ademais, reafirma-se o dever de reavaliar periodicamente a necessidade da custódia e de privilegiar, sempre que possível, alternativas menos gravosas à liberdade.
Por isso o legislador forneceu parâmetros a serem considerados na avaliação sobre a existência de risco, e não hipóteses taxativas. Desde logo, alertamos que a construção redacional dos incisos I a IV do § 3º do art. 312 segue aquela que nos indica casos de interpretação analógica, conforme será abordado em cada tópico.
Vejamos os parâmetros sobre a periculosidade do agente que podem gerar riscos à ordem pública, evitando que o fundamento seja usado de forma genérica e indeterminada:
I – o modus operandi, inclusive quanto ao uso reiterado de violência ou grave ameaça à pessoa ou quanto à premeditação do agente para a prática delituosa;
O “modus operandi” do agente pode revelar especial reprovabilidade e, com isso, demonstrar o perigo que sua liberdade causa à ordem pública. Os requintes de crueldade, a violência extrema, o desprezo completo pela vítima em crimes violentos, a ardilosidade, a engenhosidade, são alguns exemplos a indicar a periculosidade do agente capaz de gerar risco à ordem pública. Perceba-se que o modus operandi é um vetor autônomo a ser avaliado caso a caso, pois a descrição da norma refere que pode gerar risco à ordem pública o modus operandi, “inclusive quanto ao uso reiterado de violência ou grave ameaça à pessoa ou quanto à premeditação do agente para a prática delituosa.” A norma descreve que o modus operandi deve ser considerado, trazendo exemplos seguidos da expressão “inclusive”, construção legislativa utilizada na interpretação em casos de intepretação analógica, permitida em processo penal nos termos do art. 3º do CPP.
O uso reiterado da violência ou grave ameaça à pessoa constitui indicativo do perigo causado pelo estado de liberdade do agente. A reiteração é a comprovação concreta da instabilidade do agente ou de sua pouca adesão à ordem jurídica. Desse modo, a segregação do indivíduo é meio para se acautelar a ordem pública, evitando, justamente, nova reiteração. Por reiteração, basta que o agente pratique a violência ou a grave ameaça à pessoa pela segunda vez, tornando possível a aplicação do parâmetro.
A premeditação do agente demonstra a sua capacidade de organizar e arquitetar a execução do delito. O agente realiza um estudo, visualiza prós (eventualmente contras) e maquina a forma mais eficaz de consumar o crime segundo o plano traçado, sendo um aspecto capaz de caracterizar risco à ordem pública. Há que se atentar, contudo, para casos excepcionais em que a premeditação poderá não caracterizar risco à ordem pública, como no caso de um homicídio premeditado por um pai – que não apresenta antecedentes policiais ou criminais – para vingar o estupro da filha.
II – a participação em organização criminosa
As organizações criminosas constituem um dos maiores desafios do sistema de justiça criminal e das instituições de segurança pública. O próprio conceito de organização criminosa — a associação de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos ou que sejam de caráter transnacional — revela a elevada periculosidade dos agentes que a integram.
Trata-se de estrutura concebida única e exclusivamente para a prática delitiva, cuja lesividade se potencializa em razão da capacidade de articulação, planejamento e especialização de suas ações. Por essa razão, é possível afirmar que, no contexto das organizações criminosas, há uma presunção qualificada de risco à ordem pública, uma vez que o próprio escopo da associação é a reiteração de condutas ilícitas. Assim, a simples integração em tais grupos evidencia a periculosidade concreta do agente, justificando medidas cautelares mais gravosas, como a prisão preventiva, sobretudo quando necessária para impedir a continuidade das atividades delituosas.
Essa compreensão alinha-se à orientação consolidada do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual a participação em organização criminosa estruturada configura fundamento idôneo para a decretação da prisão preventiva, justamente por visar interromper suas atividades e resguardar a ordem pública. No Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 258.209 (2ª Turma, Rel. Min. André Mendonça, julgado em 26.9.2023, publicado no DJ em 8.10.2025), assentou-se que a condição de foragido do investigado reforça a necessidade da custódia cautelar para assegurar a aplicação da lei penal, sendo incabível o reexame fático-probatório na via estreita do habeas corpus.
Ainda, a Suprema Corte destacou que a contemporaneidade da prisão preventiva relaciona-se à permanência dos motivos que a justificam, e não ao intervalo temporal entre sua decretação e a prática dos fatos, reconhecendo-se, no caso concreto, a atualidade dos fundamentos voltados à garantia da ordem pública e à efetividade da persecução penal. Reafirmou-se, por fim, que, em delitos cometidos por organizações criminosas, a análise das condutas deve ser integrada, sendo inviável isolar a atuação individual do contexto coletivo do grupo.
Dessa forma, a jurisprudência confirma que a simples vinculação a uma estrutura criminosa organizada já revela, em si, risco concreto de reiteração delitiva e ameaça à ordem pública, legitimando a decretação da prisão preventiva como medida necessária e proporcional à gravidade da ameaça institucional representada por tais agrupamentos.
III – a natureza, a quantidade e a variedade de drogas, armas ou munições apreendidas; ou
a) a natureza e quantidade das drogas são parâmetros já presentes no art. 28, § 2º da Lei 11.343/2003 para que o juiz avalie se as substâncias se destinam ou não ao consumo. Portanto, se o juiz considerar que as drogas apreendidas constituem objeto material do crime de tráfico, deverá analisar se é cabível a prisão preventiva, situação comum quando do recebimento do auto de prisão e da realização da audiência de custódia.
A depender da natureza, quantidade e variedade de drogas, poderá então considerar-se haver perigo na liberdade do agente. Novamente, deve ser analisado o contexto fático e as condições pessoais do preso. Se o agente foi preso com poucos pinos de cocaína e poucas porções de maconha, sem ostentar antecedentes policiais ou judiciais, este contexto pode não revelar a necessidade da prisão. Contudo, a reiteração, sem dúvidas, irá caracterizar risco à ordem pública, agora, com fundamento no inciso IV tratado adiante
Por isso, de modo geral, a hipótese prevista como indicativa periculosidade do agente sempre deverá ser avaliada em um contexto mais abrange.
b) Outro vetor a ser considerado é a natureza, a quantidade e a variedade armas ou munições apreendidas. O Estatuto do Desarmamento pretende ser um regramento rigoroso de controle da propriedade de armas, não devendo ser permitida a posse e porte de armas em situação de notável perigo à ordem pública. Note-se que os crimes de porte e posse de arma de fogo já são considerados de perigo abstrato, em evidente aplicação de tutela antecipada em âmbito penal visando estancar a circulação indevida de armas em nosso território. Neste contexto, o agente que é surpreendido possuindo ou portando, irregularmente, armas de diferentes calibres – mesmo que de uso permitido -, acaba por demonstrar especial periculosidade. A situação resta mais clara e grave quando a apreensão for de armas de uso restrito às instituições de segurança pública ou às Forças Armadas, como fuzis, metralhadoras e submetralhadoras, ou de uso proibido, a depender do caso.
IV – o fundado receio de reiteração delitiva, inclusive à vista da existência de outros inquéritos e ações penais em curso
Como já mencionado, a reiteração delitiva constitui em fato relevante – para a jurisprudência e, agora, pela lei – para a avaliação da periculosidade causada pela liberdade do agente, tanto que é mencionada nos incisos I e IV do § 3º do art. 312 que ora analisamos. Assim, deve ser avaliada a situação concreta para se justificar a existência de fundado receio de reiteração delitiva.
O legislador aplica neste inciso – assim como o fez com o inciso I – uma espécie de interpretação analógica, estabelecendo o fundado receio de reiteração como indicativo de periculosidade, mas não apenas, pois traz, logo depois, a expressão “inclusive à vista da existência de outros inquéritos e ações penais em curso”. Nesse sentido, a existência de outros inquéritos e ações penais são exemplos caracterizadores do fundado receio.
Uma questão pode ser formulada: e se apesar de não haver inquéritos e ações penais em andamento, houver grande registro de ocorrências policiais em desfavor do suspeito. Isso constitui risco à ordem pública? Pensamos que não. A ocorrência policial é mera notícia do fato potencialmente criminoso. É necessária uma avaliação mínima sobre os indícios da existência do crime, o que ocorre por meio de despacho de instauração do Delegado de Polícia. Assim, havendo indícios da existência do delito, instaura-se o inquérito policial e atende-se o parâmetro necessário para a avaliação do cabimento da prisão preventiva.
Vale lembrar, por oportuno, que a existência de inquéritos e ações penais não podem justificar o aumento da pena base (Súmula 444 do STJ e Tema 129 do STF). Contudo, autorizam a caracterização de periculosidade do agente para fins de decretação da prisão preventiva, conforme reiterada jurisprudência do STJ (RHC n. 68550⁄RN, Sexta Turma, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 31⁄3⁄2016 e RHC 114.168/PR, j. 20/08/2019).
Pensamos que a previsão do inciso IV, muito embora mencione inquéritos e ações penais, não alterou o quadro de precedentes que permite a consideração de atos infracionais como aptos a caracterizar risco de reiteração delitiva, constituindo fundamentação idônea a justificar a segregação cautelar (STJ, RHC 105.591/GO, j. 13/08/2019). Como já referido, a reiteração delitiva constitui o vetor principal e autônomo – abrangendo atos infracionais, mas não só -, sendo os inquéritos e ações penais em curso apenas a indicação de circunstâncias que podem caracterizar a referida reiteração, na expressa dicção do inciso IV do § 3º do art. 312 do CPP.
Outra disposição nova:
§ 4º É incabível a decretação da prisão preventiva com base em alegações de gravidade abstrata do delito, devendo ser concretamente demonstrados a periculosidade do agente e seu risco à ordem pública, à ordem econômica, à regularidade da instrução criminal e à aplicação da lei penal, conforme o caso.
a) Gravidade abstrata: O § 4º do art. 312 do CPP estabelece vedações ao conteúdo decisório da prisão preventiva. Não se admitem alegações sobre a gravidade abstrata, algo que vem sendo vedado pela jurisprudência do STJ e do STF, especialmente quando baseadas na quantidade de pena cominada ou, eventualmente, na hediondez do delito.
b) Demonstração concreta da periculosidade do agente: a periculosidade do agente deve ser sempre demostrada concretamente. A periculosidade é um vetor interpretativo autônomo, avaliável no caso concreto, e pode ser caracterizado, inclusive, quando presentes as situações descritas nos incisos I a IV do § 3º do art. 312 do CPP.
c) Demonstração concreta de risco à ordem pública, à ordem econômica, à instrução criminal e à aplicação da lei penal.
A previsão confirma a autonomia e manutenção das hipóteses de cabimento da prisão preventiva previstas no caput do art. 312 do CPP. A ordem pública, a instrução criminal e a aplicação da lei penal constituem objetos de proteção pelo direito processual penal, servindo a prisão preventiva – e, antes dela, as medidas cautelas diversas da prisão – como instrumento de acautelamento ou preservação.
Além disso, a redação do § 4º reafirma tantas outras previsões do Código de Processo Penal trazidas pelas reformas de 2012 e 2019, enfatizando o rechaço a fundamentações genéricas e reafirmando a necessidade de consideração de elementos do caso concreto para que haja fundamentação idônea à restrição da liberdade.
Por fim, parece-nos oportuno comparar a redação dos §§ 3º e 4º do art. 312 do CPP para perceber as possíveis fundamentações referentes ao risco à ordem pública, à ordem econômica, à regularidade da instrução criminal e à aplicação da lei penal.
| Redação do § 3º | Redação do § 4º |
| § 3º Devem ser considerados na aferição da periculosidade do agente, geradora de riscos à ordem pública: | § 4º É incabível a decretação da prisão preventiva com base em alegações de gravidade abstrata do delito, devendo ser concretamente demonstrados a periculosidade do agente e seu risco à ordem pública, à ordem econômica, à regularidade da instrução criminal e à aplicação da lei penal, conforme o caso.” |
O § 3º do art. 312 do CPP parece fornecer parâmetros para a aferição do risco, exclusivamente, à ordem pública. Já o § 4º exige a demonstração de risco à ordem pública ou econômica, à regularidade da instrução criminal e à aplicação da lei penal. Logo, em uma intepretação literal e restritiva, os parâmetros dos incisos I a IV do § 3º do art. 312 se aplicariam apenas para a verificação do risco à ordem pública.
Logo, surge o questionamento. Essa intepretação restritiva é a mais correta? É preciso termos alguma atenção nesse ponto.
De fato, o uso reiterado de violência ou grave ameaça à pessoa ou quanto à premeditação do agente para a prática delituosa (inciso I), diz muito pouco ou quase nada a caracterização do risco à regularidade da instrução criminal. Contudo, o “modus operandi” (inciso I) do agente pode demonstrar um risco à ordem econômica ou à aplicação da lei penal.
Basta pensar em um suspeito que pratica o crime de lavagem de dinheiro e evasão de divisas em valores consideráveis, com intensa atuação em outros países ou com conexão com criminosos estrangeiros, e com histórico de razoável fluxo de viagens para o exterior. Parece totalmente possível o decreto de prisão preventiva fundamentado no risco à aplicação da lei penal, ainda que o vetor tenha sido o “modus operandi” previsto no § 3º, o qual se refere ao risco à ordem pública. Neste aspecto, limitar o “modus operandi” como vetor de aferição de risco exclusivo à preservação da ordem pública não nos parece adequado.
Na mesma linha, imagine-se a participação em organização criminosa (inciso II do § 3º) violenta ou de caráter interestadual ou internacional? Não haveria fundamento para a decretação da prisão preventiva para acautelar a instrução criminal? Ou para evitar a fuga, em havendo elementos que demonstrem a intensa circulação do agente por outras cidades, estados ou países?
Portanto, apesar de as hipóteses do § 3º do art. 312 terem vocação à caracterização do risco à ordem pública, não se deve adotar uma interpretação que as exclua, “ex ante”, para a avaliar a existência de risco à ordem econômica, à instrução criminal ou aplicação da lei penal.
Não custa lembrar, por fim, que a comprovação do risco origina um dever cautelar. Assim, o risco pode ser demonstrado por meio da situação fática que se apresentar ao intérprete, não sendo razoável inadmitir a proteção à ordem econômica, à aplicação da lei penal ou à instrução criminal caso o risco apresentado esteja descrito em um dos parâmetros do § 3º do art. 312 do CPP.
Finalizando, nos termos do art. 2º, a Lei 15.272/25 entra em vigor na data de sua publicação, tratando-se de norma de caráter processual, regida pelo Princípio da Aplicação Imediata da Lei Penal.
Portanto, não há de se cogitar que seja determinado aos juízes do país uma reanálise das decisões de decreto de prisão preventiva para adequá-las aos §§ 3º e 4º do art. 312 do CPP (especialmente ao § 3º), porque se trata de vetores ou hipóteses que podem caracterizar risco a uma das hipóteses de cabimento da prisão preventiva, sobretudo, à ordem pública.
Conclusão – Primeiras Impressões sobre o Novo Regime da Prisão Provisória
As alterações introduzidas pela Lei nº 15.272/2025 — que reformam o regime da prisão provisória no processo penal — revelam a intenção do legislador de conferir maior objetividade e previsibilidade à atuação judicial, especialmente no contexto das audiências de custódia. O diploma busca reduzir o subjetivismo decisório, padronizar critérios e ampliar a eficácia das investigações criminais, ainda que, em contrapartida, suscite legítimos debates sobre eventuais impactos nas garantias individuais.
Entre os aspectos positivos, destaca-se a ampliação da racionalidade normativa e a simplificação da fundamentação judicial. A introdução de um rol de circunstâncias que recomendam a conversão do flagrante em preventiva (art. 310, § 5º), aliada à previsão de critérios objetivos para aferição da periculosidade (art. 312, § 3º) e à vedação expressa de decisões baseadas em gravidade abstrata (art. 312, § 4º), representa significativo avanço técnico. Tais dispositivos fortalecem o dever constitucional de motivação, proporcionam maior controle social e recursal das decisões e contribuem para a uniformização da prática jurisdicional, ao mesmo tempo em que preservam a discricionariedade vinculada do magistrado.
De igual modo, a obrigatoriedade da coleta de material genético em crimes de maior gravidade reforça a capacidade investigativa do Estado, permitindo o incremento da identificação criminal e a elucidação de delitos complexos, desde que submetida a critérios rigorosos de proporcionalidade e finalidade.
Não obstante, permanecem críticas fundadas na possível diluição do caráter excepcional da prisão preventiva, uma vez que o elenco ampliado de hipóteses “recomendadas” pode, na prática, aproximar a medida cautelar de uma antecipação punitiva. Soma-se a isso a controvérsia em torno da coleta compulsória de perfil genético, que tensiona o princípio da não autoincriminação e exige leitura compatível com o sistema de garantias constitucionais e convencionais. Em síntese, as inovações ora examinadas constituem avanço normativo relevante na busca por um processo penal mais técnico e funcionalizado. Estas são, portanto, primeiras impressões acerca de uma reforma que, embora promissora em sua teleologia racionalizadora, demandará amadurecimento interpretativo e vigilância crítica na sua aplicação prática.