O § 3º do art. 140 do CP, acrescentado pela Lei 9.459/97 e alterado pelo Estatuto da Pessoa Idosa (Lei 10.741/03), qualificava a injúria consistente na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
Por muitos anos a doutrina e a jurisprudência alertaram que a qualificadora da injúria não se confundia com o crime de racismo, tipificado na Lei 7.716/89. No crime de racismo teria que existir segregação (marginalização) em função de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Impedir alguém, por exemplo, de ingressar numa festa por causa de sua cor sempre foi encarado como racismo, delito inafiançável e imprescritível por expressa disposição constitucional (art. 5º, XLII). Já a ofensa envolvendo raça, cor, etnia, religião ou origem da vítima, sem segregação, era injúria qualificada.
A diferença entre as condutas repercutia em alguns aspectos práticos, pois enquanto o racismo é inafiançável, imprescritível e de ação penal pública incondicionada, a injúria sempre foi tratada como crime afiançável, prescritível e de ação penal pública condicionada a representação do ofendido.
Mas isso mudou, começando pela jurisprudência. Inicialmente, o STJ inseriu a injúria racial na seara dos crimes de racismo, tornando-a imprescritível, pois cometida com sentido de segregação, somando-se às definições da Lei nº 7.716/89 (AgRg no REsp 686.965/DF). O STF seguiu a mesma linha no julgamento do habeas corpus 154.248/DF (j. 28/10/2021). Segundo o tribunal, a Constituição Federal, que é expressa a respeito da imprescritibilidade do racismo, não distingue quais tipos penais podem ser assim classificados, ou seja, não limita a incidência de medidas mais severas às condutas tipificadas na Lei 7.716/89.
Nessas decisões, não se aprofundou uma série de consequências a par da imprescritibilidade, como o cabimento ou não da fiança e a necessidade ou não de representação do ofendido. Não bastasse, coube à doutrina alertar que o alargamento dado pelas citadas decisões não abrangeria todo o §3º do art. 140 do CP, pois o preconceito quanto à condição de pessoa idosa ou com deficiência não é objeto da Lei 7.716/89.
Depois da intervenção dos tribunais, interveio o legislador. A Lei 14.532/23 modifica novamente o conteúdo da qualificadora do art. 140, §3º, do CP, que passa a ter a seguinte redação:
“§ 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência:
Pena – reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.”
Excluem-se da forma qualificada da injúria ofensas com elementos referentes a raça, cor, etnia ou procedência nacional. Essas modalidades de preconceito migraram para a Lei 7.716/89:
“Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.”
Não há mais dúvida, portanto, de que essa forma de injúria deve sofrer as mesmas consequências do crime de racismo: imprescritibilidade, inafiançabilidade e incondicionalidade da ação penal pública.
Curiosamente, não migrou do § 3º do art. 140 o preconceito religioso, igualmente objeto da Lei 7.716/89, faltando, nesse tanto, atenção da Casa de Leis. No que se refere ao preconceito religioso, o intérprete deve redobrar a atenção. Se o caso espelhar ofensas, será o crime do art. 140, §3º, do CP; se indicar segregação ou incentivo à segregação, crime da Lei 7.716/89.
E não nos esqueçamos de que a injúria racial abrange a ofensa preconceituosa contra homossexuais e transexuais, nos termos da decisão proferida pelo STF na ADO 26, na qual se firmou a seguinte tese:
“Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, ‘in fine’)”.
A Lei 14.532/23 obviamente é irretroativa, não alcançando fatos pretéritos, em estrita obediência ao art. 1º do CP.
No quadro abaixo, resumimos algumas formas mais comuns de preconceito e a sua resposta penal, levando em conta o Código Penal e a legislação extravagante:
Ofensas | Segregação concreta ou incentivada | |
Preconceito envolvendo raça | Art. 2º-A da Lei 7.716/89 | Arts. 3º a 14 e art. 20, Lei 7.716/89 |
Preconceito envolvendo cor | Art. 2º-A da Lei 7.716/89 | Arts. 3º a 14 e art. 20, Lei 7.716/89 |
Preconceito envolvendo etnia | Art. 2º-A da Lei 7.716/89 | Arts. 3º a 14 e art. 20, Lei 7.716/89 |
Preconceito envolvendo procedência nacional | Art. 2º-A da Lei 7.716/89 | Arts. 3º a 14 e art. 20, Lei 7.716/89 |
Preconceito envolvendo religião | Art. 140, §3º, do CP | Arts. 3º a 14 e art. 20, Lei 7.716/89 |
Preconceito envolvendo a condição de pessoa idosa | Art. 140, §3º, do CP | Art. 96 da Lei 10.741/03 (Estatuto da Pessoa Idosa) |
Preconceito envolvendo a condição de pessoa com deficiência | Art. 140, §3º, do CP | Art. 88 da Lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) ou Art. 8º da Lei 7.853/89 Obs.: a relação entre as normas é de gênero (art. 88) e espécies (crimes da Lei 7.853/89). Presente ato discriminatório, primeiro analisamos a adequação nos tipos da Lei 7.853/89. Não havendo subsunção, aplica-se o art. 88 do Estatuto. |
Preconceito envolvendo pessoa portadora do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e doente de aids. | Art. 140, caput, do CP | Art. 1º da Lei 12.984/14 |