O tráfico de pessoas era tipificado nos arts. 231 e 231-A do Código Penal e era restrito à finalidade de exploração sexual. No entanto, percebendo que os documentos internacionais assinados pelo Brasil dão ao tráfico de pessoas um alcance bem maior, abrangendo outros tipos de exploração que não a sexual, a Lei 13.344/16 removeu o tipo do rol dos crimes contra a dignidade sexual e o transferiu para os crimes contra a liberdade individual.
Em resumo, podemos afirmar que o tipo do art. 149-A é de conduta mista, constituído de oito verbos nucleares (alguns, inclusive, sinônimos), punindo-se o agente que agenciar (negociar, comerciar, servir de agente ou intermediário), aliciar (atrair, persuadir), recrutar (chamar pessoas), transportar (levar de um lugar para outro), transferir (mudar de um lugar para outro), comprar (adquirir a preço de dinheiro), alojar (acomodar) ou acolher (receber, aceitar, abrigar) pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo, submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo, submetê-la a qualquer tipo de servidão, adoção ilegal ou exploração sexual.
Antes da Lei 13.344/16 o emprego da violência (física e moral) ou de fraude servia como majorante de pena. Por isso, a maioria da doutrina lecionava que o consentimento da vítima era irrelevante para a tipificação do crime. Mas, com o advento da Lei 13.344/16, o legislador migrou essas condutas do rol de majorantes para a execução alternativa do crime de tráfico de pessoas, razão por que sem violência, coação, fraude ou abuso não há crime.
Diante desse novo cenário, o consentimento válido da pessoa exclui a tipicidade, seguindo, nesse ponto, o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, que no artigo 3º., “a” e “b”, alerta:
“a) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração.”
“b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a) do presente Artigo será considerada irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a).”
Foi neste sentido a decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região no julgamento da apelação criminal nº 0005165-44.2011.4.01.3600/MT.
No caso, três indivíduos haviam sido condenados por tráfico internacional de pessoas porque, no ano de 2005, promoveram a saída de três brasileiras do território nacional, fazendo com que embarcassem em um voo para a Espanha, local onde exerceriam a prostituição.
Inicialmente, o tribunal estabeleceu que a revogação do art. 231 do Código Penal (tipo penal em vigor na época da conduta) em nada interfere na tipicidade do tráfico de pessoas, pois a mesma conduta foi estabelecida pela Lei 13.344/16 no art. 149-A, procedimento que se denomina continuidade normativo-típica, isto é, a conduta não deixa de ser criminosa apenas em razão da revogação do tipo penal original, pois há uma continuidade na tipificação em outro dispositivo.
Ocorre, porém, que, a depender da situação, devem ser consideradas características inerentes ao tipo penal mais atual. Como já destacamos linhas acima, o dispositivo atualmente em vigor insere elementares que antes não integravam o tipo penal, senão que funcionavam como majorantes de pena. Esta inserção faz com que fatos passados sejam analisados à luz das novas elementares, o que acarreta uma espécie de retroatividade benéfica para excluir a tipicidade nas situações em que, sob a vigência da lei anterior, pessoas tenham sido enviadas para fora do país sob consentimento válido:
“Interessante constatar que para a Lei 13.344/16, na linha do que dispõe o Protocolo de Palermo, o crime de tráfico de pessoas se caracteriza e o consentimento da vítima será irrelevante apenas quando obtido por meio de ameaça, violência física ou moral, sequestro, fraude, engano, abuso, bem como é, absolutamente, desconsiderado o consentimento em relação aos menores de dezoito anos, que nos documentos internacionais é o marco etário normativo para a caracterização de “criança”.
À luz do Protocolo e da Lei 13.344/16, somente há tráfico de pessoas, se presentes as ações, meios e finalidades nele descritas. Por conseguinte, a vontade da vítima maior de 18 anos apenas será desconsiderada, se ocorrer ameaça, uso da força, coação, rapto, fraude, engano ou abuso de vulnerabilidade, num contexto de exploração do trabalho sexual.
Portanto, não há que se falar na configuração do delito de tráfico internacional de pessoas, consoante a interpretação dada ao art. 149-A, se o profissional do sexo voluntariamente entrar ou sair do país, manifestando consentimento de forma livre de opressão ou de abuso de vulnerabilidade.
(…)
Há que se considerar em cada caso, nessa linha de raciocínio, se o consentimento foi viciado ou que tenha ocorrido o ingresso no comércio sexual em decorrência de uma situação de vulnerabilidade, de modo que as mulheres pratiquem a prostituição num contexto opressivo.
Na nova redação do artigo 149-A do CP dada pela Lei 13.344/2016, a violência, a grave ameaça, a fraude, a coação e o abuso estão incluídas como circunstâncias elementares do novo tipo penal, de modo que, se elas não ocorrem, não se configura a tipicidade da conduta.
Equivale dizer, especialmente com relação ao crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, que uma vez verificada a existência de consentimento válido, sem qualquer vício, resta afastada a tipicidade da conduta.
No caso, os diversos depoimentos testemunhais colhidos, tanto em sede policial como em Juízo, sob o crivo do contraditório, permitem que se visualize com clareza a forma em que as mulheres eram encaminhadas para a Espanha e tinham os documentos necessários para a viagem providenciados, não havendo nenhuma referência a essas circunstâncias elementares do novo tipo penal.
De fato, em nenhum áudio das conversas interceptadas e depoimentos de testemunhas restou demonstrado a ameaça, o uso de força, coação, fraude, engano ou abuso de vulnerabilidade. Pelo contrário, as provas evidenciam que as vítimas foram para a Espanha já com o propósito de exercerem a prostituição, não restando provado que estavam em situação de vulnerabilidade. Na verdade consentiram livremente em migrar para o exterior para exercerem trabalhos sexuais, sabendo inclusive do valor que teria que ser reembolsado a título de passagens.
Assim, não há que se falar na incidência no delito de tráfico de pessoas quanto aos réus, considerando a plena consciência das mulheres enviadas para a Espanha, inclusive quanto a contratações de intermediários, com a cobrança de certos valores pelas participações previamente determinados e acordados por ambas as partes, como no caso dos autos.”
É imprescindível, portanto, aquilatar a validade do consentimento com base nas circunstâncias do caso concreto, presumindo-se o dissenso:
1) se obtido o consentimento mediante ameaça, uso da força ou outras formas de coação, rapto – sequestro ou cárcere privado –, fraude, engano;
2) se o agente traficante abusou de autoridade para conquistar o assentimento da vítima;
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