O Código Penal, em seu artigo 68, adotou o sistema trifásico (ou Nélson Hungria) para o cálculo da pena privativa de liberdade. Assim, sobre a pena cominada:
1) na primeira fase, estabelece-se a pena-base atendendo às circunstâncias judiciais trazidas pelo artigo 59 do CP: culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos, circunstâncias e consequências do crime e comportamento da vítima.
2) na segunda fase, sobre a pena-base incidirão eventuais circunstâncias agravantes e atenuantes (arts. 61, 62, 65 e 66);
3) na terceira fase, encerrando o quantum da reprimenda, serão consideradas as causas de diminuição e aumento de pena previstas tanto na Parte Geral como na Especial do Código.
Estabelecido o quantum da pena, o juiz impõe o regime de cumprimento adequado e, em seguida, há três opções: 1) executa-se a pena privativa de liberdade aplicada; 2) substitui-se a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos; 3) suspende-se condicionalmente a execução da pena.
Para atender sobretudo aos propósitos de recuperação e ressocialização, que no mais das vezes podem ser alcançados por meio de medidas alternativas, a tendência tem sido evitar as penas privativas de liberdade, reservadas a crimes de maior gravidade e a condenados que de antemão sinalizem pouca disposição para se adequar a medidas que demandam autodisciplina e senso de responsabilidade.
A alternativa preferencial à pena privativa de liberdade é a restrição de direitos, que tem caráter substitutivo e autônomo, pois necessariamente substitui a privação de liberdade (o juiz não pode aplicá-la diretamente) e não pode ser cumulada com ela. A restrição de direitos pode consistir em: a) prestação pecuniária; b) perda de bens e valores; c) limitação de fim de semana; d) prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas; e) interdição temporária de direitos; f) limitação de fim de semana.
A substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos se submete a determinados requisitos, estabelecidos no art. 44 do CP: a) a pena privativa não pode ser superior a quatro anos (a não ser em crimes culposos, em que a quantidade da pena é irrelevante); b) o crime não pode ter sido cometido com violência ou grave ameaça contra a pessoa; c) o réu não pode ser reincidente em crime doloso (a não ser que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime); d) a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias devem indicar a suficiência da substituição.
Outra medida que evita a privação de liberdade é a suspensão condicional da pena (sursis), instituto que susta, por um tempo certo (período de prova), a execução da pena, ficando o sentenciado em liberdade sob determinadas condições.
A suspensão condicional da pena é guiada por requisitos específicos elencados no art. 77 do CPOu em leis de caráter especial, como a Lei dos Crimes Ambientais, no art. 16: “Nos crimes previstos nesta Lei, a suspensão condicional da pena pode ser aplicada nos casos de condenação a pena privativa de liberdade não superior a três anos”.: a) a pena não pode ser superior a dois anos (sursis simples) ou a quatro anos (sursis etário ou humanitário – art. 77, § 2º, CP); b) o condenado não pode ser reincidente em crime doloso (a condenação anterior a pena de multa não obsta a suspensão); c) a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias devem autorizar a concessão do benefício; d) não seja indicada ou cabível a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
Como se trata de suspensão condicional da pena, é natural e obrigatório que, ao concedê-la, o juiz estabeleça as condições às quais deverá o condenado se submeter durante o período de prova.
Segundo o caput do art. 78 do CP, o condenado fica sujeito às condições estabelecidas pelo juiz, sendo que, no primeiro ano da suspensão, deve prestar serviços à comunidade ou submeter-se à limitação de fim de semana (§ 1º). Caso o condenado tenha reparado o dano (ressalvada a impossibilidade de fazê-lo) e as circunstâncias judiciais (art. 59 do CP) lhe sejam inteiramente favoráveis, o juiz pode substituir as mencionadas condições por proibição de frequentar determinados lugares, proibição de ausentar-se da comarca onde reside sem autorização do juiz e obrigação de comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades (§ 2º – sursis especial).
Como se pode notar, uma das condições para a suspensão condicional da pena é a prestação de serviços à comunidade, que também é elencada entre as penas restritivas de direitos e que pode ser aplicada nas condenações superiores a seis meses de privação de liberdade. O § 1º do art. 78 faz inclusive referência ao art. 46, que disciplina a prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas.
Diante disso, indaga-se: qual a natureza da prestação de serviços de que trata o art. 78? Deve ser encarada exclusivamente como condição do sursis ou carrega a característica da pena autônoma e substitutiva da privação de liberdade?
Trata-se, sem a menor dúvida, única e exclusivamente de condição para a suspensão da pena, que de nenhuma forma se pode confundir a pena restritiva de direitos de que trata o art. 46.
Não obstante, temos visto decisões em que a condição obrigatória da suspensão condicional da pena tem sido afastada porque a pena privativa de liberdade aplicada não supera os seis meses. Vejamos, a título de exemplo, os seguintes acórdãos do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça de São Paulo:
“2. Conforme a dicção do art. 79 do CP, na hipótese do sursis simples, admite-se que o Julgador estabeleça outras condições às quais a suspensão condicional da pena ficará subordinada, desde que adequadas ao caso concreto, além das legalmente previstas, quais sejam, prestação de serviços à comunidade e limitação de final de semana. 3. No caso, a pena corporal foi estabelecida em 3 meses de detenção, o que afasta a possibilidade de prestação de serviços à comunidade, pois tal medida somente é aplicável às condenações superiores a 6 meses, a teor do art. 46 do CP. 4. Malgrado não tenha ocorrido a aplicação cumulativa das condições correspondentes ao sursis simples e ao sursis especial, deve ser estabelecida como condição legal e obrigatória da benesse a limitação de final de semana (CP, art. 48), no primeiro ano do prazo, ficando mantido o comparecimento mensal em juízo e a proibição de se ausentar da comarca, por serem tais medidas adequadas ao fato concreto e à situação do réu, conforme o autorizado pelo art. 79 do CP. 5. Writ não conhecido. Habeas corpus concedido, de ofício, tão somente para substituir a condição legal correspondente à prestação de serviços à comunidade pela limitação de final de semana, ficando mantidas as demais condições do sursis estabelecidas na sentença condenatória.” (STJ: HC 440.286/RS, j. 12/06/2018)
“(…) Ocorre que a pena fixada é inferior a seis meses de detenção, o que não autoriza exigir do sentenciado o cumprimento da condição do § 1º do artigo 78 do Código Penal (prestação de serviços à comunidade), vez que o próprio texto legal condiciona essa concessão ao quanto previsto no artigo 46, de referido ordenamento, que por sua vez somente autoriza essa fixação quando a pena for superior a seis meses, vetando, portanto, sua aplicação a pena inferior a esse montante, como aqui verificado (…).” (TJSP: Apelação Criminal 0000816-32.2017.8.26.0213, j. 25/03/2019)
Esta solução, no entanto, é equivocada, pois confunde institutos, impõe ao sursis um requisito inexistente e acaba afastando uma de suas condições fundamentais.
Na redação dada ao art. 46 do CP pela Lei 7.209/84 (que reformulou toda a Parte Geral do Código Penal), não havia nenhuma menção à pena mínima aplicada para que o juiz pudesse promover a substituição. Tratava-se tão somente de definir que a pena consistia em “atribuição ao condenado de tarefas gratuitas junto a entidades assistências, hospitais, escolas, orfanatos e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais”. É a esta redação que se refere o art. 78, § 1º, do CP. O legislador de 1984 mencionou, nas condições do sursis, a prestação de serviços e, para não se repetir, remeteu-se a seu conceito (não a requisitos) no art. 46.
Em 1998, a Lei 9.714 promoveu relevantes mudanças no sistema das penas restritivas de direitos e, modificando a redação do art. 46, impôs o mínimo de seis meses de pena aplicada para que o juiz efetue a substituição. Segundo Guilherme de Souza NucciManual de Direito Penal. 6ª ed. São Paulo: RT, 2009, p. 352, “provavelmente para incentivar o magistrado a aplicar outras modalidades de restrição de direitos, como a prestação pecuniária ou a perda de bens e valores, bem como para facilitar a fiscalização e o cumprimento. Afinal, é dificultosa a mobilização para cumprir apenas um ou dois meses de prestação de serviços, escolhendo o local, intimando-se o condenado e obtendo-se resposta da entidade a tempo de, se for o caso, reconverter a pena em caso de desatendimento”.
Ora, esta justificativa não se aplica à prestação de serviços à comunidade imposta como condição do sursis, pois o serviço deve ser prestado durante todo o primeiro ano da suspensão, o que afasta qualquer inviabilidade que pudesse decorrer de um período de tempo mais curto.
Além disso, devemos nos atentar para o texto literal do art. 78, § 1º, do CP, segundo o qual deverá o condenado prestar serviços à comunidade ou submeter-se à limitação de fim de semana. Não se trata de opção, mas de imposição legal para que a pena seja suspensa. E esta imposição, como se extrai do próprio dispositivo citado, não contém em si mesma nenhuma condição relativa à quantidade da pena imposta. Por isso, a prestação de serviços à comunidade como condição do sursis deve ser imposta simplesmente em virtude da concessão da suspensão, ainda que a pena privativa de liberdade tenha sido fixada abaixo dos seis meses, pois as regras específicas das penas restritivas de direitos não se aplicam a esta situação.
Para espancar qualquer dúvida de que a prestação no sursis não é pena, mas condição, basta recordar que seu descumprimento acarreta a revogação do benefício, sem direito à detração na pena privativa do tempo de prestação cumprida.
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