Compete à Justiça Federal, nos termos do art. 109, inc. IV, da Constituição Federal, julgar “os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral”. Além disso, segundo o inciso XI, a Justiça Federal também é competente para julgar disputas sobre direitos indígenas, o que, segundo se tem decidido, abrange não somente questões relativas às terras, mas também aspectos relativos à organização social, aos costumes, às línguas, às crenças e às tradições (art. 231 da CF/88).
Mas, como estabelece a súmula 140 do STJ, “Compete à justiça comum estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima”. Assim é porque se confere ao art. 109 da Constituição Federal uma interpretação restritiva segundo a qual questões criminais envolvendo indígenas só devem ser julgadas pela Justiça Federal quando o fato é relativo a questões coletivas.
Com base nisso, em um caso no qual um agente público vinculado ao Ministério da Saúde havia registrado, por meio de aparelho celular, cena pornográfica envolvendo uma adolescente indígena, a Justiça Federal de primeira instância declinou de sua competência sob o argumento de que incidia a súmula 140 do STJ, pois não se tratava de ofensa a direitos da comunidade indígena.
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região, contudo, reformou a decisão ao julgar recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal. Segundo o tribunal, há claro interesse da União, porque o crime foi praticado por funcionário público federal que havia sido designado para trabalhar em um programa federal que visa a fornecer atendimento médico a comunidades indígenas. O agente público se aproveitou das circunstâncias proporcionadas por seu cargo para submeter a adolescente à humilhação de ser fotografada em conotação pornográfica enquanto utilizava vestimentas culturais características:
“Veja-se que o agente público estava vinculado ao Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y), programa do governo federal, que visa a fornecer atendimento médico a comunidades indígenas.
(…)
Dessa forma, fica demonstrado o interesse da União, uma vez que seu agente, que deveria prestar atendimento específico na área de saúde indígena, aproveitou-se de sua posição perante a comunidade para o cometimento do crime pelo qual foi denunciado.”
O tribunal regional seguiu orientação do STJ segundo a qual crimes cometidos por funcionários públicos federais no exercício da função devem ser julgados pela Justiça Federal, pois inegável o interesse da União na manutenção da lisura e da moralidade administrativa em seu âmbito de influência:
“1. Compete à Justiça Federal processar e julgar crime praticado por funcionário público federal, no exercício de suas atribuições funcionais. Precedentes.
2. Tal entendimento deriva do fato de que, ao atuar na qualidade de preposto da empresa pública federal, o acusado a representa e, por consequência, o cometimento de crime no exercício da função pública atinge diretamente a imagem da instituição.
3. Situação em que, em processo de renegociação de contratos bancários celebrados com a Caixa Econômica Federal (financiamento de imóvel, limite de cheque especial em conta corrente e empréstimo pessoal) e inadimplidos, o gerente de contratos da instituição financeira, no exercício de sua função na empresa, teria qualificado a querelante de “safada sem vergonha”, “mal caráter” e “pilantra”, em contato telefônico.
4. Conflito conhecido, para declarar a competência do Juízo Federal da 14ª Vara da Seção Judiciária do Paraná, o Suscitante.” (CC 147.781/PR, j. 14/09/2016)
Além disso, o tribunal regional considerou que, mesmo não havendo disputa sobre direitos indígenas, a conduta praticada pelo servidor teve o potencial de afetar aspectos culturais que ultrapassam a esfera individual:
“Aqui, no caso, o crime em comento, de fato, embora não envolva disputa sobre direitos indígenas em relação à terra, tem o potencial de afetar diretamente a representação social inerente à origem indígena, ao vincular uma tradição basilar da cultura indígena a imagens pornográficas, motivo pelo qual deve ser julgado pela Justiça Federal.”
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Livro: Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal Comentados por Artigos