A Constituição Federal estabelece, em seu art. 53, § 2º, que, “Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”. Trata-se da imunidade relativa à prisão, também denominada “incoercibilidade pessoal dos congressistas (freedom from arrest)”.
O texto constitucional em nenhum momento faz referência a outras possibilidades cautelares de encarceramento, como as prisões temporária e preventiva. Ocorre que, nos últimos anos, foram incontáveis os casos envolvendo parlamentares federais em crimes contra a Administração Pública e de organização criminosa. Essa multiplicação de crimes levou o STF a tomar algumas decisões nas quais se promoveu uma leitura restritiva da imunidade relativa à prisão. Em síntese, pode-se dizer que o tribunal passou a admitir não só a prisão cautelar como também a imposição de medidas diversas da prisão, inclusive aquelas que limitam o exercício do mandato parlamentar.
Isso levou a outra decisão (ADI 5526), que, conferindo interpretação conforme a Constituição aos artigos 312 e 319 do CPP, estabeleceu que a aplicação das medidas cautelares impostas a parlamentares deve ser submetida a deliberação da respectiva Casa Legislativa em vinte e quatro horas, seguindo a regra relativa à apreciação da prisão em flagrante (art. 53, § 2º, da CF).
Após esta decisão, as Assembleias Legislativas de alguns Estados passaram a aplicar a mesma regra no caso de prisão de deputados estaduais. No final de 2017, deputados estaduais do Rio de Janeiro tiveram a prisão preventiva decretada pelo TRF da 2ª Região em uma investigação envolvendo crimes de corrupção, associação criminosa, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Como a Constituição Federal estabelece expressamente que aos deputados estaduais se aplicam as regras da própria Constituição “sobre sistema eleitoral, inviolabilidade, imunidades, remuneração, perda de mandato, licença, impedimentos e incorporação às Forças Armadas” (art. 27, § 1º – grifamos), a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro decidiu analisar a prisão e acabou determinando a soltura dos parlamentares que haviam sido presos. Dias depois, o TRF 2 restabeleceu a prisão sob o fundamento de que a soltura havia sido ilegal.
A controvérsia chegou ao STF por meio de ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 5823, 5824 e 5825) contra dispositivos de constituições estaduais que estendem a deputados estaduais as imunidades formais concedidas pela Constituição Federal aos parlamentares federais, pois, argumenta-se, apenas a inviolabilidade nas opiniões, palavras e votos seria de repetição obrigatória nas constituições estaduais; as imunidades formais não podem ser repetidas porque, no âmbito estadual, não cumprem o mesmo desiderato estabelecido pelo constituinte originário, que é a preservação do sistema representativo federal. E a decisão do STF impondo a necessidade de confirmação de medidas cautelares decretadas contra parlamentares federais considerou justamente o aspecto relativo à divisão de Poderes e à manutenção do sistema representativo no âmbito federal, não no dos estados.
O STF iniciou o julgamento do pedido liminar em 2017, mas, suspensa a análise, somente hoje (08/05/2019) foram proferidos os votos faltantes.
Quando suspensa a sessão, eram cinco os votos pela concessão da liminar e, portanto, da restrição das imunidades formais aos deputados estaduais; quatro ministros haviam votado contra a liminar. Em artigo publicado à época, resumimos os votos da seguinte forma:
“O ministro Edson Fachin, relator de duas das ações, concedeu a liminar argumentando que as decisões que decretam medidas cautelares envolvem um juízo técnico-jurídico, não político. Decidiu o ministro conferir aos dispositivos estaduais interpretação – conforme a Constituição – de que aquelas regras não vedam a decretação de medidas cautelares de natureza penal contra deputados estaduais, tampouco concedem às assembleias legislativas poder para revogar ou sustar atos judiciais.
A ministra Rosa Weber concedeu a liminar fundamentando-se no fato de que, ao decidir que as medidas cautelares aplicadas a parlamentares federais devem ser submetidas à respectiva Casa Legislativa, o Supremo não estabeleceu nenhuma extensão aos deputados estaduais.
O ministro Luiz Fux, por sua vez, afirmou que as prerrogativas do § 2º do art. 53 da CF são aplicáveis aos deputados estaduais, mas o dispositivo deve ser interpretado no sentido de que, até o recebimento da denúncia, a prerrogativa de decidir sobre qualquer medida é do Judiciário (recebida a denúncia, o Judiciário informa ao Legislativo, que pode sustar o andamento da ação penal – art. 53, § 3º, CF/88).
O ministro Dias Toffoli argumentou que a prerrogativa de analisar a prisão dos parlamentares é do Congresso Nacional, não de seus membros, ou seja, não é uma imunidade, mas uma prerrogativa da instituição, razão por que não se estende aos parlamentares estaduais. Para o ministro, a imunidade contra a prisão de que a trata a Constituição Federal é de reprodução vedada nas constituições estaduais.
Finalmente, a ministra Cármen Lúcia se valeu do já conhecido argumento de que imunidade não pode significar impunidade. As imunidades estabelecidas na Constituição Federal existem não para proteger os indivíduos que ocupam o cargo, mas as instituições que eles compõem, razão pela qual se justifica a interpretação restritiva no sentido de que as imunidades formais se restringem à esfera federal.
Por outro lado, o ministro Marco Aurélio, relator de uma das ações, indeferiu a liminar argumentando que as imunidades estabelecidas na Constituição Federal são aplicáveis, por expressa disposição, aos deputados estaduais. Na mesma linha decidiu o ministro Alexandre de Moraes, que apontou a possibilidade de revisão, pelo Poder Judiciário, das decisões tomadas com abuso de poder ou desvio de finalidade pelas assembleias legislativas.
Também se referiram à extensão expressa, formulada pelo constituinte originário, os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello.”
Na ocasião, nossa conclusão – que mantemos – foi de que não havia possibilidade de restringir a decisão do STF na ADI 5526 aos parlamentares federais, pois o art. 27, § 1º, da Constituição é expresso ao estender aos deputados estaduais as imunidades – no plural – concedidas aos parlamentares federais:
“Data maxima venia, os argumentos utilizados para a concessão da liminar são demasiadamente genéricos e não se sustentam (e, se bem aplicados, funcionam contrariamente à decisão tomada pelo próprio STF na ADI 5526).
Ora, o fato de que o Judiciário faz um juízo técnico-jurídico, não político, aplica-se também ao STF no tocante aos parlamentares federais; o fato de que o STF não estabeleceu nenhuma extensão aos deputados estaduais quando decidiu a ADI 5526 é de todo irrelevante, pois a Constituição Federal estabelece expressamente a extensão; o argumento de que, até o recebimento da denúncia, a prerrogativa de decidir sobre qualquer medida é do Judiciário também se aplica aos parlamentares federais; tampouco se sustenta o argumento de que a decisão sobre a prisão é uma prerrogativa da instituição, não dos parlamentares, porque a Constituição trata dessa prerrogativa como uma imunidade parlamentar e a estende ao âmbito estadual, no qual também existem instituições (no caso, as assembleias legislativas); e nem se fale do argumento de que imunidades não podem significar impunidade. Ora, isso é evidente, porém não é disso que se trata. O que está em jogo é a aplicação de uma regra constitucional expressa e muito clara que estende aos parlamentares estaduais as imunidades – todas – estabelecidas para os congressistas.
O equívoco, parece-nos, iniciou-se na decisão que concedeu ao Legislativo o poder de rever determinações judiciais. Na verdade, a pretexto de obstar a utilização do cargo – e consequentemente das imunidades – para a prática de ilícitos e de evitar a impunidade, o STF decidiu por aplicar medidas penais que a Constituição Federal não contempla; e, para diminuir o impacto dessa iniciativa e evitar o enfraquecimento do sistema de separação de poderes, decidiu conferir ao Congresso Nacional uma espécie de controle sobre decisões judiciais, controle este que a Constituição Federal tampouco contempla. Agora, ao que parece, busca evitar os efeitos negativos de sua própria decisão.” – destaque no original
Na conclusão do julgamento do pedido liminar, o tribunal concluiu, por seis votos a cinco, pela extensão das imunidades formais aos parlamentares estaduais.
O ministro Dias Toffoli retificou seu voto para aderir à tese de que as imunidades formais podem ser estendidas aos parlamentares estaduais. No mesmo sentido votou o ministro Ricardo Lewandowski, que se ateve ao texto expresso do art. 27, § 1º e apontou que no conflito entre preservação da imunidade parlamentar e a eficácia da persecução penal, “[d]o ponto de vista de densidade histórica, a proteção da imunidade parlamentar possui muito mais peso e substância”.
Alinhando-se à tese contrária, o ministro Luís Roberto Barroso argumentou que, mesmo em relação a parlamentares federais, a Constituição só admite que o Parlamento delibere sobre a prisão de seus membros em situação de flagrante de crime inafiançável. Logo, não se cogita de nenhuma extensão aos deputados estaduais. O ministro seguiu a linha de seu próprio voto – vencido – na ADI 5526, ou seja, pela possibilidade de decretação de qualquer medida cautelar sem submissão à apreciação do Legislativo, independentemente da restrição provocada no exercício do mandato parlamentar.
A nosso ver, a conclusão a que se chegou era mesmo inevitável em razão da simetria estabelecida pelo art. 27, § 1º, da Constituição Federal. Se houve deslize – reitere-se –, isto se deu em decisões anteriores que criaram institutos não contemplados pelo ordenamento constitucional.
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