Originalmente, o Código Penal permitia a punição do estupro e do atentado violento ao pudor praticados com violência presumida. Não havia um tipo penal específico que considerasse as condições de idade, de saúde e de impossibilidade de resistência da vítima para tipificar a conduta relativa à prática de relações sexuais. Por meio de adequação típica mediata, fazia-se a conjugação dos tipos dos artigos 213 e 214 com o disposto no art. 224 do Código Penal, segundo o qual a violência era presumida se a vítima não fosse maior de quatorze anos, se fosse alienada ou débil mental ou se não pudesse, por qualquer causa, oferecer resistência.
A entrada em vigor da Lei 12.015/09 promoveu relevantes alterações na seara dos crimes sexuais, dentre as quais se destacam:
1) a unificação dos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor: antes tipificados em dispositivos diversos, tais crimes foram reunidos no art. 213, que passou a tratar como estupro a conjunção carnal e também os atos libidinosos de natureza diversa.
2) a criação do tipo penal relativo ao estupro de vulnerável (art. 217-A), que, sem presumir violência, pune as condutas de ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém menor de quatorze anos ou com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
3) a revogação do art. 224, que, diante da inserção do tipo autônomo de estupro de vulnerável, perdeu absolutamente o sentido.
Ocorre que, em 1990, quando entrou em vigor a Lei 8.072 dispondo a respeito dos crimes hediondos e equiparados, foi inserida em nosso ordenamento jurídico uma causa de aumento de pena baseada no art. 224. Segundo o art. 9º da mencionada lei, as penas dos crimes de roubo qualificado por lesão grave ou morte (art. 157, § 3º), extorsão qualificada por lesão grave ou morte (art. 158, § 2º), extorsão mediante sequestro (art. 159), estupro (art. 213) e atentado violento ao pudor (art. 214) seriam aumentadas de metade se a vítima se encontrasse em alguma das situações descritas no art. 224.
A redação do art. 9º da Lei 8.072/90 permaneceu vigente após a entrada em vigor da Lei 12.015/09, mas, considerando ter havido a revogação do art. 224, não há possibilidade de sustentar a permanência da majorante, pois “as hipóteses referidas no art. 224” não existem mais. Foi o que decidiu o STF no julgamento do habeas corpus 100.181/RS (j. 15/08/2019), no qual se aplicou retroativamente a revogação da causa de aumento.
O impetrante havia sido condenado por estupro e por atentado violento ao pudor em concurso material, pois golpeou a vítima com um pedaço de madeira até reduzi-la à impossibilidade de resistência e com ela praticou conjunção carnal e sexo anal.
Incidente a majorante do art. 9º da Lei 8.072/90, a pena foi fixada em 31 anos e 6 meses de reclusão. No recurso de apelação, o Tribunal de Justiça afastou a causa de aumento e fixou a pena em 22 anos e 8 meses. Curiosamente, porém, o Superior Tribunal de Justiça (embora em decisão monocrática) restaurou a condenação original e reinseriu a causa de aumento.
O habeas corpus impetrado no STF pela Defensoria Pública da União não foi conhecido por contrariar a súmula 691 do próprio tribunal, mas a ordem foi concedida de ofício em virtude do disposto no art. 5º, inc. XL, da Constituição Federal, segundo o qual “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
É interessante notar que originalmente se discutia a caracterização de bis in idem na imputação da majorante. Isto porque a situação descrita no revogado art. 224 do Código Penal havia sido considerada para presumir a violência (em razão da incapacidade de resistência provocada na vítima) e também para aumentar a pena.
Para melhor compreensão, recapitulemos a sistemática anterior: Antes da Lei 12.015/09, se o estupro ou atentado ao pudor de pessoa vulnerável fosse praticado sem violência real, incidia a presunção do art. 224 do CP, respondendo o agente pelo art. 213 ou 214, a depender do caso, com pena de 6 a 10 anos, não incidindo, de acordo com a maioria, o aumento de 1/2 trazido pelo art. 9º da Lei 8.072/90, evitando-se assim o bis in idem. Nesta situação, portanto, a Lei 12.015/09 é mais grave, e não alcança os fatos anteriores. Havendo violência real, dispensava-se a presunção do art. 224, respondendo o agente pelo crime do art. 213 ou 214, conforme a conduta, majorado de 1/2 de acordo com determinação prevista no art. 9º da Lei 8.072/90, gerando uma baliza punitiva de 9 a 15 anos. A nova pena para o estupro de vulnerável é mais benéfica (8 a 15 anos), e retroage para alcançar os fatos passados.
Nesta decisão, o STF não abordou especificamente a questão relativa ao bis in idem porque, como dissemos, o habeas corpus originalmente impetrado não foi conhecido. O tribunal concedeu a ordem de ofício limitando-se a afastar a causa de aumento, considerada inexistente diante da revogação do art. 224.
No mais, a condenação anterior foi mantida, com uma conclusão interessante e que pode provocar debate: como anteriormente à Lei 12.015/09 a conjunção carnal e os atos libidinosos diversos eram tratados em tipos distintos, a prática de ambos, ainda que no mesmo contexto – como foi o caso – significa também a prática de duas condutas, que devem ser imputadas em concurso material, mesmo que, posteriormente, tenha entrado em vigor lei que unificasse os crimes. O que se extrai disto é: mesmo que a Lei 12.015/09 tenha unificado os dois tipos penais, não unificou a natureza dos atos sexuais que caracterizam o novo tipo.
Como defendemos em nosso Manual de Direito Penal, o crime de estupro passou a ser de conduta múltipla ou de conteúdo variado. Praticando o agente mais de uma conduta, dentro do mesmo contexto fático, não se desnatura a unidade do crime (dinâmica que, no entanto, não pode passar imune na oportunidade da análise do art. 59 do CP). Em razão disso, a mudança é benéfica para o agente, devendo retroagir para alcançar os fatos pretéritos nos quais se considerou a prática dos crimes em concurso. O STJ, aliás, vem decidindo exatamente no sentido de que o autor de estupro e de atentado violento ao pudor praticados no mesmo contexto fático e contra a mesma vítima tem direito à aplicação retroativa da Lei 12.015/09, de modo a ser reconhecida a ocorrência de crime único:
“2. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é pacífica de que os crimes previstos nos arts. 213 e 214 do Código Penal – CP, após a redação dada pela Lei n. 12.015/09, configuram crime único. Todavia, devem as diversas condutas praticadas serem valoradas na primeira fase do cálculo da pena, ficando estabelecido como limite máximo para a nova sanção, a totalidade da pena anteriormente aplicada ao estupro e ao atentado violento ao pudor, de forma a se evitar a reformatio in pejus. 3. Por se tratar de inovação benéfica, novatio legis in mellius, a Lei n. 12.015/09 alcança todos os fatos ocorridos anteriormente à sua vigência. Na hipótese dos autos, considerando que a vítima foi submetida a conjunção carnal e atos libidinosos diversos, no mesmo contexto fático, deve ser concedida a ordem para reconhecer a ocorrência de crime único.” (HC 441.523/BA, j. 30/05/2019)
Mas a decisão proferida agora pelo STF contraria o que vem decidindo o STJ, pois considera que a Lei 12.015/09 não retroage para unificar as condutas imputadas de forma autônoma sob a vigência da lei anterior. E o debate ainda pode se estender porque, a rigor, o argumento de que há duas condutas de naturezas distintas ainda que sob único tipo penal pode ser utilizado para defender o concurso de crimes mesmo para fatos cometidos sob a vigência da lei atual. Seriam, no caso, dois crimes de estupro, um em razão da conjunção carnal e outro pelos atos libidinosos diversos.
Para se aprofundar, recomendamos: