A introdução do tipo penal autônomo para o feminicídio pela Lei n. 14.994/2024 (art. 121-A, CP) tem gerado intenso debate sobre os quesitos que devem ser formulados pelo juiz-presidente no julgamento pelo tribunal do júri. Neste breve artigo, abordaremos de forma objetiva os aspectos iniciais do problema, ou seja, como devem ser formulados os quesitos relativos à materialidade, autoria e caracterização do delito.
Como é de conhecimento dos estudantes e profissionais do tribunal do júri, o art. 483 do CPP estabelece a ordem que deve ser seguida pelo juiz na formulação dos quesitos. De acordo com a sequência prevista pelo legislador, o juiz deve, em primeiro lugar, formular quesito sobre “a materialidade do fato” e, em seguida, sobre “a autoria ou participação” (incisos I e II). Os §§ 4º e 5º do art. 483 também são relevantes para a discussão do feminicídio, pois estabelecem, respectivamente, que: a) sustentada a desclassificação da infração para outra de competência do juiz singular, será formulado quesito a respeito, para ser respondido após o segundo ou terceiro quesito, conforme o caso; b) sustentada a tese de ocorrência do crime na sua forma tentada ou havendo divergência sobre a tipificação do delito, sendo este da competência do Tribunal do Júri, o juiz formulará quesito acerca destas questões, para ser respondido após o segundo quesito.
Diante disso, como devem ser aplicadas tais regras ao feminicídio?
Nos debates que temos acompanhado, não há divergências significativas quanto ao primeiro quesito, que trata da materialidade: o juiz deve indagar os jurados se a vítima, nas circunstâncias de tempo e local indicados na denúncia, foi alvo de disparos de arma de fogo, golpes de faca ou outro modo de execução, conforme o caso concreto, e se sofreu os ferimentos descritos no laudo de exame de corpo de delito, exceto em caso de tentativa “branca”.
Respondido negativamente este quesito pelo conselho de sentença, o réu é absolvido; respondido afirmativamente, a votação prossegue e aqui começam as divergências já notadas nos ambientes de debate.
Alguns defendem que o segundo quesito deve tratar da autoria, cabendo ao juiz indagar se o acusado foi o autor do fato descrito no quesito anterior. Somente então se formula o quesito sobre a caracterização do feminicídio, ou seja, se o acusado agiu por razões da condição do sexo feminino, caracterizado pelo crime envolver violência doméstica e familiar, ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Resumo:
Quesito 1 – materialidade
Quesito 2 – autoria
Quesito 3 – se o crime foi cometido por razões da condição do sexo feminino
Tal posicionamento é defensável, visto que este terceiro quesito pode levar à desclassificação. Se respondido negativamente pelos jurados, teríamos a caracterização provisória de um homicídio, previsto no art. 121 do CP, observando-se o § 4º do art. 483 do CPP.
No entanto, respeitosamente, ousamos sugerir ordem diversa. Acreditamos que, antes de tratar da autoria, é necessário estabelecer se houve crime de feminicídio ou de homicídio, ambos dolosos contra a vida. O § 4º do art. 483 parece ter sido pensado para teses que podem levar à desclassificação para crime fora da competência do júri, como quando se pergunta aos jurados se o agente quis ou assumiu o risco de matar a vítima, sendo o delito consumado; a tentativa é tratada separadamente no § 5º, sendo quesito que também pode levar à mesma espécie de desclassificação.
Portanto, além de não ser propriamente hipótese de incidência do § 4º do art. 483, há outro argumento para que o quesito sobre ter o agente matado ou tentado matar por razão da condição do sexo feminino seja inserido na segunda posição, antes da autoria: se o delito imputado é o feminicídio, cabe aos jurados, antes de decidir sobre quem foi o autor, definir se tal delito de fato existiu, seja quanto à materialidade, ou seja, a ocorrência física do crime, seja em relação à sua caracterização jurídica, com a especificação de ter envolvido violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Não podemos, no primeiro quesito, perguntar uma parte do crime de feminicídio e a segunda parte somente a após o reconhecimento da autoria.
Resumo:
Quesito 1 – materialidade
Quesito 2 – se o crime foi cometido por razões da condição do sexo feminino
Quesito 3 – autoria
De qualquer maneira, como dissemos, é defensável a posição contrária e, ao final, o resultado será o mesmo, portanto, sem reflexos práticos. Colocado o quesito de caracterização do feminicídio em segundo lugar, se afirmado pelos jurados, vota-se a autoria e, se negado, tem-se a desclassificação para homicídio, ainda precária, devendo-se prosseguir a votação para se saber a autoria; colocado depois da autoria, nada muda, independentemente de os jurados reconhecerem ou não o feminicídio.
Se o crime for tentado, faz-se um quarto quesito, indagando-se se o acusado iniciou a execução de um crime (de feminicídio ou homicídio, conforme o que tiverem decidido antes), que não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade. O quesito sobre a tentativa, somente deixará de ser o quarto se a defesa sustentar, como tese principal, causa de exclusão da ilicitude ou da culpabilidade, hipótese em que se deve formular, na quarta posição, a pergunta sobre se os jurados absolvem o réu, e somente depois, se condenarem, a pergunta sobre a tentativa.[1]
Se a defesa não negar a agressão que resultou na morte da vítima, mas alegar ausência de “animus necandi”, deve o juiz formular quesito a respeito do dolo, como já observamos, que também poderá estar na quarta ou na quinta posição, a depender de qual foi a tese principal. O mesmo se afirmada a forma culposa, cujo quesito possui formulação própria e específica.
Não concordamos, de outra parte, com o entendimento de que o quesito sobre a caracterização do feminicídio deveria vir depois da questão genérica sobre a absolvição. É que, embora seja uma solução realmente engenhosa, esbarra na ordem trazida pelo próprio art. 483 do CPP, vez que tal indagação não trata propriamente de causa de diminuição de pena, majorante ou qualificadora.
Por fim, um ponto que não podemos deixar de abordar. Há respeitável entendimento no sentido de que, não tendo a defesa sustentado a desclassificação do feminicídio para homicídio, o juiz não deve formular quesito próprio a respeito de ter sido o delito praticado por razão da condição do sexo feminino, devendo aglutinar tal indagação com a pergunta sobre a materialidade ou autoria. Ou seja, ficaria tudo concentrado num único quesito, primeiro ou segundo.
Resumo:
Sugestão 1
Quesito 1 – materialidade + se o crime foi cometido por razões da condição do sexo feminino
Quesito 2 – autoria
Sugestão 2
Quesito 1 – materialidade
Quesito 2 – autoria + se o crime foi cometido por razões da condição do sexo feminino
Ousamos discordar de qualquer das sugestões. Não podemos aglutinar numa pergunta duas questões independentes. Imaginemos, na linha da primeira sugestão, que o jurado, reconhecendo que o fato material existiu, mas discordando das razões do crime, vota “não” ao primeiro quesito. Isso força a conclusão de que o crime não existiu (não espelhando o que entenderam os jurados). Adotada a segunda sugestão teríamos o mesmo problema, agora ligado à autoria. Se os jurados reconhecem que o acusado é o responsável pela morte, mas negam a razão do crime, vão votar “não” ao segunda quesito, obrigando o juiz a concluir que o conselho de sentença negou a autoria do crime, quando, na verdade, não queria fazê-lo.
Pode-se argumentar que os jurados não poderiam acolher tese não sustentada pelas partes. Claro, mas, como dizia um saudoso gênio do futebol, “falta combinar com os russos”.
Com base nos breves comentários acima, esperamos ter lançado alguma luz sobre esses problemas iniciais a respeito dos quesitos no julgamento do feminicídio. Existem outros aspectos que talvez possamos abordar em um próximo artigo.
[1] Notem os leitores que estamos a seguir certa corrente jurisprudencial a respeito do tema. Não ignoramos que existe entendimento recente, no STJ, de que a ordem desses quesitos deve ser observada pelo juiz, consoante o que for mais vantajoso para o réu. No entanto, pensamos que não cabe ao juiz fazer tal valoração, que já foi realizada pela própria defesa do acusado. Por isso, ficamos com a posição que trouxemos no texto, que possui amparo jurisprudencial, embora possa receber, não sem razão, críticas. Mas, atenção: esse não é um ponto realmente relevante para o que estamos aqui a tratar.