8) A simples leitura da pronúncia no Plenário do Júri não leva à nulidade do julgamento, que somente ocorre se a referência for utilizada como argumento de autoridade que beneficie ou prejudique o acusado.
Encerrada a primeira fase do procedimento do júri, denominada instrução preliminar, caso o juiz se veja convencido da materialidade do crime e da existência de indícios de autoria deve pronunciar o réu, conforme prescrito no art. 413 do CPP.
Segundo dispõe o § 1º do art. 413, “A fundamentação da pronúncia limitar-se-á à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena”. Veda-se, portanto, o excesso de linguagem, ou seja, em virtude do caráter restrito da pronúncia, o juiz deve se valer de linguagem sóbria e comedida, sem excessivo aprofundamento na análise da prova, de resto desnecessária porquanto na pronúncia apenas se remete o réu a Júri, cabendo ao Tribunal Popular, este sim, a análise detida do mérito. O excesso na linguagem poderá, mais adiante, exercer indesejável influência na convicção dos jurados, que receberão cópias da decisão e, leigos, podem se deixar impressionar com a terminologia utilizada pelo juiz togado.
A preocupação sobre a influência da sentença de pronúncia nos jurados vai além, pois, como dispõe o art. 478, inc. I, do CPP, durante os debates as partes não podem fazer referência a esta decisão. Procura-se evitar que a acusação empregue de modo excessivo e inadequado a mera decisão de pronúncia, enaltecendo o fato de ter sido proferida por um juiz togado, pretendendo, desse modo, transformá-la em verdadeira sentença de mérito – o que não é. Com isso, garante-se um julgamento mais afeito à prova dos autos, no qual os jurados são levados a atentar para o que de fato interessa e não a aspectos incidentais.
A expressão fazer referência provoca certa controvérsia a respeito do alcance da restrição, isto é, se abarca apenas a utilização dos termos da pronúncia como fundamento da manifestação da acusação ou da defesa ou se nem mesmo uma simples alusão pode ser admitida, sob pena de influenciar indevidamente os juízes leigos.
O STJ firmou a tese de que a alusão ou mesmo a leitura da sentença em plenário não provoca nulidade, a não ser que a decisão tenha sido utilizada como argumento de autoridade:
“1. As normas processuais penais relativas ao procedimento adotado no Tribunal do Júri são bastante particulares e regradas. Em plenário, tais normas possuem grande relevância no desfecho do julgamento e visam assegurar a imparcialidade dos jurados, cidadãos leigos, que têm o dever, sob juramento, de examinar a causa e decidir segundo sua consciência e razão, sem nenhuma influência do tecnicismo da justiça togada. 2. Na hipótese, as palavras utilizadas pelo Membro do Ministério Público – “a legítima defesa foi rechaçada no momento da análise da pronúncia” – não demonstram evidente argumento de autoridade. Isso porque a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que a simples menção ou mesmo a leitura da sentença de pronúncia não implica, obrigatoriamente, a nulidade do julgamento, até mesmo pelo fato de os jurados possuírem amplo acesso aos autos. 3. Somente fica configurada a ofensa ao art. 478, I, do Código de Processo Penal se as referências forem feitas como argumento de autoridade que beneficie ou prejudique o acusado, circunstância afastada pelo Tribunal de origem, não demonstrada nos autos e, cuja análise transbordaria os limites do recurso especial, exigindo reexame do conjunto fático-probatório dos autos, o que é vedado pela Súmula 7/STJ. 4. Recurso especial não provido.” (REsp 1.757.942/GO, j. 28/03/2019)
9) Na intimação pessoal do réu acerca de sentença de pronúncia ou condenatória do Júri, a ausência de apresentação do termo de recurso ou a não indagação sobre sua intenção de recorrer não gera nulidade do ato.
A jurisprudência de nossos tribunais superiores é pacífica no sentido de não exigir que o mandado de intimação do réu seja acompanhado de termo no qual conste a intenção de recorrer ou, mesmo, a renúncia ao recurso. Tampouco se reclama que o oficial de justiça, ao intimar o réu, dele indague se desejar recorrer. O principal fundamento desse entendimento repousa no fato de que a legislação em nenhum momento impõe semelhante obrigação. O argumento é reforçado em vista da obrigatoriedade de intimação, também, do defensor do réu, seja ele constituído ou dativo, a quem caberá, com maior propriedade e conhecimento, avaliar se é mesmo o caso de se recorrer da decisão:
“(…) 2. No processo de competência do Tribunal do Júri, as nulidades ocorridas após a sentença de pronúncia devem ser alegadas tão logo quando anunciado o julgamento e apregoadas as partes, nos termos do artigo 571, V, do CPP, sob pena de preclusão. No caso, a Defesa não alegou, a tempo e modo, a apontada nulidade. 3. Por outro lado, a ausência do termo de recurso no ato de intimação pessoal do réu não acarreta a nulidade do processo, por não se tratar de providência legal obrigatória. Ademais, o advogado constituído, regularmente intimado, pode apresentar apelação independentemente do apenado, conforme a Súmula n.º 705 do Supremo Tribunal Federal (HC 183.332/SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe 28/06/2012) (HC 248.986/PR, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, Sexta Turma, julgado em 3/3/2016, DJe de 10/3/2016) . 4. Ademais, a defesa não demonstrou prejuízo decorrente da falta de intimação pessoal do acusado acerca da decisão de pronúncia, visto que a Defensoria Pública, devidamente intimada, o representou durante todo o deslinde da ação penal, tanto que interpôs tempestivamente recurso em sentido estrito contra a decisão de pronúncia, não havendo, portanto, dúvidas de que os princípios da ampla defesa e do contraditório foram regularmente observados, o que impede o reconhecimento da eiva suscitada na impetração, nos termos do artigo 563 do Código de Processo Penal.” (HC 498.507/TO, j. 11/06/2019)
10) A sentença de pronúncia deve limitar-se à indicação da materialidade do delito e aos indícios de autoria para evitar nulidade por excesso de linguagem e para não influenciar o ânimo do Conselho de Sentença.
Como vimos nos comentários à tese nº 8, a sentença de pronúncia deve ser proferida em linguagem sóbria e limitada à indicação dos elementos relativos à materialidade e à autoria do crime. Isto ocorre porque na fase da pronúncia não se esgota o mérito, mas apenas se analisa a existência de elementos mínimos para que o crime seja submetido a julgamento pelos jurados. E, para evitar a indevida influência dos juízes leigos, que podem se impressionar com a fundamentação por demais extensa e eloquente da sentença, a lei impõe que o juiz se restrinja a aspectos mais evidentes e a eles se refira de maneira contida. A análise sobre eventual excesso é, evidentemente, casuística:
“(…) 3. Não há que se falar em excesso de linguagem na decisão de pronúncia, isso porque o magistrado em nenhum momento afirmou juízo de certeza acerca da autoria delitiva, mas apenas indicou as provas, em especial testemunhais, que davam suporte à sua conclusão acerca da existência dos indícios em desfavor do recorrente. 4. A existência de dúvida razoável acerca da ocorrência de disputa automobilística, denominada “racha”, em alta velocidade e após aparente ingestão de bebidas alcoólicas autoriza a prolação de decisão de pronúncia, cabendo ao Tribunal do Júri a análise não só do contexto fático em que ocorreu o fato, mas também o exame acerca da existência de dolo ou culpa, uma vez que o deslinde da controvérsia sobre o elemento subjetivo do crime, se o acusado atuou com dolo eventual ou culpa consciente, é de competência do Tribunal do Júri.” (AgRg no AREsp 1.456.542/PR, j. 15/08/2019)
“(…) 2. O magistrado, ao pronunciar o réu, deve ser imparcial, mencionando os indícios de autoria e a prova de materialidade, analisando, ainda, as teses levantadas por ocasião das alegações finais. Não pode, todavia, exceder da adjetivação, sob pena de invadir o campo do subjetivismo e a competência do Tribunal do Júri para apreciar os crimes dolosos contra a vida, nos termos do previsto no art. 5º, XXXVIII, “d”, da Carta Magna. 3. No caso, o Magistrado ao afirmar que “a autoria recai indiscutivelmente sobre a pessoa do réu” e “as testemunhas foram uníssonas em apontar o acusado como autor do fato delituoso”, avançou além dos limites que lhe são deferidos, emitindo exame crítico e valorativo dos elementos probatórios dos autos, externando comprovação incontroversa da prática criminosa, encerrando consideração capaz de exercer influência no ânimo dos integrantes do Conselho de Sentença.” (HC 403.088/PB, j. 22/08/2017)
11) É possível rasurar trecho ínfimo da sentença de pronúncia para afastar eventual nulidade decorrente de excesso de linguagem.
Não é raro que sentenças de pronúncia se excedam na linguagem e exagerem nas adjetivações contra o réu, com fundamentação contundente, extravasando os limites a que já nos referimos. Neste caso, a tendência é que se decrete a nulidade da sentença, mas, para evitar isso, é possível rasurar pequenos trechos cuja extração seja suficiente para que a sentença cumpra sua função:
“Conforme entendimento desta Corte Superior, se ocorrer excesso de linguagem em pequeno trecho da decisão de pronúncia, diante do princípio da celeridade processual, admite-se que se proceda à rasura do trecho maculado, sem a necessidade de se anular todo o decisum.” (HC 324.689/SP, j. 26/02/2019)
12) Reconhecida a nulidade da pronúncia por excesso de linguagem, outra decisão deve ser proferida, visto que o simples envelopamento e desentranhamento da peça viciada não é suficiente.
A preocupação com o impacto que a sentença de pronúncia excessiva pode ter é tamanha que no julgamento do HC 81.959/MG (j. 28/05/2004), após reconhecer a inadmissível eloquência acusatória em determinada decisão, o STF acolheu o writ para, além de decretar a nulidade, determinar o desentranhamento dos autos. É uma providência determinada para que de forma nenhuma a decisão anulada seja utilizada pelas partes.
Nesta esteira, a tese nº 12 parece por demais óbvia, pois, se a sentença foi anulada e desentranhada, é evidente que outra deve ser proferida. Mas, na realidade, foi firmada a partir de precedentes do Supremo Tribunal Federal no sentido de que, uma vez constatado o excesso de linguagem, não basta o desentranhamento e o envelopamento da sentença; é necessário que se decrete a nulidade e que seja proferida outra decisão adequada e condizente com a natureza de simples juízo provisório de culpa:
“1. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que, configurado o excesso de linguagem na decisão de pronúncia, são inadequados o desentranhamento e o envelopamento da peça para impedir o seu conhecimento pelos jurados. 2. O excesso de linguagem é evidente se o Juiz sentenciante conclui que a tese de legítima defesa alegada pelo recorrente é inverídica e contraditória e declara que a sua versão dos fatos não merece crédito. 3. No caso dos autos, há evidente excesso de linguagem na pronúncia. Reconhecida a ilegalidade, deve ser anulada a decisão, com a determinação de que outra seja prolatada, sem o vício apontado. 4. Recurso especial provido.” (REsp 1.575.493/RS, j. 17/03/2016)
Um dos precedentes do STF pode ser representado pelo seguinte acórdão:
“1. O excesso de linguagem posto reconhecido acarreta a anulação da decisão de pronúncia ou do acórdão que incorreu no mencionado vício; e não o simples desentranhamento e envelopamento da respectiva peça processual, sobretudo em razão de o parágrafo único do artigo 472 do CPP franquear o acesso dos jurados a elas, na linha do entendimento firmado pela Primeira Turma desta Corte no julgamento de questão semelhante aventada no HC n. 103.037, Rel. Min. Cármen Lúcia, restando decidido que o acórdão do Superior Tribunal de Justiça “… representa não só um constrangimento ilegal imposto ao Paciente, mas também uma dupla afronta à soberania dos veredictos do júri, tanto por ofensa ao Código Penal, conforme se extrai do art. 472, alterado pela Lei n. 11.689/2008, quanto por contrariedade ao art. 5º, inciso XXXVIII, alínea ‘c’, da Constituição da República”. 2. In casu, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu no acórdão proferido nos autos do recurso em sentido estrito qual o excesso de linguagem apto a influenciar o ânimo dos jurados; todavia, em vez de anular o ato judicial viciado, apenas determinou o seu desentranhamento, envelopamento e a certificação de que o paciente estava pronunciado. 3. Habeas corpus extinto, por ser substitutivo de recurso ordinário; ordem concedida, de ofício, para anular o acórdão proferido nos autos do recurso em sentido estrito, a fim de que outro seja prolatado sem o vício do excesso de linguagem.” (HC 123.311/PR, j. 24/03/2015)
13) A competência para o processo e julgamento do latrocínio é do juiz singular e não do Tribunal do Júri.
A figura do latrocínio representa um crime contra o patrimônio qualificado pela morte. Assim, a vontade do agente é ofender o patrimônio da vítima, valendo-se, para tanto, da morte como meio. Se o agente tem a intenção inicial de provocar a morte da vítima, mas, após a consumação do crime de homicídio, resolve subtrair bens, responde pelo crime de homicídio em concurso com furto.
Diante desta característica de crime patrimonial em que a morte é um meio para a subtração, firmou-se a orientação de que a competência de julgamento é do juízo comum, e não do Tribunal do Júri, pois, afinal, não se trata de crime puramente doloso contra a vida:
“Havendo ou não a morte da vítima, a jurisprudência é pacífica no sentido de que o latrocínio é crime contra o patrimônio e, portanto, a competência para processá-lo e julgá-lo é do juiz singular, e não do Tribunal do Júri. Súmula n. 603/STF.” (HC 211.749/SP, j. 06/05/2014).
Como se nota, a tese simplesmente reproduz a súmula 603 do STF: “A competência para o processo e julgamento de latrocínio é do juiz singular e não do Tribunal do Júri”.
14) Compete ao Tribunal do Júri decretar, motivadamente, como efeito da condenação, a perda do cargo ou função pública, inclusive de militar quando o fato não tiver relação com o exercício da atividade na caserna.
O art. 92, inc. I, do CP estabelece como efeito da condenação a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo. A perda do cargo ou função pública é um efeito administrativo decorrente (a) de crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública, desde que haja pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano; ou (b) de crime comum, se a pena aplicada for privativa de liberdade superior a quatro anos.
Este efeito da condenação deve ser motivadamente declarado na sentença, ou seja, não se trata de uma consequência necessária e automática da condenação criminal. Para decretar a perda do cargo, deve o juiz apresentar os fundamentos segundo os quais se pode concluir que a natureza e as circunstâncias do crime são incompatíveis com o exercício da atividade pública.
Isto ocorre inclusive no âmbito do Tribunal do Júri, em que compete ao juiz motivar a perda do cargo em virtude da condenação imposta pelo Conselho de Sentença. Em que pese sua aparente obviedade, a tese nº 14 foi firmada após decisões em recursos nos quais se pretendia impedir a perda do cargo militar sob o argumento de que deveria haver procedimento específico para esta finalidade:
“Quanto às teses do recorrente de incompetência do juízo de primeiro grau para a decretação de perda de cargo público, da necessidade de instauração de procedimento específico para tal fim, e, ainda, acerca da competência da Justiça Militar, a decisão recorrida é no mesmo sentido de nossos Tribunais Superiores, conforme ilustram as ementas a seguir transcritas: RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSO PENAL. DEFICIÊNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO RECURSAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE EM SEDE DE EMBARGOS. INADEQUAÇÃO DA VIA E PRECLUSÃO. INTIMAÇÃO PESSOAL DO ACUSADO. DESNECESSIDADE. LAUDO ASSINADO POR UM SÓ PERITO E EXIBIÇÃO EM PLENÁRIO DE DOCUMENTO QUE NÃO SE REFERE AO FATO. AUSÊNCIA DE NULIDADE. DECISÃO CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. REEXAME DE PROVA. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DO JURI PARA DECRETAR A PERDA DA FUNÇÃO MILITAR. FATO SEM RELAÇÃO COM A ATIVIDADE NA CASERNA. (…) 11. Este Superior Tribunal de Justiça firmou sua jurisprudência no sentido de que o Tribunal do Júri é competente para motivadamente decretar, como efeito da condenação, a perda do cargo ou função pública, inclusive de militar, quando o fato não tiver relação com o exercício da atividade na caserna.” (AgRg no AREsp 558.084/MS, j. 11/06/2015)
15) A pronúncia é causa interruptiva da prescrição, ainda que o Tribunal do Júri venha a desclassificar o crime.
Diante da existência de prova da materialidade e de indícios suficientes da autoria de um crime doloso contra a vida, tentado ou consumado, deve o juiz submeter a causa à apreciação do Conselho de Sentença, o que se dá por meio da sentença de pronúncia. Tal decisão interrompe a prescrição, e não apenas do crime doloso contra a vida, como também do conexo, começando a contar o novo prazo prescricional a partir da publicação em cartório.
É possível que, no julgamento em plenário, os jurados acatem, por exemplo, a tese de que o homicídio foi cometido sem intenção, por imprudência. Neste caso, cabe ao juiz togado seguir a decisão do Conselho de Sentença e desclassificar o crime. Ainda assim, a pronúncia determinada em fase anterior deve ser considerada causa interruptiva da prescrição:
“A pronúncia é causa interruptiva da prescrição, ainda que o Tribunal do Júri venha a desclassificar o crime”. (Súmula 191 do STJ)
Para se aprofundar, recomendamos:
Livro: Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal Comentados por Artigos