Em decisão monocrática proferida no dia 16 de julho de 2019, o ministro Dias Toffoli impôs a suspensão de investigações criminais e processos judiciais nos quais houvesse determinados dados fiscais e bancários compartilhados sem autorização judicial entre órgãos de fiscalização tributária e de investigação criminal.
A decisão foi proferida no Recurso Extraordinário 1.055.941, interposto pelo Ministério Público Federal contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que havia anulado ação penal na qual dados bancários obtidos pela Receita Federal haviam sido compartilhados com o Ministério Público para fins penais. Segundo o acórdão recorrido, compartilhamentos de informações bancárias para instruir investigações criminais só podem ser promovidos mediante autorização judicial, que não havia sido emitida naquele caso.
O Ministério Público Federal argumentou que a quebra de sigilo bancário sem autorização judicial já foi considerada válida pelo STF, que, no recurso extraordinário 601.314, julgou constitucional a Lei Complementar 105/01, especialmente o disposto em seu art. 6º:
“As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.”
Argumentava-se também que, ao julgar conjuntamente as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859, o STF confirmou a constitucionalidade do compartilhamento de dados bancários.
O Recurso Extraordinário 1.055.941 já havia tido a repercussão geral reconhecida pelo STF em 12/04/2018 e seu julgamento estava previsto para o mês de novembro passado. À época, o ministro Dias Toffoli afirmou que embora o STF tivesse proferido decisões admitindo o compartilhamento de dados para fins penais, os julgamentos fundamentais sobre o art. 6º da Lei Complementar 105/01 apenas tangenciaram a questão da possibilidade de que informações obtidas pelo Fisco fossem compartilhadas com órgãos de investigação criminal. Por isso se justificava o reconhecimento da repercussão geral, para que o tribunal pudesse decidir sobre o tema de forma específica e com efeitos abrangentes.
Em 16 de julho, o ministro determinou: 1) “a suspensão do processamento de todos os processos judiciais em andamento, que tramitem no território nacional e versem sobre o Tema 990 da Gestão por Temas da Repercussão Geral”; 2) “com base no poder geral de cautela, a suspensão do processamento de todos os inquéritos e procedimentos de investigação criminal (PIC’s), atinentes aos Ministérios Públicos Federal e estaduais, em trâmite no território nacional, que foram instaurados à míngua de supervisão do Poder Judiciário e de sua prévia autorização sobre os dados compartilhados pelos órgãos de fiscalização e controle (Fisco, COAF e BACEN), que vão além da identificação dos titulares das operações bancárias e dos montantes globais, consoante decidido pela Corte (v.g. ADI’s nsº 2.386, 2.390, 2.397 e 2.859, Plenário, todas de minha relatoria, julg. 24/2/16, DJe 21/10/16)”.
A decisão se fundamentou no fato de que no julgamento daquelas ações constitucionais o STF foi expresso ao admitir, para a finalidade de fiscalização e controle tributário, apenas e tão somente o compartilhamento de dados relativos à identificação dos titulares das operações e aos montantes globais movimentados, ou seja, não se contemplou a troca de informações com detalhes acerca da origem e da natureza das movimentações. E, naquele momento, havia dúvidas a respeito do nível de detalhamento do que estava sendo compartilhado entre os órgãos de fiscalização tributária e o Ministério Público e as polícias.
A medida provocou intensa reação devido à extensão de seus efeitos, que, na prática, paralisaram investigações sobre infrações penais relativas a organizações criminosas, tráfico de drogas, tráfico de armas, corrupção, lavagem de dinheiro, etc.
Nas sessões ocorridas nos dias 20, 21, 27 e 28 de novembro, o mérito do recurso foi julgado, e o tribunal admitiu o compartilhamento de informações entre os órgãos fiscais e os órgãos de investigação e persecução criminal, tal como já ocorria antes que se suspendessem as apurações criminais em curso.
Relator do recurso, o ministro Toffoli votou pela constitucionalidade do procedimento. Após destacar a importância do compartilhamento de dados fiscais e bancários de indivíduos e empresas para a apuração de atividades criminosas e de recordar precedentes do STF sobre a constitucionalidade de medidas de transparência voltadas ao combate da circulação ilegal de dinheiro, afirmou que isto não pode ser feito por medidas que comprometam garantias constitucionais de salvaguarda da intimidade e do sigilo dos cidadãos.
Em relação aos relatórios de inteligência financeira, elaborados no âmbito da Unidade de Inteligência Financeira – UIF (antigo COAF), o ministro admitiu o compartilhamento por solicitação do Ministério Público, da Polícia Federal ou de outras autoridades competentes, desde que tudo seja feito por meio de sistemas eletrônicos de segurança que funcionem mediante certificação, com registro de acesso, vedada a transmissão de dados sigilosos por qualquer outro meio que não possa sofrer controle, como e-mail, por exemplo. Destacou ainda que, no seu entender, o relatório de inteligência financeira deve ser encarado como meio de obtenção de prova, não como prova em si, e não pode, de maneira nenhuma, ser “encomendado” contra indivíduos que não estejam sendo investigados ou sobre os quais não tenha havido prévio alerta da Unidade de Inteligência Financeira.
No que concerne aos dados fiscais, inicialmente o ministro admitiu que a Receita Federal encaminhasse informações bancárias ao Ministério Público, desde que previamente instaurado procedimento administrativo no qual o contribuinte tivesse sido notificado. O encaminhamento de Representação Fiscal para Fins Penais (RFFP) ao Ministério Público só poderia ser considerado lícito se no procedimento administrativo-tributário surgissem indícios de crimes contra a ordem tributária, contra a previdência social, de descaminho e contrabando, além de lavagem de dinheiro. Além disso, a representação não poderia ser instruída com a íntegra de extratos bancários ou de declaração de imposto de renda, dados acessíveis apenas mediante autorização judicial. Mas, posteriormente, Toffoli reajustou seu voto. Ressalvando seu entendimento pessoal, aderiu à maioria para admitir que a Receita Federal compartilhe integralmente e sem autorização judicial o procedimento administrativo-fiscal.
O ministro Alexandre de Moraes também votou pela procedência do recurso, embora com alguns pontos de divergência em relação ao voto inicial do relator. A seu ver, considerando que a investigação criminal sobre crimes tributários só pode ser deflagrada após a Receita Federal lançar definitivamente o débito, é necessário que se compartilhem na íntegra os dados bancários e fiscais obtidos em procedimento fiscalizatório no qual haja suspeita de crime. Não há inconstitucionalidade, pois o processo deve ser supervisionado pelo Judiciário, que sanará eventuais abusos. Além disso, ressaltou que a única situação em que a atuação do Ministério Público está condicionada ao término do processo administrativo é a relativa aos delitos contra a ordem tributária. Se não for possível o compartilhamento integral dos dados reunidos no âmbito tributário, o órgão de acusação não terá instrumentos para a iniciativa persecutória. O ministro também considerou constitucional o compartilhamento de relatórios formulados pela Unidade de Inteligência Financeira, equivalentes a peças de informações, nas quais o Ministério Público pode se basear para instaurar procedimento investigatório criminal (PIC) ou para requisitar a abertura de inquérito policial, garantido sempre o sigilo dos dados em relação a terceiros.
O ministro Edson Fachin também julgou procedente o recurso, seguindo os pontos de divergência do voto que o antecedeu. Destacou que, em diversos precedentes, o STF admitiu a constitucionalidade da obtenção de informações financeiras pela Receita Federal, mesmo sem autorização judicial. Uma vez admitida a obtenção dos dados na esfera administrativa para apurar ilícitos tributários, a consequência inescapável é a extensão do acesso aos órgãos de persecução criminal se os mesmos fatos têm repercussão na esfera penal. O mesmo vale para relatórios de inteligência financeira formulados pela UIF, cujo compartilhamento é a razão de ser daquele órgão. Se os relatórios retratam a ocorrência de transações suspeitas, é natural que sejam encaminhados aos órgãos de investigação e persecução penal, ainda que sujeitos a outros elementos capazes de corroborá-los no âmbito do devido processo legal.
Para o ministro Barroso, não obstante se trate de dados sigilosos, o compartilhamento entre a UIF, a Receita Federal e os órgãos de persecução penal não caracteriza quebra de sigilo, pois a obrigação de proteger os dados transmitidos se transfere a todos os destinatários, que devem obstar sua publicidade. Não seria razoável, ademais, impedir que órgãos como a Receita Federal informem ao Ministério Público, com dados completos, os indícios de crimes surgidos em procedimento administrativo, especialmente se considerarmos que o compartilhamento de dados é uma tendência mundial que integra inclusive convenções internacionais, tendo em vista que se trata de importante medida para o combate à circulação de dinheiro proveniente de tráfico de drogas, terrorismo, corrupção, dentre outros crimes. Da forma como funciona atualmente, o sistema de compartilhamento é eficaz e os mecanismos de controle existentes já são capazes de garantir a privacidade e a intimidade sem que se prejudique o combate a atividades criminosas.
A ministra Rosa Weber também votou pela procedência do recurso e, consequentemente, pela constitucionalidade do compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira e de dados fiscais integrais pela Receita Federal. A remessa dos dados em sua totalidade não se opõe aos interesses do indivíduo, mas, ao contrário, privilegia a ampla defesa e o contraditório na medida em que impede a seleção de determinados documentos, que, isolados, propiciam uma análise limitada dos fatos.
Na mesma toada, o ministro Luiz Fux destacou que a apuração de crimes financeiros só é possível por meio do rastreamento de movimentações de dinheiro. Lembrou que o compartilhamento de dados pela UIF não é irrestrito, mas decorrente apenas de operações financeiras suspeitas, e que a Receita Federal é legalmente autorizada a obter dados bancários do contribuinte e a repassá-los ao Ministério Público para instruir procedimento investigatório.
Não foi diferente o voto da ministra Cármen Lúcia, para quem é legítimo o compartilhamento de informações entre os órgãos de fiscalização de movimentação financeira e os órgãos de investigação e persecução penal sempre que haja indícios de crimes. O direito fundamental à privacidade e ao sigilo não pode se sobrepor à necessidade de investigar práticas delituosas nem torna os cidadãos imunes à atuação estatal. Não se pode falar, ademais, em quebra de sigilo porque a própria legislação estabelece a obrigação funcional de que os integrantes dos órgãos de fiscalização informem às entidades competentes a suspeita de atividades ilícitas.
O ministro Ricardo Lewandowski lembrou a semelhança desta matéria com aquela analisada no RE 601.314/SP (j. 24/02/2016), ocasião em que o STF julgou constitucional o art. 6º da Lei Complementar 105/01 e concluiu ser dispensável autorização judicial para que a Receita Federal obtenha informações bancárias de contribuintes durante o exame de documentos, livros e registros de instituições financeiras. No caso julgado no RE 1.055.941 o ministro não vislumbrou nenhuma ilegalidade no compartilhamento de dados, pois tudo decorreu de procedimento administrativo-fiscal previamente instaurado e instruído nos termos da legislação.
Completando o grupo de votos vencedores, o ministro Gilmar Mendes afirmou que a Receita Federal deve transmitir aos órgãos de persecução penal todas as informações para demonstrar a constituição definitiva do crédito tributário e para viabilizar o exercício da ação penal, e é temerário estabelecer antecipadamente a qualidade das informações que podem ser inseridas na representação fiscal. Ponderou apenas que, a seu ver, o Relatório de Inteligência Fiscal se limita à função de “peça de inteligência financeira”, razão por que não pode ser utilizado como fonte de indício ou de prova para a instauração de inquérito policial ou de ação penal.
Ficaram vencidos os ministros Marco Aurélio e Celso de Mello.
O primeiro negou provimento ao recurso porque o sigilo de dados é mandamento constitucional que só pode ser flexibilizado em situações excepcionais, com objetivo bem determinado e por meio de decisão judicial. O segundo, não obstante tenha considerado legítimo o compartilhamento de relatórios entre a Unidade de Inteligência Financeira e os órgãos de persecução criminal (que têm a obrigação de preservar o sigilo), votou pelo improvimento do recurso porque a garantia constitucional relativa ao sigilo bancário e fiscal impõe limitações à extensão dos dados constantes da Representação Fiscal para Fins Penais, que deve conter tão somente informações mínimas que demonstrem os indícios do fato delituoso, sem que se remetam documentos como extratos bancários, declarações de imposto de renda, livros contábeis e notas fiscais. Estes documentos só poderiam ser obtidos por meio de autorização judicial, que não impõe nenhum óbice à plena atuação dos órgãos de investigação e persecução penal.
Na sessão de ontem (04/12/19), o tribunal aprovou a seguinte tese de repercussão geral no RE 1.055.941:
1 – É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal, para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional.
2 – O compartilhamento pela UIF e pela Receita Federal do Brasil, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios. |
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