A legitimidade para a celebração de acordos de colaboração premiada perpassa necessariamente pela premissa constitucional consistente na adoção do sistema acusatório de persecução criminal, nos termos do artigo 129, inciso I, da Constituição da República de 1988, de acordo com o qual compete ao Ministério Público “promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei” e dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, da publicidade dos atos processuais, da motivação das decisões etc.
O sistema acusatório remonta aos direitos grego e romano nos quais vigoravam as ações penais populares (exercidas por qualquer cidadão) e reaparece após o término da Idade Média[i] com novas feições, conferindo a titularidade da ação penal a um órgão estatal distinto do juiz, o Ministério Público. Atualmente, possui como principais características: a divisão entre as atividades estatais de acusar e julgar; a iniciativa probatória das partes; a posição do magistrado como terceiro imparcial na colheita da prova; o procedimento predominantemente oral e público; o contraditório e a coisa julgada. A análise probatória é fundamentada no livre convencimento motivado do órgão jurisdicional (persuasão racional).
Assim, o Ministério Público surgiu no período de transição entre os sistemas inquisitório (ou inquisitivo) – no qual as atividades de acusar e julgar se concentravam no juiz – e acusatório moderno ou contemporâneo, diante da necessidade de dividir a atividade estatal na persecução penal. Como naturalmente não existem duas partes[ii], diz-se que o Ministério Público é uma “parte fabricada”, garantindo-se a imparcialidade do magistrado[iii]. Destarte, no atual sistema acusatório público (moderno ou contemporâneo) “a imputação penal é feita por órgão distinto do juiz, em regra o Ministério Público, estabelecendo, assim, um actum trium personarum”[iv].
A opção político-criminal por um determinado modelo sistêmico de processo reflete na investigação preliminar[v], uma vez que embora se trate de etapas distintas da persecução criminal em ordenamentos jurídicos como o brasileiro, investigação e processo estão vinculados e são reciprocamente influenciados pelo sistema adotado em dado ordenamento jurídico.
Nesse panorama, observa-se que o Código de Processo Penal Brasileiro de 1941 optou pela investigação criminal a ser conduzida pela polícia, por meio do instrumento denominado de inquérito policial.[vi] Entretanto, a ordem jurídica brasileira evoluiu no sentido de conferir também ao Ministério Público atribuição concorrente para a condução de investigações de natureza criminal como decorrência lógica do sistema acusatório, conforme fixado em sede de repercussão geral no RE 59372737 pelo Supremo Tribunal Federal.[vii]
Registre-se que embora subsistam dispositivos legais de feição nitidamente inquisitorial e duvidosa constitucionalidade em nosso Código de Processo Penal[viii], são inconfundíveis os conceitos de participantes, partes e sujeitos na persecução criminal. Isto porque, “parte” é quem formula uma pretensão (parte ativa) e contra quem tal é formulada (parte passiva).[ix] Logo, não pode a autoridade policial, que não é parte no processo criminal (mas participante auxiliar da persecução criminal), transigir a respeito de cargas processuais e consequências de direito material que extrapolam a sua esfera de atribuições extraprocessuais.
Entretanto, no julgamento realizado nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5508, por maioria, o Supremo Tribunal Federal decidiu que autoridades policiais podem realizar acordos de colaboração premiada, ressalvando a negociação das prerrogativas próprias do Ministério Público.[x]
Em atenção à decisão da Suprema Corte e à sistemática da legislação vigente (em especial a Lei nº 12.850, de 2013[xi]), o Ministério Público do Estado de São Paulo[xii] editou 6 Enunciados com o propósito de conformar a celebração de acordos de colaboração premiada pela Polícia com a natureza do sistema acusatório constitucional. Confira-se:
ENUNCIADO N. 1. Apresentada proposta de acordo de colaboração premiada subscrita pelo Delegado de Polícia para homologação judicial, pode o Ministério Público, como titular da ação penal (art. 129, I, da CF), depois de ouvido o colaborador na presença de seu defensor: a) ratificar os termos do acordo, em especial quando dele participou desde a origem; b) substituir o acordo por outro; c) recusar o acordo, ressalvada a possiblidade de o juiz, dissentindo, remeter a questão ao Procurador-Geral de Justiça, aplicando, por analogia, o art. 28 do CPP; d) entendendo não existir justa causa para a ação penal, manifestar-se pela rejeição do acordo policial, promovendo o arquivamento da investigação; e) realizar ou requisitar diligências imprescindíveis à análise dos termos do acordo ou da formação da “opinio deliciti”.
ENUNCIADO N. 2. O acordo celebrado pela Autoridade Policial não deve impedir ou restringir, direta ou indiretamente, o direito de ação ou de punir do Estado, ficando vedada a concessão de imunidade processual, perdão judicial, substituição de pena, regime prisional diverso daquele ditado pelo art. 33 do CP ou efeitos de eventual condenação.
ENUNCIADO N. 3. Não havendo previsão legal do cabimento de recurso em sentido estrito, da decisão que homologa o acordo policial desafia recurso de apelação, com fundamento no art. 593, II, CPP; se proferida por Tribunal, agravo interno.
ENUNCIADO N. 4. A atribuição do Delegado de Polícia para firmar acordo se limita à fase de investigação, com a fiscalização do Ministério Público, sob pena de reclamação. Proposta a ação penal, a Autoridade Policial fica impedida de celebrar acordo de colaboração envolvendo fatos e pessoas constantes da denúncia-crime, sob pena de violação do art. 129, I, da CF.
ENUNCIADO N. 5. Acordo celebrado pela Autoridade Policial versando, direta ou indiretamente, sobre matérias extrapenais deve ser recusado pelo Ministério Público.
ENUNCIADO N. 6. Na hipótese de homologação judicial da colaboração premiada celebrada pela Autoridade Policial, cabe ao MP ou querelante, como titular da ação penal, após analisar a eficácia da colaboração com base nos resultados obtidos, requerer a concessão parcial ou integral dos benefícios previstos no acordo, ou deixar de requerer sua aplicação.
Os enunciados do “Parquet” paulista iluminam as consequências práticas da decisão proferida na ADI nº 5508, preservando as atribuições ministeriais e adequando a celebração dos acordos de colaboração premiada pela Polícia aos contornos de um sistema acusatório de persecução criminal, respeitando a interpretação firmada pelo intérprete final de nosso texto constitucional, o Supremo Tribunal Federal. Assim, constituem valiosa fonte para o aperfeiçoamento do instituto da colaboração premiada e, ademais, os procedimentos sugeridos conferem segurança jurídica aos eventuais colaboradores que negociarem diretamente com a Polícia Judiciária.
NOTAS:
[i] Movimentos políticos como a Revolução Francesa (1789) impulsionaram o desenvolvimento do sistema acusatório de persecução criminal.
[ii] Existem crimes que não possuem sequer vítimas determinadas: os chamados “crimes vagos”, isto é, aqueles cujo sujeito passivo é a coletividade, a exemplo do tipo penal previsto no artigo 209 do Código Penal.
[iii] “Com o fracasso da inquisição e a gradual adoção do modelo acusatório, o Estado seguia mantendo a titularidade absoluta do poder de penar e não podia abandonar em mãos de particulares esse poder e a função de persecução. Logo, era imprescindível dividir o processo e encomendar as atividades de acusar e julgar a órgãos e pessoas distintas. Nesse novo modelo, a acusação continua como monopólio estatal, mas realizada por um terceiro distinto do juiz. Aqui nasce o Ministério Público. Por isso, existe um nexo entre sistema inquisitivo e Ministério Público, como aponta Carnelutti, pois essa necessidade de dividir a atividade estatal exige, naturalmente, duas partes. Quando não existem, devem ser fabricadas, e o Ministério Público é uma parte fabricada” (JUNIOR, Aury Lopes. Fundamentos do Processo Penal, Introdução Crítica. São Paulo: Saraiva, 2018. Pág. 188).
[iv] RANGEL, Paulo. Investigação Criminal Direta pelo Ministério Público. Visão Crítica. 5ª Edição. São Paulo: Atlas, 2016. Pág. 150.
[v] Não se nega a autonomia da fase de investigação criminal, até mesmo porque os elementos de informação coletados extrajudicialmente podem ser arquivados sem o início de um processo penal. Todavia, investigação e processo convivem em um mesmo sistema constitucional de garantias, isto é, de respeito aos direitos fundamentais, embora se desenvolvam de maneira distinta: na investigação o contraditório é mitigado, enquanto durante o processo, sob o influxo da ampla defesa, materializa-se o contraditório em sua plenitude.
[vi] De acordo com a exposição de motivos do Código de Processo Penal de 1941:” IV – Foi mantido o inquérito policial como processo preliminar ou preparatório da ação penal, guardadas as suas características atuais. O ponderado exame da realidade brasileira, que não é apenas a dos centros urbanos, senão também a dos remotos distritos das comarcas do interior, desaconselha o repúdio do sistema vigente. O preconizado juízo de instrução, que importaria limitar a função da autoridade policial a prender criminosos, averiguar a materialidade dos crimes e indicar testemunhas, só é praticável sob a condição de que as distâncias dentro do seu território de jurisdição sejam fácil e rapidamente superáveis. Para atuar proficuamente em comarcas extensas, e posto que deva ser excluída a hipótese de criação de juizados de instrução em cada sede do distrito, seria preciso que o juiz instrutor possuísse o dom da ubiquidade. De outro modo, não se compreende como poderia presidir a todos os processos nos pontos diversos da sua zona de jurisdição, a grande distância uns dos outros e da sede da comarca, demandando, muitas vezes, com os morosos meios de condução ainda praticados na maior parte do nosso hinterland, vários dias de viagem, seria imprescindível, na prática, a quebra do sistema: nas capitais e nas sedes de comarca em geral, a imediata intervenção do juiz instrutor, ou a instrução única; nos distritos longínquos, a continuação do sistema atual. Não cabe, aqui, discutir as proclamadas vantagens do juízo de instrução.” Também a apuração de crimes militares é realizada por meio do Inquérito Policial Militar, conforme prevê o artigo 9º do Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.002, de 1969).
[vii] “O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição.”
[viii] Por exemplo: o artigo 5º, inciso II, que admite a requisição de instauração de inquérito policial pela autoridade judiciária; o artigo 13, inciso II, que admite que o juiz requisite diligências investigatórias em sede de inquérito policial; o artigo 241, que permite a realização de busca domiciliar pela autoridade judiciária; o artigo 311 que admite a decretação de prisão preventiva, de ofício, pelo magistrado etc. Além disso, a jurisprudência brasileira lamentavelmente vem admitindo até mesmo investigações conduzidas por autoridades judiciárias, a exemplo do chamado “Inquérito Criminal”, conduzido por Ministro Relator no âmbito do Supremo Tribunal Federal nos casos de investigados que possuem foro por prerrogativa de função naquela corte, “a crimes cometidos no exercício do cargo e em razão das funções a ele relacionadas” (Questão de Ordem na AP 937, Rel. Min. Luís Roberto Barroso). Desafortunadamente, o Código de Processo Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.002, de 1969), também possui resquícios do sistema inquisitivo “porquanto ao julgador, que deveria ser absolutamente inerte na adoção do sistema acusatório puro, são dados poderes de conduzir, sponte própria, os caminhos do processo, sem, todavia, alijar o princípio da ação e, em consequência, o sistema acusatório” (NEVES, Cícero Robson Coimbra. Manual de Direito Processual Penal Militar. 3ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2018. Pág. 171).
[ix] “[…] participante é uma denominação genérica e que se refere a qualquer pessoa que contribua para o desenvolvimento do processo penal. Mais restrito, sujeitos são aquelas pessoas essenciais para a sobrevivência do processo penal e sem as quais não existiria o processo; logo, refere-se aos sujeitos ativo e passivo e ao juiz. Todavia, mais restrito é o conceito de partes, pois está reservado a quem, no processo, formula perante outro uma pretensão acusatória (parte ativa) e contra quem é formulada essa pretensão (parte passiva). Logo, só podemos falar em partes na fase processual. Também a ideia de parte está relacionada a determinado status jurídico, que somente se atribui a determinadas pessoas que intervêm no processo, reconhecendo-se-lhes cargas e direitos de natureza processual”. LOPES JR, Aury e GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar no Processo Penal. 6ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2014. Págs. 418-419. Com efeito, as autoridades policiais civis e militares possuem importantes funções na investigação e repressão de crimes, todavia, suas atividades naturalmente se limitam a atribuições extraprocessuais, alheias ao curso do processo criminal em juízo. Isto porque, partes processuais são o Ministério Público (ou querelante nos crimes de ação penal privada) e o acusado (ou querelado).
[x] De acordo com o voto vencedor do Ministro Relator Marco Aurélio: “Sendo a investigação o principal alvo da polícia judiciária, ante a conformação constitucional conferida pelo artigo 144, meios previstos na legislação encontram-se inseridos nas prerrogativas da autoridade policial. Sendo a polícia a única instituição que tem como função principal o dever de investigar, surge paradoxal promover restrição das atribuições previstas em lei. Retirar a possibilidade de utilizar, de forma oportuna e célere, o meio de obtenção de prova denominado colaboração premiada é, na verdade, enfraquecer o sistema de persecução criminal, inobservando-se o princípio da vedação de proteção insuficiente. […] O momento no qual realizada é relevante para que seja estabelecida, nos ditames da lei e da Constituição, a autoridade com atribuições para firmar o acordo: durante as investigações compete à autoridade policial, em atividade concorrente e com supervisão do membro do Ministério Público; instaurada a ação penal, tem-se a exclusividade do Órgão acusador.”
[xi] Que trata da Colaboração Premiada nos artigos 4º, 5º, 6º e 7º, sendo uma verdadeira “norma geral” a respeito do instituto.
[xii] O Grupo de Trabalho do Ministério Público do Estado de São Paulo, instituído nos termos do ATO 43/2018-PGJ, foi composto pelos seguintes membros: Mário Luiz Sarrubbo; Marcio Sergio Christino; Adriana Ribeiro Soares de Morais; Alexandre Affonso Castilho; Alexandre Cebrian Araujo Reis; Amauri Silveira Filho; Arthur Pinto de Lemos Jr.; Cléber Rogério Masson; Daniel Zulian; Guilherme Sampaio Sevilha Martins; Letícia Rosa Ravacci; Leonardo Leonel Romanelli; Rafael Queiroz Piola; Roberto Victor Anelli Bodini; e Rogério Sanches Cunha.