Identificado pela primeira vez em Wuhan, na província de Hubei (China), em 1º de dezembro de 2019, o COVID-19 (novo coronavírus) tem sido responsável por diversos casos de síndrome respiratória, levando muitos pacientes à morte.
O vírus se alastrou pelo mundo – atingindo também o Brasil – e, em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde classificou o surto como uma pandemia.
No Brasil, foi editada a Lei 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, dispondo sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.
Nos termos do artigo 3º, caput, da Lei, para enfrentamento da emergência poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas:
I – isolamento (separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus – art. 2º, I);
II – quarentena (restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus – art. 2º, II);
III – determinação de realização compulsória de:
a) exames médicos;
b) testes laboratoriais;
c) coleta de amostras clínicas;
d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou
e) tratamentos médicos específicos;
IV – estudo ou investigação epidemiológica;
V – exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;
VI – restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias, portos ou aeroportos;
VII – requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e
VIII – autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que:
a) registrados por autoridade sanitária estrangeira; e
b) previstos em ato do Ministério da Saúde.
O art. 3º, § 4º, da Lei estabelece que “as pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas previstas neste artigo, e o descumprimento delas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei”.
A Lei 13.979/2020 foi regulamentada pela Portaria 356, de 11 de março de 2020, do Ministério da Saúde. O artigo 3º da Portaria diz respeito à medida de isolamento:
Art. 3º A medida de isolamento objetiva a separação de pessoas sintomáticas ou assintomáticas, em investigação clínica e laboratorial, de maneira a evitar a propagação da infecção e transmissão local.
§ 1º A medida de isolamento somente poderá ser determinada por prescrição médica ou por recomendação do agente de vigilância epidemiológica, por um prazo máximo de 14 dias, podendo se estender por até igual período, conforme resultado laboratorial que comprove o risco de transmissão.
§ 2º A medida de isolamento prescrita por ato médico deverá ser efetuada, preferencialmente, em domicílio, podendo ser feito em hospitais públicos ou privados, conforme recomendação médica, a depender do estado clínico do paciente.
§ 3º Não será indicada medida de isolamento quando o diagnóstico laboratorial for negativo para o SARSCOV-2.
§ 4º A determinação da medida de isolamento por prescrição médica deverá ser acompanhada do termo de consentimento livre e esclarecido do paciente, conforme modelo estabelecido no Anexo I.
§ 5º A medida de isolamento por recomendação do agente de vigilância epidemiológica ocorrerá no curso da investigação epidemiológica e abrangerá somente os casos de contactantes próximos a pessoas sintomáticas ou portadoras assintomáticas, e deverá ocorrer em domícilio.
§ 6º Nas unidades da federação em que não houver agente de vigilância epidemiológica, a medida de que trata o § 5º será adotada pelo Secretário de Saúde da respectiva unidade.
§ 7º A medida de isolamento por recomendação será feita por meio de notificação expressa à pessoa contactante, devidamente fundamentada, observado o modelo previsto no Anexo II.
Já o artigo 4º refere-se à medida de quarentena:
Art. 4º A medida de quarentena tem como objetivo garantir a manutenção dos serviços de saúde em local certo e determinado.
§ 1º A medida de quarentena será determinada mediante ato administrativo formal e devidamente motivado e deverá ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou Ministro de Estado da Saúde ou superiores em cada nível de gestão, publicada no Diário Oficial e amplamente divulgada pelos meios de comunicação.
§ 2º A medida de quarentena será adotada pelo prazo de até 40 (quarenta) dias, podendo se estender pelo tempo necessário para reduzir a transmissão comunitária e garantir a manutenção dos serviços de saúde no território.
§ 3º A extensão do prazo da quarentena de que trata o § 2º dependerá de prévia avaliação do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE-nCoV) previsto na Portaria nº 188/GM/MS, de 3 de fevereiro de 2020.
§ 4º A medida de quarentena não poderá ser determinada ou mantida após o encerramento da Declaração de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional.
De acordo com o artigo 5º da Portaria, o descumprimento das medidas de isolamento e quarentena acarretará a responsabilização, nos termos previstos em lei (caput). Caberá médico ou agente de vigilância epidemiológica informar à autoridade policial e Ministério Público sobre o descumprimento de que trata o caput (p. único).
Já o artigo 6º preceitua que as medidas de realização compulsória no inciso III do art. 3º da Lei n° 13.979, de 2020, serão indicadas mediante ato médico ou por profissional de saúde (caput). Porém, não depende de indicação médica ou de profissional de saúde as medidas previstas nas alíneas “c” e “d” do inciso III do art. 3º da Lei n° 13.979/2020 (p. único).
Como será responsabilizado quem descumpre tais medidas?
Na esfera administrativa, o agente pode incorrer no art. 10, VII, da Lei nº 6.437/77 (disciplina infrações à legislação sanitária federal e estabelece as sanções respectivas):
Art . 10 – São infrações sanitárias:
(…)
VII – impedir ou dificultar a aplicação de medidas sanitárias relativas às doenças transmissíveis e ao sacrifício de animais domésticos considerados perigosos pelas autoridades sanitárias:
Pena – advertência, e/ou multa;
Em âmbito penal, convém examinar a Portaria Interministerial n. 5, de 17 de março de 2020, do Ministério da Justiça e Segurança Pública e da Saúde, que dispõe sobre a compulsoriedade das medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus, bem como sobre a responsabilidade pelo seu descumprimento, nos moldes do § 4º do art. 3º da Lei nº 13.979/ 2020.
Os artigos 4º e 5º desta Portaria assim estabelecem:
Art. 4º O descumprimento das medidas previstas no inciso I e nas alíneas “a”, “b” e “e” do inciso III do caput do art. 3º da Lei nº 13.979, de 2020, poderá sujeitar os infratores às sanções penais previstas nos art. 268 e art. 330 do Código Penal, se o fato não constituir crime mais grave.
§ 1º Nas hipóteses de isolamento, para configuração do descumprimento de que trata o caput, há necessidade de comunicação prévia à pessoa afetada sobre a compulsoriedade da medida, nos termos do § 7º do art. 3º da Portaria nº 356/GM/MS, de 11 de março de 2020.
§ 2º Para as hipóteses previstas nas alíneas “a”, “b” e “e” do inciso III do caput do art. 3º da Lei nº 13.979, de 2020, a compulsoriedade das medidas depende, nos termos do art. 6º da Portaria nº 356/GM/MS, de 2020, de indicação médica ou de profissional de saúde.
Art. 5º O descumprimento da medida de quarentena, prevista no inciso II do caput do art. 3º da Lei nº 13.979, de 2020, poderá sujeitar os infratores às sanções penais previstas nos arts. 268 e 330 do Código Penal, se o fato não constituir crime mais grave.
Parágrafo único. A compulsoriedade da medida de quarentena depende de ato específico das autoridades competentes, nos termos do § 1º do art. 4º da Portaria nº 356/GM/MS, de 2020.
Já o artigo 6º prevê que “os gestores locais do Sistema Único de Saúde – SUS, os profissionais de saúde, os dirigentes da administração hospitalar e os agentes de vigilância epidemiológica poderão solicitar o auxílio de força policial nos casos de recusa ou desobediência por parte de pessoa submetida às medidas previstas nos art. 4º e art. 5º”.
Segundo o art. 8º, “visando a evitar a propagação do COVID-19 e no exercício do poder de polícia administrativa, a autoridade policial poderá encaminhar o agente à sua residência ou estabelecimento hospitalar para cumprimento das medidas estabelecidas no art. 3º da Lei nº 13.979, de 2020, conforme determinação das autoridades sanitárias”.
Finalmente, o art. 9º estabelece: “Na hipótese de configuração de crime mais grave ou concurso de crimes e quando, excepcionalmente, houver imposição de prisão ao agente infrator, recomenda-se que as autoridades policial e judicial tomem providências para que ele seja mantido em estabelecimento ou cela separada dos demais presos”.
Em suma, a Portaria afirma que o descumprimento de determinadas medidas previstas na Lei 13.979/2020 pode ensejar a responsabilização pelos crimes de infração de medida sanitária preventiva (art. 268Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena - detenção, de um mês a um ano, e multa. Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço, se o agente é funcionário da saúde pública ou exerce a profissão de médico, farmacêutico, dentista ou enfermeiro.) e desobediência (art. 330Art. 330 - Desobedecer a ordem legal de funcionário público: Pena - detenção, de quinze dias a seis meses, e multa.).
Na prática, parece-nos difícil, senão impossível, o reconhecimento do crime de desobediência (art. 330), pois a infração de determinações do poder público, destinadas a impedir introdução ou propagação do COVID-19, ensejará inevitavelmente o reconhecimento do crime de infração de medida sanitária preventiva (art. 268), que é mais grave e prevalece sobre o delito do artigo 330.
Portaria pode criar crimes?
Não. Em razão do princípio da legalidade, somente lei em sentido estrito (emanada do Congresso Nacional) pode criar crimes e estabelecer penas. Contudo, a Portaria Interministerial não cria novas figuras típicas, mas apenas indica em quais tipos penais incorre o agente que descumpre as medidas adotadas para enfrentamento do COVID-19. Em suma, as menções a condutas criminosas indicadas na Portaria são legítimas, pois meras consolidações de tipos penais previamente tipificados por lei.
Por outro lado, portarias podem funcionar como complemento de leis penais em branco. Por exemplo: a Portaria 356/2020 do Ministério da Saúde regulamenta as medidas sanitárias de isolamento e quarentena previstas na Lei 13.979/2020, podendo servir como complemento do tipo previsto no artigo 268.
Embora a Portaria mencione os crimes de infração de medida sanitária preventiva e desobediência, não ficam excluídos outros crimes. Para ilustrar, se o agente, atacando simultaneamente número indeterminado de indivíduos em certa localidade, causa efetiva epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos, o delito a ser reconhecido passa a ser o de epidemia (art. 267Art. 267 - Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos: Pena - reclusão, de dez a quinze anos. § 1º Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro. § 2º No caso de culpa, a pena é de detenção, de um a dois anos, ou, se resulta morte, de dois a quatro anos.). Aquele que, contaminado da moléstia grave e contagiosa, pratica qualquer ato capaz de transmiti-la a outrem (pessoa certa e determinada), comete o delito de perigo de contágio (art. 131 do CPArt. 131 - Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir o contágio: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.).
O artigo 131 do CP abrange o coronavírus?
O legislador não etiquetou quais moléstias graves integram o tipo penal. A compreensão dessa norma depende de complementação, advinda de lei ou outro ato normativo (norma penal em branco). E, conforme visto, há lei e portarias classificando o coronavírus como doença grave, ensejadora de situação de emergência em saúde pública.
Há corrente no sentido de que o trecho moléstia grave é um elemento normativo do tipo, cuja compreensão requer uma atividade médica valorativa, pericialmente averiguada, podendo ser classificada como tal a moléstia que não conste em ato normativo. Nesse sentido, leciona PierangeliManual de direito penal brasileiro: parte especial, p. 154.:
“O texto não especifica quais são as moléstias que considera graves, mas entre elas, evidentemente, se incluem as já nomeadas. Indispensável é que sejam contagiosas ou transmissíveis, pelo que devemos recorrer ao regulamento do Ministério da Saúde que classifica as doenças graves e contagiosas, mas a ausência de uma moléstia desse rol não a exclui da consideração sobre ser grave e infecciosa. Com este posicionamento afastamos o critério da norma penal em branco sustentado por parte da doutrina”.
Logo, mesmo para essa segunda posição, o coronavírus, por ser doença grave e contagiosa, admite a incidência do tipo previsto no artigo 131.
Para se aprofundar, recomendamos:
Livro: Manual de Direito Penal (parte especial)
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