O Bill of Lading, ou simplesmente, B/L, como será chamado ao longo desse texto, é o documento mais importante no comércio marítimo, uma vez que ele representa a carga, provando a sua propriedade. Na legislação brasileira é denominado como conhecimento de embarque, já que nele estão detalhadas todas as mercadorias embarcadas e que serão retiradas pelo consignatário da carga no porto de destino.
Atualmente, cabe ao armador do navio a emissão desse documento, expedido, em regra, em três vias, ficando uma no arquivo do agente, outra é entregue ao embarcador e a terceira, encaminhada ao consignatário. Nele será declarado o recebimento da mercadoria, ao embarcador, especificando o frete pago (freight prepaid) ou a pagar (freight collet) e outros detalhes.
Interessante mencionar que é considerado como um título de crédito, representando um recibo da mercadoria entregue e o contrato de transporte[1], dentre outras funções previstas nos artigos 576 a 589, do Código Comercial Brasileiro.
Muitos estudiosos do Direito Marítimo, como Carla Adriana Comitre Gibertoni[2], compreendem que se trata de um contrato de adesão[3]. Isto porque, o B/L possui um formulário padrão, havendo a ausência da possibilidade da discussão de cláusulas, devido às limitações impostas à autonomia das partes[4].
Um exemplo referente à essa notável característica do B/L é quanto à cláusula paramount que estabelece a aplicação de normas internacionais, muitas vezes consideradas como inaplicáveis, pelo Judiciário brasileiro, já que o Brasil não é Estado signatário, tais como as Regras de Haia-Visby[5]. Além da cláusula mencionada, outras importantes que expressam a limitação da autonomia das partes, presentes em todos os B/L, são a general average and salvage (avaria grossa e salvatagem), lien (direito de retenção da mercadoria para fins de pagamento) e, a principal, limitation of liability (limitação de responsabilidade).
Outra característica importante do B/L, em decorrência de seu conceito jurídico de título de crédito, representando a mercadoria, é a possibilidade de ser um título de consignação nominal ou um título ao portador[6]. Sendo nominativo (Straight Bill of Lading), o título de crédito poderá ser transferível por endosso[7] e, sendo transferível, a negociação do conhecimento de embarque equivale à negociação da carga, permitindo a circulação da propriedade da mercadoria mesmo quando estiver já embarcada, durante a viagem marítima, algo muito corriqueiro no comércio marítimo.
No conhecimento nominativo consta o nome do consignatário da carga, assim sendo, o vendedor (exportador) da mercadoria desejando transferir a sua propriedade a outrem no momento do embarque, deverá solicitar ao agente da companhia de navegação a emissão de um conhecimento à ordem do consignatário, ou seja, conterá o nome do proprietário da mercadoria.
Ocorre que há a subclassificação do conhecimento nominativo em à ordem (negotiable Bill of Lading ou order Bill of Lading) ou não à ordem (non negotiable Bill of Lading). O primeiro é o que permite o endosso, já que é consignado em nome do destinatário ou à ordem do próprio embarcador, de seu agente no porto de destino ou de outro indivíduo mencionado no documento. Já o endosso não à ordem somente permite a transmissão da mercadoria por meio das regras referentes à cessão civil de créditos e direitos, conforme as regras do Código Civil de 2002.
Feitas tais considerações importantes acerca do B/L, indispensável é a análise da tese defendida quanto à não configuração da infração do art. 107, IV, alínea e, do Decreto Lei 37/1966, por ocasião da retificação das informações referentes ao conhecimento. A IN RFB n° 800/2007, regulamentou o SISCARGA[8], consistindo no mecanismo de controle aduaneiro sobre cargas e unidades de carga (contêineres) nos portos alfandegados. Importante destacar a redação do art. 28, contido na Seção X “Do Conhecimento à Ordem”:
Art. 28. O transportador que emitiu o conhecimento à ordem informará o respectivo consignatário mediante a alteração dos dados básicos do CE que será automaticamente aceita pelo sistema.
Parágrafo único. Após a atracação da embarcação no primeiro porto de escala no País, a alteração deverá ser solicitada mediante função específica de retificação disponível no sistema e somente será efetivada após a sua aceitação pela autoridade aduaneira.
Diante do relatado, referente aos trâmites corriqueiros mencionados, no que tange à alienação da mercadoria durante seu transporte, pelo exportador, constata-se que cabe ao consignatário da mercadoria informar, no sistema, o endosso do conhecimento de embarque, sendo que, se for um endosso eletrônico, este somente será efetivado após a informação de sua aceitação pelo novo consignatário, por meio de função específica disponível no sistema.
Neste caso, haverá a necessidade da retificação das informações prestadas no SISCARGA.
Ocorre que, em diversas situações, a mera retificação foi compreendida pela Receita Federal do Brasil (RFB) como infração prevista no art. 107, IV, alínea e, do Decreto Lei 37/1966[9], sendo passível da lavratura de um auto de infração e, consequentemente, da aplicação da multa no montante de R$5.000,00 (cinco mil reais), consistindo em algo equivocado, por parte da autoridade aduaneira, já que a penalidade é cabível nos casos de prestação de informações a destempo e, não, quanto à mera retificação das informações, como no caso, do consignatário da mercadoria.
Ademais, compreendia-se pela responsabilidade tributária, pelo pagamento da multa em questão, do transportador marítimo, do depositário e do operador portuário, nos termos do art. 45, da IN RFB n° 800/2007.
A partir de inúmeras manifestações de inconformidade quanto à equivocada interpretação e aplicação da norma aduaneira, foi publicada a Solução de Consulta Interna n° 02, de 04 de fevereiro 2016, pela COSIT:
“ASSUNTO: NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO
IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. CONTROLE ADUANEIRO DAS IMPORTAÇÕES. INFRAÇÃO. MULTA DE NATUREZA ADMINISTRATIVO-TRIBUTÁRIA.
A multa estabelecida no art. 107, inciso IV, alíneas “e” e “f” do Decreto-Lei nº 37, de 18 de novembro de 1966, com a redação dada pela Lei nº 10.833, de 29 de dezembro de 2003, é aplicável para cada informação não prestada ou prestada em desacordo com a forma ou prazo estabelecidos na Instrução Normativa RFB nº 800, de 27 de dezembro de 2007.
As alterações ou retificações das informações já prestadas anteriormente pelos intervenientes não configuram prestação de informação fora do prazo, não sendo cabível, portanto, a aplicação da citada multa.
Dispositivos Legais: Decreto-Lei nº 37, de 18 de novembro de 1966; Instrução Normativa RFB nº 800, de 27 de dezembro de 2007.”
Desta feita, as alterações ou retificações de informações já prestadas anteriormente não se configuram como prestação de informação fora do prazo, não sendo cabível, portanto, a aplicação da multa mencionada. Ocorre que esse entendimento previsto na Solução de Consulta COSIT somente teve seu efeito vinculante reconhecido, no âmbito da Receita Federal do Brasil (RFB), a partir da data de sua publicação.
Resta aguardar a decisão final do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) quanto à aprovação da redação da 44ª proposta de enunciado de Súmula[10], acerca da inocorrência da infração questionada diante da retificação de informações no SISCARGA, principalmente quanto ao consignatário da carga.
Espera-se que com a aprovação deste enunciado de súmula, haja uma maior compreensão por parte da autoridade aduaneira quanto aos trâmites do comércio internacional marítimo, visto que é da essência, deste último, as negociações dinâmicas.
[1] Deve-se ter cuidado, pois o B/L não é um contrato de transporte marítimo e, muito menos, um contrato de fretamento da embarcação utilizada para transportar determinadas mercadorias.
[2] GIBERTONI, Carla Adriana Comitre. Teoria e Prática do Direito Marítimo. 3ª ed., atual., rev., e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. p. 279.
[3] Embora seja essa a natureza jurídica mais aceita pela doutrina brasileira, vale mencionar que a existência do booking note causa polêmicas. Isto porque enquanto o B/L é considerado como contrato, o booking note , conhecido como nota de reserva de praça, é documento que atesta a reserva de espaço, em um determinado navio, para a mercadoria a ser transportada de um porto a outro. Pode-se afirma que se trata de um documento preliminar do B/L, pois nele há o ajuste negocial entre as partes sobre as condições da reserva de praça, definindo o frete, o embarcador, o transportador, a mercadoria a ser transportada, o porto de embarque, o porto de desembarque e demais condições relevantes ao transporte da mercadoria. Portanto, acaso haja conflitos entre as partes (embarcador e transportador), deve-se prevalecer os termos negociados no booking note, já que o B/L, limita a autonomia das vontades, embora que havendo conflitos envolvendo terceiros, como consignatário da carga e o endossatário do título de crédito em questão, somente o B/L será documento a ser aceito.
[4] Nesse quesito há uma clara distinção entre o B/L e o contrato de transporte. Enquanto o B/L é unilateral, já que não há nenhum direito de alteração dos termos pré-fixados, o contrato de transporte é bilateral e consensual, além de ser não formal. Interessante mencionar que o B/L incorpora termos contratuais previstos no contrato de transporte de mercadorias.
[5] As Regras de Haia-Visby são bem discutidas dentre os estúdios brasileiros, uma vez que contemplam dezessete situações que ocasionam a exoneração da responsabilidade do transportador.
[6] Se o B/L é nominativo, a mercadoria embarcada pertence àquele que conta o nome no documento, ao passo que se for ao portador, a mercadoria pertence a quem detém sua posse.
[7] Endosso é a transferência da propriedade de um título nominativo que contenha a cláusula “à ordem”. Endossante é o sujeito proprietário da mercadoria que deseja transferir a propriedade ao endossatário, o indivíduo a quem a propriedade da mercadoria é transferida. Vale mencionar que dentre as modalidades de endosso, tem-se o endosso em branco que é aquele em que consta, apenas, a assinatura, no verso do título, do endossante, não constando o nome daquele em favor de quem é feito e, o endosso em preto (também conhecido como completo ou pleno), consistindo naquele que contém o nome do endossatário.
[8] Deverão ser informadas no SISCARGA, as seguintes informações:
– Número do manifesto eletrônico (e suas vinculações);
– Dado do navio e da viagem;
– Escalas previstas (e suas vinculações);
– Data e hora da atracação da embarcação;
– Numeração do conhecimento de embarque (e suas vinculações);
– Qualificação do embarcador e do consignatário da carga;
– Numeração do contêiner;
– Especificação da carga (descrição e código NCM);
– Peso da carga; e
– Numeração da declaração do despacho de importação ou exportação.
[9] “Art. 107. Aplicam-se ainda as seguintes multas: (Redação dada pela Lei nº 10.833, de 29.12.2003)
IV – de R$ 5.000,00 (cinco mil reais):
- e) por deixar de prestar informação sobre veículo ou carga nele transportada, ou sobre as operações que execute, na forma e no prazo estabelecidos pela Secretaria da Receita Federal, aplicada à empresa de transporte internacional, inclusive a prestadora de serviços de transporte internacional expresso porta-a-porta, ou ao agente de carga.”
[10] 44ª PROPOSTA DE ENUNCIADO DE SÚMULA: “A retificação de informações tempestivamente prestadas não configura a infração descrita no artigo 107, inciso IV, alínea “e” do Decreto-Lei nº 37/66.”