Em 22/05/2019, o STF publicou o acórdão da decisão proferida nas ADPF 395 e 444, nas quais se questionava a constitucionalidade da condução coercitiva para interrogatório.
Em síntese, a ADPF 395 impugnava a condução coercitiva para interrogatório na investigação e também na instrução criminal, razão por que seu pedido consistia na declaração da inconstitucionalidade da medida determinada como cautelar autônoma para a inquirição de suspeitos, indiciados ou acusados. A ADPF 444, por sua vez, questionava a constitucionalidade apenas da condução coercitiva para interrogatório em fase de investigação policial. Havia também pedido subsidiário para que se declarasse inconstitucional a interpretação extensiva para a aplicação da condução coercitiva em situações que extrapolassem os estritos termos do art. 260 do CPP.
O STF considerou procedente o pleito em julgamento cujo acórdão foi publicado nos seguintes termos:
“1. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Constitucional. Processo Penal. Direito à não autoincriminação. Direito ao tempo necessário à preparação da defesa. Direito à liberdade de locomoção. Direito à presunção de não culpabilidade. 2. Agravo Regimental contra decisão liminar. Apresentação da decisão, de imediato, para referendo pelo Tribunal. Cognição completa da causa com a inclusão em pauta. Agravo prejudicado. 3. Cabimento da ADPF. Objeto: ato normativo pré-constitucional e conjunto de decisões judiciais. Princípio da subsidiariedade (art. 4º, §1º, da Lei nº 9.882/99): ausência de instrumento de controle objetivo de constitucionalidade apto a tutelar a situação. Alegação de falta de documento indispensável à propositura da ação, tendo em vista que a petição inicial não se fez acompanhar de cópia do dispositivo impugnado do Código de Processo Penal. Art. 3º, parágrafo único, da Lei 9.882/99. Precedentes desta Corte no sentido de dispensar a prova do direito, quando “transcrito literalmente o texto legal impugnado” e não houver dúvida relevante quanto ao seu teor ou vigência – ADI 1.991, Rel. Min. Eros Grau, julgada em 3.11.2004. A lei da ADPF deve ser lida em conjunto com o art. 376 do CPC, que confere ao alegante o ônus de provar o direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, se o juiz determinar. Contrario sensu, se impugnada lei federal, a prova do direito é desnecessária. Preliminar rejeitada. Ação conhecida. 4. Presunção de não culpabilidade. A condução coercitiva representa restrição temporária da liberdade de locomoção mediante condução sob custódia por forças policiais, em vias públicas, não sendo tratamento normalmente aplicado a pessoas inocentes. Violação. 5. Dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88). O indivíduo deve ser reconhecido como um membro da sociedade dotado de valor intrínseco, em condições de igualdade e com direitos iguais. Tornar o ser humano mero objeto no Estado, consequentemente, contraria a dignidade humana (NETO, João Costa. Dignidade Humana: São Paulo, Saraiva, 2014. p. 84). Na condução coercitiva, resta evidente que o investigado é conduzido para demonstrar sua submissão à força, o que desrespeita a dignidade da pessoa humana. 6. Liberdade de locomoção. A condução coercitiva representa uma supressão absoluta, ainda que temporária, da liberdade de locomoção. Há uma clara interferência na liberdade de locomoção, ainda que por período breve. 7. Potencial violação ao direito à não autoincriminação, na modalidade direito ao silêncio. Direito consistente na prerrogativa do implicado a recursar-se a depor em investigações ou ações penais contra si movimentadas, sem que o silêncio seja interpretado como admissão de responsabilidade. Art. 5º, LXIII, combinado com os arts. 1º, III; 5º, LIV, LV e LVII. O direito ao silêncio e o direito a ser advertido quanto ao seu exercício são previstos na legislação e aplicáveis à ação penal e ao interrogatório policial, tanto ao indivíduo preso quanto ao solto – art. 6º, V, e art. 186 do CPP. O conduzido é assistido pelo direito ao silêncio e pelo direito à respectiva advertência. Também é assistido pelo direito a fazer-se aconselhar por seu advogado. 8. Potencial violação à presunção de não culpabilidade. Aspecto relevante ao caso é a vedação de tratar pessoas não condenadas como culpadas – art. 5º, LVII. A restrição temporária da liberdade e a condução sob custódia por forças policiais em vias públicas não são tratamentos que normalmente possam ser aplicados a pessoas inocentes. O investigado é claramente tratado como culpado. 9. A legislação prevê o direito de ausência do investigado ou acusado ao interrogatório. O direito de ausência, por sua vez, afasta a possibilidade de condução coercitiva. 10. Arguição julgada procedente, para declarar a incompatibilidade com a Constituição Federal da condução coercitiva de investigados ou de réus para interrogatório, tendo em vista que o imputado não é legalmente obrigado a participar do ato, e pronunciar a não recepção da expressão “para o interrogatório”, constante do art. 260 do CPP.”
À época do julgamento – proferida em junho do ano passado – publicamos artigo no qual abordamos a questão submetida ao tribunal e os votos dos ministros. Mas, aproveitando o ensejo da publicação do acórdão, acrescentamos algumas notas sobre o alcance do que foi decidido.
Destaca-se inicialmente que a decisão não abrange a condução coercitiva de testemunhas, que são obrigadas a depor e cujo silêncio pode inclusive dar ensejo à punição por falso testemunho (nos termos do art. 342 do CP, é crime também “calar a verdade”). Desta forma, caso a testemunha regularmente intimada não compareça e nem justifique sua ausência, é dado ao juiz ordenar à autoridade policial sua apresentação ou determinar que, debaixo de vara, seja ela apresentada coercitivamente por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da polícia para a concretização da diligência. Isto está expresso no art. 218 do CPP, que não foi objeto das ações constitucionais julgadas pelo STF, e nem faria mesmo sentido que houvesse sido, pois não há paralelo entre o interrogatório de investigados ou acusados e o depoimento de testemunhas, que declaram o que sabem sobre o fato mas não se comprometem com suas consequências, ao passo que eventuais declarações prestadas por aqueles a quem se imputa o crime podem implicá-los diretamente. Disso decorre que o direito ao silêncio acoberta o interrogado mas não aquele que presta depoimento. E, se este indivíduo não pode se furtar ao dever de esclarecer o que sabe sobre o fato, é natural que haja uma ferramenta processual que garanta o cumprimento da obrigação.
Nas primeiras linhas de seu voto sobre o mérito das ações, o ministro Gilmar Mendes deixou claro que a condução coercitiva pode ser utilizada em diversos contextos, mas o julgamento se resumia ao interrogatório:
“Inicio por um esclarecimento, para que a compreensão da fundamentação não seja reduzida por ambiguidade.
Busca-se o reconhecimento de que investigados e réus não podem ser conduzidos coercitivamente à presença da autoridade policial ou judicial para serem interrogados.
Há outras hipóteses de condução coercitiva que não são objeto desta ação – a condução de outras pessoas como testemunhas, ou de investigados ou réus para atos diversos do interrogatório, como o reconhecimento, por exemplo. Por óbvio, essas outras hipóteses não estão em causa. Serão mencionadas no curso do voto apenas para ilustração e teste das teses jurídicas em conflito.
Para que não paire dúvida, desde logo esclareço que o emprego não especificado da expressão “condução coercitiva” doravante neste voto fará referência ao objeto da ação – condução do imputado para interrogatório.”
É claro, portanto, que testemunhas não estão abrangidas pela limitação. Aliás, nota-se também claramente que nem mesmo investigados ou acusados estão absolutamente isentos da condução coercitiva, pois é possível, por exemplo, que sejam levados à força para a realização de reconhecimento por vítimas ou testemunhas, situação em que não se cogita a oposição da máxima nemo tenetur se detegere porque o indivíduo não produz nenhuma prova contra si, tendo em vista que assume uma postura meramente passiva na qual apenas se submete a um ato em que suas características físicas externas são analisadas por outras pessoas:
“A presente ação não trata de outras hipóteses de condução coercitiva, como a condução de testemunhas e peritos, ou de investigados ou réus para identificação, qualificação ou outros atos diversos do interrogatório, como a identificação, a qualificação e o reconhecimento, dentre outros.”
Note-se, ademais, que o julgamento deixou claro algo de suma importância: não é possível determinar a condução coercitiva de investigados na qualidade de testemunhas apenas para evitar as consequências jurídicas decorrentes da condução ilegal:
“Sobre a condução coercitiva de testemunhas, abro um parêntese para consignar que investigados não devem ser tratados como testemunhas, como forma de burlar a presente decisão.
(…)
É certo que há dificuldade inicial de definir a posição de algumas pessoas frente à investigação, como suspeitos ou testemunhas. São inúmeros os casos de comissões parlamentares de inquérito que convocam investigados na qualidade de testemunha, havendo intervenção judicial para assegurar o direito ao silêncio. Mas, se a investigação se volta contra a pessoa, apontando-se sua colaboração para os fatos e adotando-se medidas probatórias com grande considerável probabilidade de levar a sua responsabilização, ela deve ser tratada como investigada.”
Também não se impede a condução coercitiva de vítimas.
A vítima não tem o mesmo tratamento jurídico da testemunha, tanto que não é previamente compromissada e, se mentir, não responderá pelo crime de falso testemunho, podendo, a depender do caso concreto, praticar o delito de denunciação caluniosa ou de falsa de crime ou de contravenção, tipificados, respectivamente, nos arts. 339 e 340 do Código Penal. A despeito disso, o art. 201, parágrafo único, do CPP autoriza a condução coercitiva do ofendido que, regularmente intimado, se ausenta sem apresentar uma escusa razoável. Isto ocorre porque, embora não se trate de testemunha, não se ignora o caráter de importante meio de prova de suas declarações, e, por conta disso, o legislador considera relevante sua oitiva, dedicando-lhe um capítulo próprio na parte concernente à prova.
Finalmente, reforçamos que a vedação à condução coercitiva para interrogatório abrange tanto os investigados quanto os acusados, ou seja, incide na fase de investigação como na instrução processual.
Assim é porque o direito de não produzir prova contra si é inerente a ambos os momentos. Mesmo em juízo o indivíduo é informado de que tem o direito de permanecer em silêncio, como estabelece expressamente o art. 186 do CPP.
Existe acalorada discussão a respeito da natureza jurídica do interrogatório: trata-se de um meio de prova ou de um meio de defesa?
Parece ganhar força, segundo a doutrina mais moderna, uma posição intermediária, que confere um caráter misto à natureza jurídica do ato.
As mudanças provocadas pela Lei 10.792/03 no interrogatório confirmam sua natureza dúplice. É ato defesa, pois ao interrogado é dado, inclusive, negar-se a responder às indagações que lhe são formuladas. Também possui, no entanto, a característica de meio de prova, ou, para ser mais preciso, fonte de prova. Basta ver a situação na qual o réu, perante o juiz, confessa a prática do crime. Conquanto se façam restrições ao caráter absoluto da confissão, que não ostenta mais o status de “rainha das provas”, parece claro, na prática, o enorme valor probatório dessa admissão formulada pelo acusado.
Seja como for, o caráter de meio de defesa ganha certo destaque devido à possibilidade de que o acusado simplesmente se negue a responder a qualquer indagação que lhe seja dirigida durante a instrução processual. Logo, o caráter de fonte de prova só tem relevância se o indivíduo assume postura colaborativa diante das perguntas formuladas pelo juiz ou pela acusação.
A possibilidade de que o acusado se negue a prestar qualquer esclarecimento faz com que se encare sua presença na instrução processual como um direito, não como um dever, a não ser – repetimos – em relação a atos processuais nos quais sua presença seja imprescindível apesar do direito ao silêncio – como no reconhecimento pessoal, que também pode ser realizado em juízo.
Por isso, não mais se cogita a condução forçada à audiência de instrução e julgamento.
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Livro: Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal Comentados por Artigos