“Tudo é dor
E toda dor vem do desejo
De não sentirmos dor”. [1]
1-INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é correlacionar os versos da letra da música “Quando o sol bater na janela do teu quarto”, da Banda Legião Urbana, com alguns ramos do saber, tais como a Psicanálise Freudiana, a Filosofia, a Religião e a Criminologia, entrelaçando de forma multidisciplinar esses saberes com um dado da cultura musical brasileira.
Por óbvio o texto não tem nem de longe a pretensão de esgotar o tema em qualquer de seus aspectos, seguindo o procedimento de abordar apenas alguns pontos de interseção ao molde de uma espécie de sugestão para futuros aprofundamentos.
2-NA PSICANÁLISE FREUDIANA:
Esmiuçando o que sugere a letra musical, pode-se afirmar que não é pela ocultação das lembranças e dos sentimentos que se pode evitar a dor. Essa operação de ocultamento só faz recalcar a dor. A lembrança e o enfrentamento da própria dor é que enseja a cura dessa mesma dor. Ou seja: esquecer é uma ilusão — o conteúdo não desaparece, ele só muda de lugar.
Em “Além do Princípio de Prazer”, Freud aborda a tendência humana de fugir da dor, mas questiona o império absoluto do “Princípio do Prazer” (busca de prazer e fuga da dor), demonstrando que muitas vezes ocorre uma “compulsão à repetição” pelo reviver de experiências dolorosas, ainda que contrariando o “Princípio do Prazer”. [2] Isso muito embora reconheça alhures que a fuga da dor é constitutiva fisiológica do ser humano até porque “o sistema nervoso tem a mais decidida propensão a fugir da dor” (grifo no original). [3]
Recordar é parte do processo de cura.
• Freud dizia que a análise trabalha pela recordação, repetição e elaboração (Erinnern, Wiederholen und Durcharbeiten).
• A cura não está em apagar a memória, mas em conseguir recordá-la em um novo enquadre psíquico.
Atravessar a dor é essencial.
• No luto, por exemplo, a pessoa precisa reexperimentar, pouco a pouco, as lembranças ligadas ao objeto perdido, até que consiga desligar a libido e reinvesti-la em novos objetos.
• Isso é diferente de esquecer: é lembrar, mas com menos sofrimento, até que a lembrança se torne “suportável”.[4]
Sintomas como tentativas falhas de esquecer:
• Quando algo é recalcado para não ser lembrado, volta como sintoma neurótico.
• A análise procura justamente dar acesso a esse material recalcado, para que ele seja lembrado de forma consciente e menos dolorosa.
Os versos da letra da Banda Legião Urbana têm ligação com questão bastante debatida em textos da psicologia analítica e psicanálise. Por exemplo, em questões sobre o sofrimento humano e o medo da dor, enquanto resistência natural à experiência do sofrimento. A ideia mestra é que o sofrimento é mais intenso quando se tenta evitá-lo a qualquer custo, ou seja, o desejo de não sentir dor acaba gerando mais dor.
2-NA FILOSOFIA:
É possível entrever também nos versos da canção enfocada uma inspiração filosófica que ecoa ideias de filósofos como Friedrich Nietzsche e Alain de Botton. É deste último a frase com frequência atribuída erroneamente ao primeiro:
“Nossa dor vem da distância entre aquilo que somos e o que idealizamos ser”. [5]
O homem precisa enfrentar a realidade daquilo que é. Não adianta idealizar um mundo sem dores ou sofrimentos. A realidade nos devolverá uma dor proporcional à distância entre aquilo que é e nossas idealizações.
De acordo com o aforismo nietzschiano: “Na Escola Bélica da Vida — O que não me faz morrer me torna mais forte”, [6] o que no Brasil se transformou no dito popular: “O que não mata, engorda”.
Outro filósofo de orientação bastante diversa de Nietzsche, o espanhol Julián Marías, nos ensina que a verdade não somente existe, mas resiste às vãs tentativas humanas de burla, [7] de modo que ocultar ou rejeitar a dor inerente à existência, ao reverso de apagar ou afastar a dor, a fará surgir de forma ainda mais avassaladora.
3-NA RELIGIÃO:
Iniciando pelo Budismo tradicional, encontra-se a chamada “segunda nobre verdade”, a afirmar que o sofrimento (dukkha) advém do desejo ou apego (tanha, em páli). São exemplos:
* Desejo de prazeres sensuais (tudo que advém dos sentidos)
* Desejo de perpetuar a existência
* Desejo de cessar a existência
Esses desejos em que se pretende evitar dores (V.g. A impossibilidade do gozo sensual, a dor da impermanência, a dor da própria existência e dos sofrimentos que a ela inerem), ao contrário de evitar o sofrimento, o acoroçoam.
Os desejos e apegos são considerados as origens do sofrimento na medida em que pretendem resistir à impermanência e à realidade como esta é. Ao tentar evitar a dor a qualquer custo, ensejamos, ao reverso mais sofrimento. [8]
No Zen Budismo a ideia se radicaliza pela prática da aceitação plena do momento presente, sem julgamento ou resistência. A dor é dada pela existência, mas o sofrimento surge da rejeição da dor. Se deixarmos de lutar contra a dor ela perde seu poder sobre nós.
O budismo nos instrui a ver a dor como dor, não como sofrimento. A dor é inevitável, mas o sofrimento de interpretar a dor como algo errado, desconfortável ou inadmissível, é, sim, opcional. [9]
Sem a pretensão de defender qualquer concepção ecumênica radical, é possível, porém, vislumbrar também, neste ponto específico, uma aproximação dos versos da canção em destaque com a concepção cristã a respeito da dor e do sofrimento.
A mensagem cristã não apresenta a dor e o sofrimento sob um enfoque negativo. Jesus ensina que seus seguidores devem carregar as respectivas cruzes (Lucas 9,23), [10] não isentando ninguém do sofrimento na vida terrena. Ao contrário, não é buscando evitar o sofrimento que o cristão pode atingir a plenitude da graça. É pela aceitação das dores da vida, numa verdadeira “imitação de Cristo”, [11] que não renegou sua dolorosa paixão, que o cristão se realiza espiritualmente. Não sem razão afirma Santo Afonso Maria de Ligório, citando São João Crisóstomo, que “não basta para nos salvar só a cruz de Jesus Cristo, se nós não levamos com resignação até a morte também a nossa”. [12] Nesse passo, a fuga da dor afasta da graça e pode ocasionar a perda definitiva e, ao fim e ao cabo, o sofrimento eterno. Assim sendo, o desejo desordenado de não sentir dor conduz ao caminho de uma dor infinita.
4-NA CRIMINOLOGIA
Não há dúvida de que o desejo desordenado de evitar dores, sofrimentos ou quaisquer privações pode ser fator criminógeno, que leva ao cometimento de infrações penais, gerando dores às vítimas e aos próprios criminosos pela inflição das respectivas penas, afora eventuais sofrimentos morais devidos a arrependimentos ou remorsos.
Personalidades que tendem ao egocentrismo e à ausência ou deficiência de freios morais, tais como as marcadas pela psicopatia, pelo narcisismo, dentre outros desvios, tendem à pretensão de evitar qualquer dor, sofrimento, limitação ou privação, em detrimento das demais pessoas e das regras sociais de convivência. [13] Em sua saga incontida e desordenada pelo próprio prazer, capricho e satisfação, acabam criando muita dor para si mesmos e para terceiros (lesados ou vítimas). Todas essas dores advêm exatamente do desejo desordenado de não sentir dor.
Também sob o aspecto sócio-cultural, vale mencionar o exemplo do indivíduo submerso e submisso a um caldo de cultura caracterizado pela egolatria e o hedonismo exacerbado, que é, obviamente, mais um caso típico de criminogenia geradora de sofrimento próprio e de terceiros, exatamente pelo desejo do prazer e do afastamento da dor a qualquer custo e em quaisquer circunstâncias.[14]
5-CONCLUSÃO
Observamos neste trabalho que uma manifestação cultural musical, conscientemente ou não, pode relacionar-se com diversos campos do saber ao descrever uma característica humana universal que possibilita uma abordagem multidisciplinar fecunda e capaz de expor a natureza humana sob diversos ângulos.
7-REFERÊNCIAS
BÍBLIA Sagrada. 150ª. ed. São Paulo: Ave Maria, 2002.
BOTTON, Alain de. As Consolações da Filosofia. Trad. Eneida Santos. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
BOTTON, Alain de. Philosophy: A Guide to Happiness: Nietzsche on Hardship. (2000). Disponível em https://vimeopro.com/celialowenstein/philosophy-with-alain-de-botton/video/110798388 , acesso em 03.10.2025.
CESAR, Bel, MACIEL, Mariane. O Luto no Budismo. Disponível em https://vamosfalarsobreoluto.com.br/2016/01/09/o-luto-no-budismo/ , acesso em 03.10.2025.
FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2002.
FREUD, Sigmund. Além do Princípio de Prazer. In: FREUD, Sigmund. Obras completas de Sigmund Freud. Volume XVIII. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Inibições, Sintomas e Ansiedade. Ansiedade, Dor e Luto. In: Obras completas de Sigmund Freud. Volume XX. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. In: FREUD, Sigmund. Obras completas de Sigmund Freud. Volume XIV. Trad. Themira de Oliveira Brito, Paulo Henriques Britto e Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1974.
FREUD, Sigmund. Projeto Para Uma Psicologia Científica. In: FREUD, Sigmund. Obras completas de Sigmund Freud. Volume I. 3ª. ed. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
KEMPIS, Tomás de. Imitação de Cristo. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001.
KRELING, Danielle. A Segunda Nobre Verdade. Disponível em https://www.budismohoje.org.br/a-segunda-nobre-verdade/ , acesso em 03.10.2025.
LIGÓRIO, Santo Afonso Maria de. Meditações para todos os dias do ano. Tomo I. Rio de Janeiro: CDB, 2023.
MARÍAS, Julián. Tratado Sobre a Convivência – Concórdia sem acordo. Trad. Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos ou A Filosofia a Golpes de Martelo. Trad. Edson Bini e Márcio Pugliesi. Curitiba: Hemus, 2001. RUSSO, Renato, BONFÁ, Marcelo, Villa – Lobos, Dado. Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto. Disponível em https://www.letras.mus.br/legiao-urbana/22494/ , acesso em 03.10.2025.
[1] RUSSO, Renato, BONFÁ, Marcelo, Villa – Lobos, Dado. Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto. Disponível em https://www.letras.mus.br/legiao-urbana/22494/ , acesso em 03.10.2025.
[2] FREUD, Sigmund. Além do Princípio de Prazer. In: FREUD, Sigmund. Obras completas de Sigmund Freud. Volume XVIII. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 17 – 85.
[3] FREUD, Sigmund. Projeto Para Uma Psicologia Científica. In: FREUD, Sigmund. Obras completas de Sigmund Freud. Volume I. 3ª. ed. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 417.
[4] FREUD, Sigmund. Luto e Melancolia. In: FREUD, Sigmund. Obras completas de Sigmund Freud. Volume XIV. Trad. Themira de Oliveira Brito, Paulo Henriques Britto e Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 271 – 291. E também: FREUD, Sigmund. Inibições, Sintomas e Ansiedade. Ansiedade, Dor e Luto. In: Obras completas de Sigmund Freud. Volume XX. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 194 – 198.
[5] Cf. BOTTON, Alain de. Philosophy: A Guide to Happiness: Nietzsche on Hardship. (2000). Disponível em https://vimeopro.com/celialowenstein/philosophy-with-alain-de-botton/video/110798388 , acesso em 03.10.2025. A ideia também é desenvolvida pelo autor quando trata do pensamento de Nietzsche em seu livro “As Consolações da Filosofia”, mais precisamente no capítulo intitulado “Consolação para as Dificuldades”. Cf. BOTTON, Alain de. As Consolações da Filosofia. Trad. Eneida Santos. Rio de Janeiro: Rocco, 2001, p. 231 e ss.
[6] NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos ou A Filosofia a Golpes de Martelo. Trad. Edson Bini e Márcio Pugliesi. Curitiba: Hemus, 2001, p. 7.
[7] MARÍAS, Julián. Tratado Sobre a Convivência – Concórdia sem acordo. Trad. Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 23.
[8] KRELING, Danielle. A Segunda Nobre Verdade. Disponível em https://www.budismohoje.org.br/a-segunda-nobre-verdade/ , acesso em 03.10.2025.
[9] CESAR, Bel, MACIEL, Mariane. O Luto no Budismo. Disponível em https://vamosfalarsobreoluto.com.br/2016/01/09/o-luto-no-budismo/ , acesso em 03.10.2025.
[10] BÍBLIA Sagrada. 150ª. ed. São Paulo: Ave Maria, 2002, p. 1359.
[11] KEMPIS, Tomás de. Imitação de Cristo. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001, “passim”.
[12] LIGÓRIO, Santo Afonso Maria de. Meditações para todos os dias do ano. Tomo I. Rio de Janeiro: CDB, 2023, p. 504.
[13] FERNANDES, Newton, FERNANDES, Valter. Criminologia Integrada. 2ª. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 299.
[14] Op. Cit., p. 380.