Esse (ainda) é um tema polêmico na doutrina e na jurisprudência. Os termos “culpa” ou culpado” são trazidos 74 vezes no Código Civil, 7 (sete) delas no Livro do Direito das Famílias. O termo “culpa” é utilizado, por exemplo, nos arts. 1564 e 1578 com repercussões no casamento e nos arts. 1694, § 2º e 1704, com implicações nos alimentos.
Ao inserir o assunto no cenário das famílias resta claro que o CC/2002 capturou essa verve do Código Civil de 1916 quanto ao tema. Para o Código Beviláqua, todo aparente motivo de esfacelamento da unidade familiar e que “pudesse representar uma ameaça ao casamento suscitava a hostilidade do legislador”.
Porém, para grande parte da doutrina, a Emenda Constitucional n. 66/2010 pôs fim à separação e, consequentemente, como que à reboque, a discussão de culpa na separação foi excluída.
Para muitos doutrinadores não existe mais persiste “o inútil instituto da separação judicial no Brasil” (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Separação judicial: uma boa desculpa para ressuscitar a discussão da culpa. Conjur: 26/03/2017).
Em célebre artigo publicado ainda na vigência do Código de 1916, Gustavo Tepedino (O Papel da Culpa na Separação e no divórcio. Revista da EMERJ, vol. 01, n. 02, 1998, p. 32-50) já advertia:
“As experiências legislativas nacional e estrangeiras, acima referidas, indicam, por um lado, a tendência a se atenuar o papel da culpa da separação judicial; por outro lado, a permanência de sua presença nos efeitos da ruptura matrimonial, atraindo sanções de várias espécies, estimuladas, do ponto de vista hermenêutico, por uma vetusta tradição cultural que ainda se pode considerar dominante no direito brasileiro.
Entretanto, parece indispensável que o intérprete consiga distinguir a justificativa axiológica do Código Civil brasileiro, que atribuía à separação culposa posição predominante, daquela emanada pela Constituição da República de 1988, que alterou o conceito de unidade familiar e determina profunda revisão dos critérios interpretativos em matéria de direito de família.”
De fato, “a aferição da culpa perdeu sentido no ordenamento constitucional”, defende Tepedino. Realmente, com a CF/88 – a sombra ditatorial se fechou e outros valores iluminados ingressaram no país – entre eles “a proteção da família como meio para a realização da personalidade de seus membros, estremando a entidade familiar da entidade matrimonial, esta apenas uma espécie privilegiada daquela” (Tepedino, p. 46).
Nessa linha, Rolf Madaleno (Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 287) ensina que o sistema processual da prova da culpa abre espaço apenas para dar vazão a velhos e intermináveis rancores, e para reativar conflitos determinantes da precedente quebra da união, não se mostrando salutar que o Poder Judiciário sirva de palco para satisfazer resistências subjetivas à separação, com pessoas ávidas por curarem sua feridas conjugais com sentenças condenatórias censurando a conduta do cônjuge havido por culpado.
Realmente, apesar de ainda existentes, as disposições do Código Civil quanto à culpa não casam – perdoem-me o trocadilho – com o cenário atual. Apesar das dores, dos dissabores e das ranhuras advindas de muitas das separações, não cabe à letra da lei se imiscuir na intimidade das relações afetivas para sancionar alguém como culpado pelo fim da relação. Nos aposentos e na intimidade das relações, somente os envolvidos são, de fato, donos dos sentimentos e conhecedores das minúcias e de suas razões (ou emoções). Quando a relação fenece é vazio e lamurioso tentar reacender a brasa, que já foi chama, do espólio do que um dia fora amor.
Deve-se considerar como causa da separação, critérios que não lancem a espada da culpa sobre alguém, já que ambos, em alguma medida contribuíram para o fim; deve-se buscar critérios como a insuportabilidade da vida em comum, o desgaste, o desamor ou, para poetizar, o fim do encantamento recíproca. Mas não é dado ao Estado penalizar alguém – no âmbito de uma relação afetiva ou amorosa – como culpado. Deixemos o suplício para outros campos do Direito.
De fato, é despiciendo tentar achar um único responsável pelo fim do laço afetivo, pois os dramas familiares são fruto inexorável da contribuição parcial e conjunta de ambos os cônjuges – FARIAS, Cristiano Chaves de. A separação judicial à luz do garantismo constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 119.
Na parte 02 abordaremos como o STJ lida com o tema.
Abraços!
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