O CPC/2015 introduziu no Brasil a sistemática processual relacionada aos precedentes judiciais vinculantes, modelo predominante no sistema jurídico anglo-saxão. Em obra de nossa autoria tivemos a oportunidade de afirmar:
“O atual CPC deve ser compreendido dentro de um novo contexto, diferente daquele que predominava no regime processual anterior, e que pode ser assinalado pela expressão direito jurisprudencial: emerge a força dos precedentes, aproximando nosso sistema jurídico do sistema jurídico anglo-saxão de common law”
(DONOSO, Denis; SERAU JR., Marco Aurélio. Manual dos Recursos Cíveis, 7ª ed., Salvador: Juspodivm, 2022, p. 134)
Esse novo modelo processual inaugurado pelo CPC/2015 ainda exige a compreensão de diversas situações inéditas e desafiadoras, especialmente em relação à sua aplicação prática.
Neste artigo iremos discutir o alcance do mecanismo de overruling a partir de um exemplo que perpassa a Justiça Federal: a devolução de valores correspondentes a benefícios previdenciários concedidos em tutela antecipada cassada por decisão judicial posterior (Tema 692 dos recursos especiais repetitivos).
Veja-se a tese firmada pela Primeira Seção no julgamento do REsp 1.401.560/MT, acórdão publicado no DJe de 13/10/2015:
A reforma da decisão que antecipa a tutela obriga o autor da ação a devolver os benefícios previdenciários indevidamente recebidos.
Conforme anotações que constam do próprio site do STJ, o voto condutor no acórdão do julgamento do recurso especial correspondente ao Tema 692 deixou consignadas algumas matérias que deveriam ser observadas e debatidas de modo mais amplo, especialmente para consignar algumas possibilidades de distinguishing:
a) tutela de urgência concedida de ofício e não recorrida; b) tutela de urgência concedida a pedido e não recorrida; c) tutela de urgência concedida na sentença e não recorrida, seja por agravo de instrumento, na sistemática processual anterior do CPC/1973, seja por pedido de suspensão, conforme o CPC/2015; d) tutela de urgência concedida initio litis e não recorrida; e) tutela de urgência concedida initio litis, cujo recurso não foi provido pela segunda instância; f) tutela de urgência concedida em agravo de instrumento pela segunda instância; g) tutela de urgência concedida em primeiro e segundo graus, cuja revogação se dá em razão de mudança superveniente da jurisprudência então existente; h) tutela de urgência concedida e cassada, a seguir, seja em juízo de reconsideração pelo próprio juízo de primeiro grau, ou pela segunda instância em agravo de instrumento ou mediante pedido de suspensão; i) tutela de urgência cassada, mesmo nas situações retratadas anteriormente, mas com fundamento expresso na decisão de que houve má-fé da parte ou afronta clara a texto de lei, como no caso das vedações expressas de concessão de medida liminar ou tutela antecipada.
O impacto do Tema 692 foi muito grande no Processo Judicial Previdenciário. As ações previdenciárias geralmente são movidas por pessoas com grande perspectiva de vulnerabilidade econômica, que redunda em notória vulnerabilidade processual (SERAU JR., Marco Aurélio. Curso de Processo Judicial Previdenciário, 4ª, S. Paulo: Método, 2014).
Além disso, são grandes as oscilações jurisprudenciais, seja pelo intenso diálogo entre as Cortes Superiores (notadamente STF e STJ, mas também com repercussão da atuação da TNU e dos Tribunais Regionais Federais), seja por conta da alteração de composição (falando aqui especificamente da TNU, que é composta por Juízes Federais com mandatos de 2 anos).
Diante dessa configuração, foi grande a insatisfação das pessoas que militam com Direito Previdenciário em relação à tese inicial fixada em 2015 pelo STJ, bem como intensos os prejuízos aos segurados, que recebem verba alimentar.
Em 2018 o tema foi direcionado pelo Ministro Og Fernandes para possível revisão pela Corte da Cidadania. Em 11.5.2022 a 1ª Seção do STJ reafirmou a tese jurídica contida no Tema 692, fazendo também acréscimo redacional para adequar o tema à nova legislação de regência:
A reforma da decisão que antecipa os efeitos da tutela final obriga o autor da ação a devolver os valores dos benefícios previdenciários ou assistenciais recebidos, o que pode ser feito por meio de desconto em valor que não exceda 30% (trinta por cento) da importância de eventual benefício que ainda lhe estiver sendo pago
O acréscimo redacional se deve às alterações efetuadas no art. 115 da Lei 8.213/1991, advindas da Lei 13.846/2019.
A nova tese jurídica fixada parece proporcionar aos segurados e beneficiários da Previdência Social situação ainda mais gravosa que a anterior, pois passa a permitir também a cobrança da devolução dos valores correspondentes a benefícios assistenciais – cujo caráter emergencial é notório.
É importante registrar que, essa matéria foi apreciada pelo STF em 2015, no Tema 799, ao qual não se reconheceu existência de repercussão diante da configuração de matéria infraconstitucional. De sorte que esse tema sempre se esgotará no âmbito da jurisdição do STJ, nos termos do art. 105, inciso III, da Constituição Federal.
Em nossa obra já citada tivemos a oportunidade de mencionar alguns cuidados em relação ao overruling:
“A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.”
(DONOSO, Denis; SERAU JR., Marco Aurélio. Manual dos Recursos Cíveis, 7ª ed., Salvador: Juspodivm, 2022, p. 136)
O art. 927, § 4º, do CPC, estabelece que a alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos “poderá” ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
Embora a participação dos amici curiae não seja obrigatória, ocorreu no caso concreto.
Apesar da participação destes diversos órgãos interessados no deslinde do julgamento do Tema 692, a revisão da tese não discutiu os diversos pontos de possíveis distinguishing que já haviam sido elencados pelo próprio Relator do voto do recurso especial que deu ensejo à fixação da tese original – os quais continuarão ainda sem uma definição forte, a qual deveria vir preferencialmente em tese dotada de eficácia vinculante, nos termos dos artigos 926 e 927 do CPC.
Também destaco que não houve modulação de efeitos da nova tese jurídica fixada, o que certamente será objeto de embargos de declaração quando publicado acórdão, sob pena de grande tumulto processual nas instâncias inferiores.
Como se vê, o CPC traz apenas algumas singelas regras procedimentais a respeito da dinâmica do overruling, e nada dispõe a respeito do alcance e limites da nova tese jurídica que será discutida e fixada pelas Cortes Superiores.
A sociedade civil, os atores processuais e mesmo os órgãos especializados em determinadas matérias ainda continuam bastante distantes da possibilidade de uma participação efetiva na formulação dos precedentes vinculantes, bem como sua revisão e ilustração das hipóteses de distinção, que continuam a ser os pontos mais delicados nesta nova sistemática processual pautada por uma utilização mais intensiva dos precedentes judiciais.