SUMÁRIO: Capitalismo e trabalho – Direitos sociais e forma jurídica – Forma jurídica e luta de classes
A hecatombe dos direitos sociais no Brasil atual obriga a um fortalecimento da reflexão acerca da relação estrutural entre trabalho e direito. A dinâmica do recrudescimento neoliberal envolve não apenas o espaço jurídico e estatal, mas, fundamentalmente, a própria exploração econômica e as formas sociais pelas quais se assenta – mercadoria, valor, acumulação. A história do direito do trabalho é a história do capitalismo, e a expansão e a diminuição dos direitos sociais são derivadas tanto da reprodução econômica quanto das lutas de classes que atravessam a sociabilidade contraditória e crítica do capital.
O mundo jurídico tende a contar a história do direito do trabalho – e também dos ramos assim chamados por direitos sociais – a partir de uma evolução interna da consciência e do labor dos próprios juristas e dos legisladores. Por tal métrica, a regulação jurídica ao trabalhador passa a ser entendida apenas como produto do direito, esquecendo-se das situações e lutas econômicas, políticas ou sociais que lhe dão base. Lidando-se então somente com esse campo interno dos juristas, um par de opostos se estabelece, num contraste moral linear: de um lado, o trabalho degradante ou em condições extremas de desumanidade; de outro lado, o trabalho protegido juridicamente, decente ou digno.
Nessa polaridade, do lado do direito laboral parece estar sempre a melhor posição ética do jurista, dada sua comparação em relação aos horrores que lhe foram prévios ou aos que ainda lhe são, atualmente, opositores. Os direitos sociais e o direito do trabalho (seu máxime exemplo) são havidos como conquistas civilizatórias. No que tange aos seus contendores, em específico, podem ser vistos, historicamente, dois grandes campos de atraso e horror: de um lado, os pleitos pela manutenção das explorações do passado; doutro lado, as persistências e ativismos antissociais do presente. Um deles é o mundo dos arranjos sociais pré-contratuais, para os quais o direito não deve ser afirmado ou então se torna mitigado em favor da submissão, da vassalagem ou da própria escravidão. O outro deles é o do próprio direito, mas sob sua estrutura meramente liberal, que dissolve as relações contratuais de trabalho dentro do próprio campo das relações contratuais gerais, de direito privado.
Assim, as duas contendas do atraso contra os direitos sociais remanescem de fontes distintas. A primeira delas se anuncia como a manutenção de formas sociais pré-capitalistas. A segunda delas, como um arranjo já capitalista, mas desprovido de maior “humanidade” ou “dignidade”. No primeiro caso, trata-se da exploração do trabalho mediante formas não contratuais, que retiram do sujeito sua condição jurídica, constituindo então relações que podem ser consideradas plenamente pré-capitalistas. No segundo caso, em específico, não se trata de ver uma oposição do não-direito ao direito, mas, sim, de uma oposição entre um direito liberal-privatístico e um direito de cunho social, ambos situadas já dentro de liames capitalistas.
Os direitos sociais poderiam ser vistos como conquistas sociais relevantes em face de ambos os oponentes. De um lado, os méritos do direito em face do não direito seriam uma decorrência do fato de que o capitalismo se afirma superior, em termos de liberdade e autonomia, em relação ao feudalismo e ao escravismo. De outro lado, verificar-se-ia nos direitos sociais uma “boa consciência”, enquanto, nesse mesmo diapasão, o capitalismo liberal pode ser visto como horror ético, ainda que se venda como sinônimo de eficiência econômica ou a “verdadeira essência” ou natureza do capital ou dos homens.
Contando-se uma história a partir de uma ficção linear, que teria por referência uma cronologia cadenciada entre o passado e o presente, veem-se, então, três etapas no que tange à relação entre trabalho e direito: o trabalho sem direito; o trabalho com o direito apenas liberal; o trabalho com direitos sociais. Olhando-se num retrovisor ideal da história, os direitos sociais seriam o ápice da humanidade dos próprios homens.
Ocorre, no entanto, que a história dos tempos capitalistas nem é linear, no sentido de que seus patamares garantissem uma marcha de avanços incontestes e proteções contra o retrocesso, nem é boa nos próprios termos postos pelos direitos sociais. Para vislumbrar os limites do direito do trabalho e dos direitos sociais, é preciso escapar de sua própria contagem da história e de suas autorreferências. As causas, os meios e os limites dos direitos sociais são, diretamente, aqueles do próprio capitalismo.
CAPITALISMO E TRABALHO
A avaliação dos direitos sociais não deve se esgotar apenas em sua comparação em face do não-direito ou de um direito liberal desprovido de “humanismo” e “dignidade”. Os direitos sociais devem ser compreendidos pela sua relação direta com o capitalismo. É aí que residem seus vínculos necessários. A sorte do trabalho, sob o capitalismo, é a mesma sorte do direito do trabalho. se a natureza do trabalho assalariado é a exploração, esta é então, inexoravelmente, a mesma natureza do direito e dos direitos sociais.
O trabalho, mediante relações capitalistas, estrutura-se por formas de sociabilidade distintas daquelas anteriores, feudais ou escravistas. A produção, no capitalismo, não tem por finalidade a importância em si do que se está produzindo, mas está orientada, sim, para a extração do mais-valor. É apenas por meio da exploração do trabalho, haurindo mais-valor, que o capital se majora de modo pleno. No mundo das mercadorias, a organização do trabalho mediante salariado é a engrenagem maior de um processo constante de valorização do valor. Mas, peculiarmente, essa relação de exploração e hierarquia se faz com base em uma igualdade. O liame entre o detentor dos meios de produção e o trabalhador se estabelece mediante contrato: segundo o artifício de tornar a ambos sujeitos de direito, então a relação de trabalho passa a ser constituída juridicamente. As subjetividades são igualadas, pelo direito, para fins de contrato, jungindo-se por meio da liberdade negocial, haurida dos termos da autonomia da vontade.
Claro está que a história das relações do trabalho, sob o capitalismo, articula esse núcleo num cenário de expropriação e domínio já consolidado: a apropriação do capital pelas mãos de poucos, a separação violenta dos trabalhadores de seus meios de produção, a existência de aparelhos políticos que garantam a propriedade privada e o cumprimento dos contratos, além de um suporte ideológico que tende a naturalizar tais relações. O papel do direito, nesse quadro, é crucial. sem a subjetividade jurídica, tornar-se-ia impossível o estabelecimento de vínculos sob forma contratual, o que exponenciaria, então, o papel da força bruta e violenta.
Tal subjetividade jurídica é parelha da própria organização de um mundo perpassado pela mercadoria. As relações tomam forma jurídica porque toda sociedade toma forma mercantil. Pessoas e coisas são intermediadas por relações contratuais. O fruto do trabalho não é dado ao trabalhador, mas sim um salário. O trabalhador, de tal modo, ao não possuir nem controlar os meios de produção, é assalariado, sendo seu pagamento dado segundo valores mercantis, isto é, num acordo de vontades, por meio de contrato. O trabalho vale no mercado, e não por qualquer princípio de dignidade intrínseca do trabalhador. Nesses termos estruturais, no seio de uma miríade infinita da mercadoria na qual sempre alguém vende algo a alguém, o trabalhador vende seu trabalho ao capital.
Antes de ser a salvaguarda do trabalhador, o direito é o constituinte da exploração mediante trabalho assalariado. No capitalismo, é com base no direito que as compras-e-vendas se estabelecem, inclusive a do trabalho. O direito garante a propriedade ao capitalista, reprime a luta dos trabalhadores para que controlem o capital ou o tomem diretamente para si e, além disso, lastreado na subjetividade jurídica, que é seu núcleo, dá o meio pelo qual a submissão do trabalhador ao burguês passa a ser voluntária.
DIREITOS SOCIAIS E FORMA JURÍDICA
No bojo das relações capitalistas, o direito tem papel necessário. sem ele, é impossível a constituição dessa própria rede de extração de mais-valor que é feita pela exploração do trabalho assalariado. Assim, de início, já se desmonta o pretenso papel “humanista” ou salvador de qualquer ramo do direito. Não é para frear a exploração do trabalho, mas para constituí-la, que o direito existe.
No entanto, há questões estruturais e questões incidentais – termos gerais e termos médios – no que tange aos liames entre o direito e o trabalho assalariado. só com o direito há exploração do trabalho sobre base assalariada, mas as balizas e os parâmetros de tal exploração são variáveis.
A forma jurídica, assentada na juridificação da subjetividade, é elemento estrutural para a constituição e a reprodução do capitalismo. sem que todos sejam considerados sujeitos de direito, não há a possibilidade da exploração do trabalho se dar em nível de igualdade entre os agentes.
A autonomia da vontade deve ser o guia de tal vínculo entre capital e trabalho. Esse núcleo da forma jurídica é necessário às formas econômicas capitalistas. Ele praticamente nunca se abala, mesmo nas mais variadas dinâmicas e lutas internas das sociedades burguesas.
Ocorre que os parâmetros dos vínculos contratuais do trabalho são variáveis. Desde uma total presunção de plenitude da autonomia da vontade liberal – que obriga o trabalhador a termos totalmente dados pelo capital – até chegar aos modelos juslaborais talhados a partir do século XX – com séries de limitações e garantias –, o vínculo entre trabalhador assalariado e capitalista pode ser dado a partir de múltiplas balizas, mas todas elas sendo conteúdos da mesma forma jurídica. Os chamados direitos sociais são o índice de tal variabilidade no arranjo contratual de exploração do trabalho sob condições capitalistas.
O capitalismo não tem, na afirmação ou no aumento dos direitos sociais, uma negação de seus princípios. Tal qual o instituto da capacidade civil no direito privado não se opõe ao princípio geral da autonomia da vontade, tampouco os parâmetros para o contrato de trabalho negam a vinculação entre trabalho assalariado e capital por meio da subjetividade jurídica. Tanto a capacidade civil – com as balizas da maioridade, por exemplo – quanto o direito do trabalho – com o salário mínimo, por exemplo – são apenas limitações à plenitude dos vínculos voluntários, mas nunca suas negações.
Nenhuma extensão nem nenhuma quantidade de direito do trabalho ou de direitos sociais são opostas estruturalmente ao capitalismo, porque, no máximo ou no mínimo de sua quantidade, havendo direito, o núcleo da forma jurídica é reflexo das relações sociais capitalistas. Os direitos de extrato liberal são uma das possibilidades da forma jurídica; os direitos sociais, outra das suas variantes. Ambas, no entanto, não são mais ou menos capitalistas: são margens de um mesmo modo de produção.
Os direitos sociais, ao invés de serem considerados monumentos da “dignidade” ou da “humanidade” propiciadas pelo campo jurídico, devem ser pensados como margens possíveis da dinâmica do capitalismo. Pelo ângulo das formas sociais, a forma jurídica, ainda que balizando proteções ao trabalhador assalariado, é reflexo da forma mercantil e, portanto, mais do que pacificadora ou regeneradora, é na verdade a constituinte da possibilidade da própria exploração do trabalho como mercadoria.
FORMA JURÍDICA E LUTA DE CLASSES
se o capitalismo se assenta em formas sociais necessárias, como a forma-mercadoria e a forma jurídica, isso não se faz por uma espécie de inteligência lógica geral. É no seio de dinâmicas sociais complexas e contraditórias que tais formas se erigem. As relações sociais capitalistas, por serem exploratórias e concorrenciais, não são pacíficas nem se estabilizam em parâmetros fixos e constantes. As classes e frações de classes concorrem e lutam. Assim sendo, os interesses meramente econômicos do capital são vários e se veem atravessados por demais interesses, rupturas e contraposições.
O capitalismo está permeado por injunções econômicas, como é o caso de sua tendência constante à incorporação da tecnologia na produção, o que leva, de outro lado, à queda tendencial da taxa de lucro. Essa dinâmica está ligada às forças produtivas. Mas o capitalismo não se explica apenas por uma espécie de trajetória tecnológico-econômica da produção. É justamente a luta de classes que esclarece as múltiplas dinâmicas no interior do processo de exploração do trabalho por meio assalariado. As massas exploradas exercem papel crucial de resistência, negação, composição, cooptação, submissão.
O direito do trabalho e os direitos sociais são menos dádivas dos juristas que, propriamente, resultantes das lutas de classes, ainda que essas lutas dos trabalhadores, ao final, acabem sendo incorporadas em estratégias políticas do Estado e das classes burguesas. A consolidação dos direitos do trabalhador no Brasil, ao tempo de Getúlio Vargas, não é a história da vitória dos interesses dos trabalhadores, mas, sim, um resultante complexo e matizado, empreendido pelo Estado, a partir de pressões e lutas tanto das classes trabalhadoras e, em sentido oposto e reacionário, das classes burguesas brasileiras.
A luta de classes, nas sociedades capitalistas, é feita a partir de formas sociais já estabelecidas. A forma política estatal captura a esfera da contradição social e econômica em suas instituições e procedimentos. A própria legalização sindical submete a organização dos trabalhadores à forma política estatal. Por sua vez, a forma jurídica limita os conflitos abertos, tornando-os judiciários. Além disso, no capitalismo operam grandes mecanismos ideológicos, que constituem os valores e as compreensões de mundo dos trabalhadores a partir de paradigmas como luta e sorte individual, honestidade, cumprimento dos contratos, ordem, superioridade dos ricos etc. A ideologia do capital perpassa tanto o capitalista quanto o trabalhador.
No quadro das dinâmicas de concorrência, oposição, contrariedade e luta dentro do capitalismo, os trabalhadores, constituídos por meio de tais formas sociais e horizontes ideológicos, quase sempre agem, submetem-se e mesmo se insurgem dentro do contexto geral que lhes aprisiona. O direito do trabalho e os direitos sociais, então, não são os instrumentos de luta para a superação do capitalismo mas, sim, os meios de aprisionamento das lutas no contexto dessa mesma sociabilidade.
A passagem para uma organização do trabalho de modo não-explorado, socialista portanto, não se dá com um processo contínuo e infinito de majoração do direito do trabalho e dos direitos sociais. Ao contrário disso, é a ruptura com todas as formas da sociabilidade capitalista que permite tal ultrapassagem. Os direitos sociais podem até mesmo atenuar os horrores da exploração do trabalho, mas mantêm sua maquinaria. Tal qual a reforma agrária é uma forma de manutenção da propriedade privada, ainda que mais bem distribuída, também os direitos sociais são a manutenção da exploração do trabalho assalariado pelo capital, ainda que mais balizada.
Nos tempos de entrada do século XXI, os horizontes ideológicos da dinâmica mundial do capitalismo e da luta de classes estão voltados cada vez mais à individualização, ao refastelamento no consumo e à imediatitude dos interesses, em geral de pequena monta. Na reprodução social brasileira atual, de crise econômica, política e jurídica e sob golpe, a resolução da acumulação pelo desmonte do direito do trabalho e dos direitos sociais – reforma da trabalhista e reforma da previdência – é seu objetivo prioritário. Daí, o recrudescimento do domínio do capital contra a classe trabalhadora tem feito da resistência em favor dos direitos atualmente consolidados um índice da luta aguerrida dos nossos tempos. Pela defesa dos direitos sociais, contra os retrocessos, tem passado um pedaço do andar ereto da luta da classe trabalhadora brasileira e mundial. No entanto, a superação da exploração capitalista exige uma mirada longa, cuja luta é maior, porque seu combate é estrutural. Assim, no presente, a exploração que destrói direitos é desgraçada; a resistência no direito é reconfortante, mas apenas como prumo de assentamento de luta; a plena esperança dói.
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