6) O pagamento integral do débito tributário, a qualquer tempo, é causa extintiva de punibilidade, nos termos do art. 9º, § 2º, da Lei n. 10.684/2003.
As regras relativas à extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido (inclusive após parcelamento) passaram por diversas alterações ao longo do tempo.
Em síntese, pode-se dizer que inicialmente aplicava-se o disposto no art. 34 da Lei 9.249/95, que extinguia a punibilidade em relação ao agente que efetuasse o pagamento em momento anterior ao recebimento da denúncia. Com o aparecimento da Lei 10.684/03 (Lei do PAES), entendeu o STF (HC 85.452, DJU 03.06.2005) que o pagamento de tributo realizado a qualquer tempo gerava a extinção da punibilidade, nos termos do art. 9º, § 2º.
A política de extinção da punibilidade foi novamente prevista na Lei 11.941/09, que anuncia em seu art. 69: “Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no art. 68 [arts. 1º e 2º da Lei 8.137/90 e arts. 168-A e 337-A do CP] quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento”.
Posteriormente, Lei 12.382/11, dando nova redação ao art. 83, § 1º, da Lei 9.430/96, proclamou: “Na hipótese de concessão de parcelamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento”. Durante o período em que a pessoa física ou jurídica relacionada com o agente do crime estiver incluída no plano de parcelamento, fica “suspensa a pretensão punitiva do Estado”, desde que “o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento da denúncia criminal (§ 2º). A prescrição da pretensão punitiva [e não executória] também fica suspensa (§ 3º). Ocorrendo o pagamento integral dos débitos parcelados, extingue-se a punibilidade (§ 4º).
O STF já decidiu que a Lei nº 12.382/11 convive com o art. 9º, § 2º, da Lei nº 10.684/03. Julgando habeas corpus em processo que apurava sonegação fiscal, esclareceu-se que o impetrante buscava ver declarada extinta a punibilidade, considerado o pagamento integral de débito tributário constituído. No writ, fez-se referência ao voto externado no exame da AP 516 ED/DF, segundo o qual a Lei 12.382/11, que trata da extinção da punibilidade dos crimes tributários nas situações de parcelamento do débito, não afeta o disposto no § 2º do art. 9º da Lei 10.684/2003, o qual prevê a extinção da punibilidade em virtude do pagamento do débito a qualquer tempo. O relator Dias Toffoli ressalvou entendimento pessoal de que a quitação total do débito, a permitir que fosse reconhecida causa de extinção, poderia ocorrer, inclusive, posteriormente ao trânsito em julgado da ação penal (HC 116.828/SP, DJe 22/08/2013). Algum tempo depois, o tribunal julgou possível a extinção da punibilidade mesmo após o trânsito em julgado:
“1. Tratando-se de apropriação indébita previdenciária (art. 168-A, § 1º, I, CP), o pagamento integral do débito tributário, ainda que após o trânsito em julgado da condenação, é causa de extinção da punibilidade do agente, nos termos do art. 9º, § 2º, da Lei nº 10.684/03. Precedentes. 2. Na espécie, os documentos apresentados pelo recorrente ao juízo da execução criminal não permitem aferir, com a necessária segurança, se houve ou não quitação integral do débito. 3. Nesse diapasão, não há como, desde logo, se conceder o writ para extinguir sua punibilidade. 4. De toda sorte, afastado o óbice referente ao momento do pagamento, cumprirá ao juízo das execuções criminais declarar extinta a punibilidade do agente, caso demonstrada a quitação do débito, por certidão ou ofício do INSS.” (RHC 128.245/SP, DJe 21/10/2016).
O STJ também tem decidido que mesmo a quitação posterior ao trânsito em julgado pode beneficiar o agente, porque a Lei nº 10.684/03 não estabelece marco temporal, e não cabe ao Judiciário julgar lastreado em limites inexistentes:
“Portanto, se no histórico das leis que regulamentam o tema o legislador ordinário, no exercício da sua função constitucional e de acordo com a política criminal adotada, optou por retirar o marco temporal previsto para o adimplemento da obrigação tributária redundar na extinção da punibilidade do agente sonegador, é vedado ao Poder Judiciário estabelecer tal limite, ou seja, dizer o que a Lei não diz, em verdadeira interpretação extensiva não cabível na hipótese, porquanto incompatível com a ratio da legislação em apreço. E, assim, não há como se interpretar o artigo 9º, § 2º, da Lei 10.684/2003 de outro modo, senão considerando que o adimplemento do débito tributário, a qualquer tempo, até mesmo após o advento do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, é causa de extinção da punibilidade do acusado”. (HC 362.478/SP, DJe 20/09/2017)
7) A garantia aceita na execução fiscal não possui natureza jurídica de pagamento da exação, razão pela qual não fulmina a justa causa para a persecução penal.
Vimos que, segundo têm decidido os tribunais superiores, o pagamento do tributo pode a qualquer tempo acarretar a extinção da punibilidade. É possível, portanto, que, durante a execução fiscal que tramita paralelamente à ação penal o acusado faça o pagamento e provoque o encerramento do processo criminal.
Mas é também possível que, em vez de pagar o tributo na execução, o agente ofereça garantia, como a carta-fiança, emitida por instituição bancária para garantir o pagamento da obrigação tributária que está sendo exigida. Este procedimento, segundo tem decidido o STJ, não provoca a extinção da punibilidade, pois não equivale ao pagamento:
“A garantia do crédito tributário na execução fiscal – procedimento necessário para que o executado possa oferecer embargos – não possui, consoante o Código Tributário Nacional, natureza de pagamento voluntário ou de parcelamento da exação e, portanto, não fulmina a justa causa para a persecução penal, pois não configura hipótese taxativa de extinção da punibilidade ou de suspensão do processo penal” (RHC n. 65.221/PE, relator Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 7/6/2016, DJe 27/6/2016)” (AgRg no HC 468.265/SP, j. 23/04/2019)
8) A consumação do crime previsto no parágrafo único do art. 1º da Lei n. 8.137/1990 ocorre com a simples inobservância à exigência da autoridade fiscal.
O art. 1º, inciso V, da Lei 8.137/90 pune as condutas de “negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação”. O parágrafo único dispõe que pratica o mesmo crime quem deixa de atender, no prazo de dez dias (que pode ser convertido em horas em razão das circunstâncias), a alguma exigência da autoridade relativa aos mencionados documentos.
A orientação geral é de que a infração penal do inciso V é formal, ou seja, consuma-se com o simples ato de se negar a emitir ou deixar de fornecer nota fiscal ou documento equivalente. Não é necessário comprovar que do ato tenha decorrido a supressão ou a redução de tributo. Esta é inclusive a razão pela qual a figura criminosa do inciso V não integra a redação da súmula vinculante 24, que faz menção expressa aos crimes materiais contra a ordem tributária tipificados nos incisos I a IV do art. 1º. Afinal, se dispensável a prova da efetiva sonegação tributária, não há razão nenhuma para que se aguarde a constituição definitiva do tributo.
Dá-se algo semelhante com a figura equiparado do parágrafo único, que se contenta com a omissão:
“Reitera o agravante a tese de atipicidade da conduta argumentando que “o crime somente se caracteriza no momento de lançar o crédito tributário, não após a sua redução/supressão. É dizer: tivesse o recorrente se negado a fornecer os documentos à autoridade no momento em que fosse realizar o lançamento do respectivo crédito, teria ele de fato cometido o crime em questão. Ocorreu, no entanto, que já estava ausente tal lançamento, ou seja, a supressão/redução de tributo se deu ANTERIORMENTE á exigência da autoridade e, portanto, não há que se enquadrar como típica sua conduta in casu.” (e-STJ fl. 1.228). Afirma, também, que a questão atinente ao dolo na conduta delitiva foi devidamente debatida pelas instâncias de origem.
(…)
A tese da defesa de atipicidade da conduta não subsiste, isso porque esta Corte já decidiu que “a falta de atendimento da exigência feita pela autoridade fiscal, para que seja apresentada a documentação solicitada, é o que basta para a configuração do crime previsto no parágrafo único do art. 1º da Lei n. 8.137/1990. A consumação do crime ocorre com a simples inobservância à exigência da autoridade fiscal (falta de atendimento dessa exigência)” (HC 241.770/RJ, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Sexta Turma, DJe 29/06/2016).” (AgRg no AREsp 1.126.039/SP, j. 21/11/2017)
9) É indispensável a realização de perícia para a demonstração da materialidade delitiva do crime contra as relações de consumo tipificado no art. 7º, parágrafo único, inciso IX, da Lei n. 8.137/1990.
O art. 7º, inc. IX, da Lei 8.137/90 pune, com detenção de dois a cinco anos, ou multa, as condutas de vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria em condições impróprias ao consumo.
Trata-se de crime que visa a tutelar as relações de consumo ao punir práticas comerciais nocivas sobretudo à saúde dos consumidores. Embora não se trate de crime contra a saúde pública, não há dúvida de que o bem jurídico mais atingido por este tipo de conduta é o bem-estar dos consumidores. Não são tão raros os casos em que produtos comercializados em condições higiênicas inadequadas ou mesmo produzidos sem nenhum zelo para que cumpram corretamente a finalidade à qual se destinam acabem por causar sérios danos à saúde de quem os adquire.
Há quem argumente que a simples exposição de produtos com prazo de validade ultrapassado caracteriza o crime, pois o art. 18, § 6º, do Código de Defesa do Consumidor estabelece serem impróprios para o consumo os produtos cujos prazos de validade estejam vencidos (inc. I).
Mas seria mesmo a simples disposição da lei consumerista suficiente para nortear o aplicador da lei penal quanto à caracterização do crime? A resposta é negativa.
Isto porque, como dispõe o art. 158 do Código de Processo Penal, uma vez que a infração penal deixe vestígios é “indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”.
Ora, o delito do art. 7º, inciso IX, da Lei 8.137/90 é essencialmente não transeunte (ou de fato permanente), pois sua prática deixa vestígios materiais que devem ser constatados mediante perícia. O STJ tem se orientado francamente no sentido de que o crime pressupõe a realização de exame de corpo de delito, razão por que não basta a apreensão de produtos aparentemente impróprios para uso e consumo:
“RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO. ART. 7º, INCISOS II E IX DA LEI N. 8.137/90. ALIMENTOS SEM INDICAÇÃO DE PROCEDÊNCIA E IMPRÓPRIOS PARA O CONSUMO. MERCADORIA COM PRAZO DE VALIDADE VENCIDA. AUSÊNCIA DE PERÍCIA TÉCNICA. MATERIALIDADE DELITIVA NÃO DEMONSTRADA. FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL. TRANCAMENTO. RECURSO PROVIDO. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se firmou no sentido de que a conduta tipificada no art. 7º, parágrafo único, inciso IX, da Lei 8.137/90 – expor à venda produtos impróprios para o consumo – deixa vestígios, razão pela qual a perícia é indispensável para a demonstração da materialidade delitiva, nos termos do art. 158 do Código de Processo Penal – CPP. Precedentes. 2. Da mesma forma, o tipo previsto no inciso II do art. 7º da Lei n. 8.137/90, “vender ou expor à venda mercadoria cuja embalagem, tipo, especificação, peso ou composição esteja em desacordo com as prescrições legais, ou que não corresponda à respectiva classificação oficial” deve ser considerado de natureza material a exigir perícia para a sua tipificação. Assim, no caso dos autos a criminalização da exposição à venda de carne bovina, sem a indicação de procedência, depende também da realização de prova pericial para que fique demonstrado que a mesma é imprópria para o consumo humano, sob pena de restar configurada a responsabilidade objetiva. 3. Recurso em habeas corpus ao qual se dá provimento para determinar o trancamento da ação penal por falta de justa causa.” (RHC 97.335/SC, j. 19/03/2019)
Vê-se, desse modo, que para o STJ a disposição do art. 18, § 6º, inciso I, do CDC não tem nenhum efeito na esfera criminal. A presunção, pela lei consumerista, de que o prazo de validade vencido torna o produto impróprio para o consumo visa sobretudo a viabilizar a atuação preventiva dos órgãos de defesa do consumidor e de vigilância sanitária, que podem efetuar a apreensão e adotar as medidas cabíveis na esfera administrativa (multa, interdição, etc.). Mas, no âmbito criminal, a impropriedade do produto deve ser apurada concretamente.
10) A malversação dos recursos administrados pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM se amolda ao tipo penal previsto no art. 2º, IV, da Lei n.º 8.137/90 e não ao do art. 171, § 3º, do Código Penal.
A Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) é uma autarquia especial vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional. Abrange os Estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Rondônia, Roraima, Tocantins, Pará e parte do Maranhão e tem por finalidade “promover o desenvolvimento includente e sustentável de sua área de atuação e a integração competitiva da base produtiva regional na economia nacional e internacional” (art. 3º da Lei Complementar 124/07).
Segundo o art. 6º da mesma lei, as receitas da SUDAM pode ser provenientes de dotações orçamentárias consignadas no Orçamento Geral da União, de transferências do Fundo de Desenvolvimento da Amazônia, de resultados de aplicações financeiras de seus recursos ou de outras receitas previstas em lei.
A atuação da SUDAM para promover o desenvolvimento regional pode culminar no repasse de incentivos fiscais, que, evidentemente, não escapam da malversação. Daí surge a controvérsia sobre a correta tipificação, isto é, se à conduta deve ser atribuída a qualidade de crime patrimonial – especificamente o estelionato majorado do art. 171, § 3º, do CP – ou se é mais adequado tratá-la como crime contra a ordem tributária tipificado no art. 2º, inc. IV, da Lei 8.137/90.
O estelionato majorado consiste em obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita em prejuízo de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento. Já o delito contra a ordem tributária consiste em deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento.
O STJ se orienta no sentido de que a malversação de incentivos concedidos – grosso modo, a aplicação dos recursos em destino irregular – caracteriza o crime tributário, não o patrimonial:
“A jurisprudência desta corte é no sentido de que “a malversação dos recursos oriundos do FINAM e administrados pela SUDAM se amoldam ao tipo penal previsto no art. 2.º, IV, da Lei n.º 8.137/90 e não ao do art.171, § 3º, do Código Penal” (AgRg no AREsp 739.630/TO, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, DJe 29/06/2016).” (AgRg no AREsp 897.927/TO, j. 18/08/2016)
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