Conforme estabelece o art. 53, § 2º, da Constituição Federal, “desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”. Deve-se avivar que essa votação não mais será secreta, por força de alteração operada nesta norma pela Emenda Constitucional nº 35/2001.
Portanto, Deputados Federais e Senadores podem ser presos em flagrante apenas por crime inafiançável (imunidade prisional ou freedom from arrest). Na dicção constitucional, eles não podem sofrer prisões preventiva e temporária.
Todavia, impende registrar que o STF, em 2015, proferiu decisão absolutamente paradigmática ao decretar a prisão cautelar do então Senador Delcídio do Amaral, que se encontrava no exercício das suas funções, pela prática dos crimes previstos no art. 2º, caput e §1º, da Lei nº 12.850/13, a princípio contrariando o disposto no citado art. 53, §2º, do Texto Constitucional, o qual, conforme já explicitado, permite apenas a prisão em flagrante, em crime inafiançável, dos parlamentares federais (STF, AC nº 4.039/DF, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 25.11.15). Pela importância deste julgado, vale a pena conhecer de perto os argumentos utilizados pela Suprema Corte para o decreto da prisão neste caso, a saber:
(i) reconheceu-se que estariam presentes motivos cautelares para o decreto da prisão, daí porque os delitos alhures mencionados seriam inafiançáveis, com fundamento no art. 324, IV, do CPP.
(ii) asseverou-se que os crimes praticados pelo então Senador seriam permanentes, daí porque permitiram a prisão em flagrante enquanto não cessasse a permanência, situação que estaria demonstrada a partir das provas colhidas nos autos, notadamente a gravação de conversas mantidas entre o ex-Senador e, dentre outros envolvidos, um dos delatores da “Operação Lava-Jato”, Nestor Cerveró, com o oferecimento por parte daquele de um plano de fuga para este último caso ele não incluísse o ex-Senador em sua delação premiada, gravação esta realizada pelo filho do delator, Bernardo Cerveró.
(iii) entendeu-se que a regra insculpida no art. 53, §2º, da Constituição Federal não é absoluta, comportando, portanto, temperamentos, a serem realizados em cada caso concreto, especialmente com base na proporcionalidade. Aliás, esse tipo de ponderação da norma constitucional em comento já havia sido feita pelo próprio STF em 2006, na chamada “Operação Dominó”, deflagrada no Estado de Rondônia, oportunidade em que o Tribunal reconheceu a validade da prisão em flagrante de Deputados Estaduais e afastou a necessidade de comunicação do fato à Assembleia Legislativa no prazo de 24 (vinte e quatro) horas (STF, HC nº 89417, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 22.08.06).
A nosso ver, o STF acabou decretando a prisão preventiva do ex-Senador, e não a prisão em flagrante, até porque esta independe de ordem judicial. Embora não concordemos com muitos pontos deste julgado, certo é que, à luz da proporcionalidade e da ponderação de interesses, ele seria uma exceção ao comando contido no art. 53, § 2º, da Carta Magna Federal.
Contudo, há quem entendaARAÚJO, Fábio Roque; COSTA, Klaus Negri. Processo Penal Didático. 3. ed. rev., atual. e ampl. Salvador: JusPODIVM, 2020, p. 709. que não haveria propriamente desrespeito a essa norma constitucional, pois, em verdade, a Suprema Corte, com os argumentos acima apresentados, teria realizado construção para enquadrar a situação do ex-Senador em flagrante de crime inafiançável por meio da permanência delituosa, no intuito de revelar o cumprimento dos requisitos constitucionais. OutrosLACERDA, Fernando Hideo I. Prisão de senador Delcídio Amaral materializa o Estado de exceção. In: Revista Consultor Jurídico, nov. 2015. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2015-nov-26/fernando-lacerda-prisao-delcidio-elegia-estado-direito#author>. Acesso em: 17 fev. 2021., em posição intermediária, sustentam que o STF teria decretado uma prisão cautelar de congressista em situação de flagrância, isto é, um híbrido entre a prisão em flagrante e a prisão preventiva, aliada à desconsideração da imunidade parlamentar, “jabuticabalmente forjada no contexto de um processo penal de exceção”.
De qualquer sorte, no caso Delcídio do Amaral, em respeito ao mesmo art. 53, §2º, da Constituição, o STF determinou o envio dos autos, dentro do prazo de 24 (vinte e quatro) horas, ao Senado Federal, que, em voto aberto e por maioria (inclusive absoluta) dos seus membros, manteve a prisão do ex-Senador.
Ocorre que, em 2021, o STF voltou a decretar prisão cautelar de parlamentar federal. Com efeito, no âmbito do inquérito das “fake news” (ou “inquérito do fim do mundo”), instaurado pela Portaria GP nº 69, de 14 de março de 2019, do Ministro Dias Toffoli, para apurar “notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi, que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares”, foi determinada, em 16/02/21, a prisão em flagrante do Deputado Federal Daniel Silveira em virtude de vídeo por ele publicado, nessa mesma data, no canal do Youtube denominado “Política Play”, em que ele “ataca frontalmente os Ministros do Supremo Tribunal Federal, por meio de diversas ameaças e ofensas à honra, expressamente propaga a adoção de medidas antidemocráticas contra o Supremo Tribunal Federal, defendendo o AI-5; inclusive com a substituição imediata de todos os Ministros, bem como instigando a adoção de medidas violentas contra a vida e segurança dos mesmos, em clara afronta aos princípios democráticos, republicanos e da separação de poderes” (STF, Inq. nº 4.781/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 16.02.21).
Assim como feito quando do estudo do caso Delcídio do Amaral, vale a pena também conhecer os argumentos invocados pela Suprema Corte para o decreto da prisão cautelar no caso Daniel Silveira:
(i) as condutas praticadas pelo Deputado Federal, além de tipificarem crimes contra a honra do Poder Judiciário e dos Ministros do STF, são previstas, expressamente, na Lei nº 7.170/83, especificamente nos artigos 17, 18, 22, incisos I, II e IV, e 26.
(ii) tais condutas configuram flagrante delito, pois se verifica, de maneira clara e evidente, a perpetuação dos delitos acima mencionados, uma vez que o referido vídeo permanece disponível e acessível a todos os usuários da rede mundial de computadores.
(iii) ao postar e permitir a divulgação do referido vídeo, que permaneceria disponível nas redes sociais, encontra-se em infração permanente e consequentemente em flagrante delito, o que permite a consumação de sua prisão em flagrante (art. 303 CPP).
(iv) a prática das referidas condutas criminosas, atentando diretamente contra a ordem constitucional e o Estado Democrático, apresenta todos os requisitos para que, nos termos do art. 312 do CPP, fosse decretada a prisão preventiva, tornando, consequentemente, essa prática delitiva insuscetível de fiança, na exata previsão do art. 324, inciso IV, do Código.
Concluiu-se então pela possibilidade constitucional da prisão em flagrante do parlamentar pela prática de crime inafiançável, nos termos do art. 53, § 2º, da Constituição Federal.
Se houve uma certa dúvida no caso Delcídio do Amaral sobre a natureza da prisão cautelar decretada pelo STF (embora, a nosso ver, ela se trate de prisão preventiva), no caso Daniel Silveira há a certeza de que foi decretada a prisão em flagrante. Tanto assim que, ao final do julgado, consta categoricamente que “servirá essa decisão como mandado que deverá ser cumprido imediatamente e independentemente de horário por tratar-se de prisão em flagrante delito” (destacamos). O que não deixa de ser inusitado, afinal de contas, como é cediço, a prisão em flagrante é justamente a espécie de prisão cautelar que dispensa ordem judicial (art. 5º, LXI, CF; art. 283, caput, CPP).
Há quem entenda que essa ordem judicial, em verdade, constituiria um ato de mera deferência ao cargo público ocupado pelo investigado ou, em outra perspectiva, um ato de urbanidade entre os dois Poderes envolvidos no fato (Judiciário e Legislativo). E há ainda aqueles que invoquem o teor do art. 301 do CPP, segundo o qual “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”, o que conferiria legalidade a essa ordem judicial.
De qualquer forma, em nosso sentir, além de desnecessária e atécnica essa decisão, ela foi proferida em sede de inquérito, por si só, problemático. Ademais, se o ato proferido pelo STF for realmente compreendido como uma decisão, tem-se que ela foi proferida de ofício e por parte de quem é tratado no inquérito com vítima dos delitos, o que constitui franca violação ao sistema acusatório. Nesse passo, convém rememorar que o art. 311 do CPP, com a redação dada pelo “Pacote Anticrime” (Lei nº 13.964/19), não autoriza seja o decreto da prisão preventiva prolatado de ofício pelo juiz.
Data maxima venia, é criticável ainda o entendimento de que o simples fato de que o vídeo continuaria sendo exibido em canal do Youtube caracterizaria o caráter permanente dos delitos praticados, a autorizar a prisão em flagrante “enquanto não cessar a permanência”, tal como autorizado pelo art. 303 do CPP. A seguir esse entendimento, todos os crimes já praticados em vídeos postados na internet continuariam em execução e, por isso, permitiriam a prisão em flagrante enquanto disponíveis no mundo virtual, o que é algo ilógico e desproporcional. Em nosso sentir, os delitos tratados na decisão do STF são instantâneos, sendo alguns deles (os crimes contra a honra) de efeitos permanentes. Assim, os crimes já se consumaram, não havendo permanência delitiva, mas apenas circunstância desfavorável ao agente a ser levada em conta em eventual aplicação da pena.
É também problemático o enquadramento dos delitos como inafiançáveis tão somente porque haveria motivos para a prisão preventiva (art. 324, IV, CPP). Essa inafiançabilidade é meramente circunstancial. Em essência, crimes inafiançáveis são apenas aqueles para os quais o ordenamento jurídico vede, sempre, a concessão da fiança (art. 323 CPP), ou seja, o delito de racismo (art. 5º, XLII, CF), os crimes hediondos e equiparados (art. 5º, XLIII, CF) e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV, CF). Em síntese, não se deve confundir crime inafiançável (art. 323 CPP) com situação concreta em que não se concede a fiança (art. 324 CPP). A mesma crítica é pertinente ao caso Delcídio do Amaral. Logo, nos dois casos, os crimes seriam afiançáveis.
O que não significa que os fatos não sejam extremamente graves, muito antes pelo contrário. Como destacado pelo STF, as declarações do Deputado Federal afrontam a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito, sendo inaceitáveis. Em outro prisma, tais declarações ultrapassam a imunidade material (freedom of speech), isto é, a inviolabilidade assegurada aos Deputados Federais e Senadores, civil e penal, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos (art. 53, caput, CF), considerada causa excludente de tipicidade penal (STF, Inq. nº 2.273/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 15.05.08; STJ, HC nº 443.385/GO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 06.06.19). É que, no entender da Suprema Corte, a imunidade material somente é absoluta quanto às afirmações realizadas dentro do Congresso Nacional; para declarações feitas fora do Parlamento, essa imunidade é relativa, ou seja, apenas válida se as afirmações guardam relação com o exercício do mandato legislativo (STF, RE nº 443953 ED, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 19.06.17; Inq. nº 3672, Rel. Min. Rosa Weber, j. 14.10.14), o que, a nosso ver, não é o caso.
O próprio STF, na decisão em tela, reconheceu que os crimes praticados pelo Deputado não tinham relação com o mandato. O que, por sua vez, desperta uma nova discussão, qual seja, se o tribunal é realmente competente para julgá-lo, haja vista que, conforme entendimento da Suprema Corte exarado na Ação Penal nº 937, o foro por prerrogativa de função somente é válido para crimes cometidos no cargo público e em virtude dele.
Entretanto, para repudiá-los, em nossa opinião, ao invés do uso da prisão cautelar, deveria ser trilhado o caminho da perda do mandato parlamentar por quebra do decoro (art. 55, II, CF), além do posterior início de persecução penal específica para cuidar dos crimes cometidos, a qual poderia ter como desfecho a condenação criminal do agente. Aliás, noticie-se inclusive que o Ministério Público Federal, por meio do Procurador-Geral da República, ofereceu denúncia em desfavor do agente, imputando-lhe a prática dos delitos tipificados no art. 344 do Código Penal (por três vezes) e do art. 23, incisos II (uma vez) e IV (por duas vezes), da Lei nº 7.170/83, este último combinado com o art. 18 da mesma lei. Não se olvida, por óbvio, da medida de retirada do ar do vídeo veiculado pelo Deputado, o que acabou sendo determinado pelo STF na decisão ora em análise.
No mais, o fato foi comunicado à Câmara dos Deputados, que, dentro do prazo de vinte e quatro horas (art. 53, § 2º, CF), deve deliberar sobre a validade da prisão em flagrante. Mesmo se mantida, deve ser realizada a audiência de custódia pelo STF (art. 310, caput, CPP). Essa audiência já foi efetivamente agendada, a ser realizada por meio de videoconferência, presidida por juiz instrutor do gabinete do Ministro Alexandre de Moraes. E se realmente for mantida, cabe à Suprema Corte, por provocação do Procurador-Geral da República, ordenar a conversão do flagrante em preventiva (art. 310, II, CPP) ou conceder a liberdade provisória (art. 310, III, CPP), com ou sem medida cautelar alternativa à prisão.