Os contratos celebrados pela Administração (contratos da Administração) podem ser contratos administrativos ou contratos privados da Administração (contratos semipúblicos). Percebe-se, pois, que o termo “contrato da Administração” constitui um gênero que abrange os ajustes bilaterais pactuados pela Administração Pública e se bifurcam em: contratos administrativos (regidos pelo regime de Direito Público) e contratos privados formalizados pela Administração (com conotação mais paritária entre os contratantes e com maior influência do regime de Direito Privado).
Segundo José dos Santos Carvalho Filho (Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2020, p. 182) os contratos privados da Administração são regulados pelo Direito Civil ou Empresarial. Nessa situação, segundo ele, “quando a Administração firma contratos regulados pelo direito privado, situa-se no mesmo plano jurídico da outra parte, não lhe sendo atribuída, como regra, qualquer vantagem especial que refuja às linhas do sistema contratual comum.” Já os contratos administrativos para Carvalho Filho “têm normas reguladoras diversas das que disciplinam os contratos privados firmados pelo Estado. Sendo contratos típicos da Administração, sofrem a incidência de normas especiais de direito público, só se lhes aplicando supletivamente as normas de direito privado, como está expresso na lei. Em última análise, é o regime jurídico que marca a diferença entre os contratos administrativos e os contratos privados da Administração.”
Existe celeuma na doutrina e na jurisprudência consistente em saber se o Código de Defesa do Consumidor pode ser aplicados aos contratos administrativos. Essa controvérsia existe por uma questão simples: nos contratos administrativos (em sentido estrito) a Administração já possui prerrogativas que lhe confeririam patamar de proteção inerente ou ínsito, com degrau de superioridade em relação ao outro contratante, o que tornaria a aplicação das regras protetivas do CDC desnecessária.
Ao examinar o tema, o STJ já adotou essa posição mais tradicional, digamos. Na ocasião, o Tribunal entendeu que apesar de adotar a teoria finalista mitigada, abrandada ou aprofundada como critério de aplicação da legislação consumerista, orienta-se no sentido de que o ente estatal ocupa posição de supremacia em virtude do interesse público, sendo despido das características de vulnerabilidade técnica, científica, fática ou econômica perante o fornecedor que poderiam enquadrá-lo como consumidor. Logo, não se aplicaria o CDC ao contrato administrativo – ver REsp 1.661.184/DF, julgado em 10 de maio de 2017.
Para essa linha, o Poder Público não estaria sujeito ao Código de Defesa do Consumidor, uma vez que a lei já assegura às entidades da Administração Pública inúmeras prerrogativas nas relações contratais com seus fornecedores, não havendo necessidade de aplicação da legislação consumerista.
Assim, por exemplo, não se aplica o CDC “ao contrato de fiança bancária acessório ao contrato administrativo”, pois a fiança bancária, quando contratada no âmbito de um contrato administrativo, também sofre incidência do regime publicístico, uma vez que a contratação dessa garantia não decorre da liberdade de contratar, mas da posição de supremacia que a lei confere à Administração Pública nos contratos administrativos – nesse sentido: REsp 1745415/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 14/05/2019, DJe 21/05/2019.
O Código de Defesa do Consumidor não se aplicaria, pois o contrato administrativo já conteria prerrogativas asseguradas à Administração Pública que tornariam a outra lei – no caso, o CDC, legislação com forte carga protetiva ao vulnerável – esvaziada ou dispensável.
Numa posição mitigada ou conciliatória, com a qual concordo, num diálogo entre o CDC com o regramento da Lei n. 8.666/1993, o Tribunal já teve a oportunidade de aplicar o Código de Defesa do Consumidor aos contratos administrativos de modo excepcional. A incidência ocorreria a depender do modo de contratação do poder público e da posição/relação do ente na contratação, comparada ao outro contratante: se demonstrada algum tipo de vulnerabilidade.
O tema foi debatido com mais acuidade no célebre RMS 31.073/TO, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 26/08/2010, DJe 08/09/2010, ocasião em que o Tribunal considerou que “em se tratando de contrato administrativo, em que a Administração é quem detém posição de supremacia justificada pelo interesse público, não incidem as normas contidas no CDC, especialmente quando se trata da aplicação de penalidades. Somente se admite a incidência do CDC nos contratos administrativos em situações excepcionais, em que a Administração assume posição de vulnerabilidade técnica, científica, fática ou econômica perante o fornecedor, o que não ocorre na espécie, por se tratar de simples contrato de prestação de serviço de publicidade.”
Jatir Batista da Cunha (Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos administrativos. Revista do TCU. Brasília, v. 32, n. 87, jan/mar 2001, p. 30-34) possui compreensão semelhante. Segundo ele, “é razoável a interpretação de que são aplicáveis as disposições do Código de Defesa do Consumidor aos contratos administrativos, em caráter subsidiário, desde que atendidas as seguintes condições: a) o órgão ou entidade pública estiver em posição de vulnerabilidade técnica, científica, fática ou econômica perante o fornecedor, visto que a superioridade jurídica do ente público é presumida nos contratos administrativos; b) o órgão ou entidade pública estiver adquirindo o produto ou serviço na condição de destinatário final, ou seja, para o atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma atividade negocial.”
Compreendo que a aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos administrativos é quase sempre desnecessária, pois a lei traz prerrogativas em favor da Administração nesse tipo de avença que tornam a aplicação da legislação consumerista, em geral, esvaziada ou desnecessária. Todavia, a incidência do CDC aos contratos administrativos pode ocorrer de modo excepcional, se restar demonstrado que o Poder Público está numa posição de vulnerabilidade perante o outro contratante.
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