Dentre os delitos tipificados na Lei 10.826/03, o art. 16 pune, no caput, as condutas de possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
O dispositivo contém um parágrafo com condutas equiparadas, mas que, na realidade, não têm – ou não precisam ter – direta relação com aquelas das quais derivam. São elas:
I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato;
II – modificar as características de arma de fogo, de forma a torná-la equivalente a arma de fogo de uso proibido ou restrito ou para fins de dificultar ou de qualquer modo induzir a erro autoridade policial, perito ou juiz;
III – possuir, detiver, fabricar ou empregar artefato explosivo ou incendiário, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;
IV – portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado;
V – vender, entregar ou fornecer, ainda que gratuitamente, arma de fogo, acessório, munição ou explosivo a criança ou adolescente;
VI – produzir, recarregar ou reciclar, sem autorização legal, ou adulterar, de qualquer forma, munição ou explosivo.
Pois bem, a Lei 13.497/17 alterou a Lei 8.072/90 para tornar hediondo o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito ou proibido. De acordo com a atual redação do art. 1º, parágrafo único, da Lei dos Crimes Hediondos:
“Consideram-se também hediondos o crime de genocídio previsto nos arts. 1o, 2o e 3o da Lei no 2.889, de 1o de outubro de 1956, e o de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto no art. 16 da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, todos tentados ou consumados”.
Diante da referência genérica ao art. 16, indaga-se: todas as formas nele tipificadas devem ser tratadas como hediondas, ou só a forma básica, tipificada no caput?
Se analisarmos as justificativas do projeto de lei, tanto no Senado quanto na Câmara dos Deputados, veremos que a intenção era punir com mais rigor a conduta tipificada no caput. Com efeito, as referências dos parlamentares que advogavam a aprovação do projeto eram todas à crescente violência ligada à posse e ao porte de armamentos por criminosos, que normalmente fazem uso de artefatos com grande poder de fogo, não raro maior do que os de que dispõem as forças policiais, razão pela qual o maior rigor na punição seria um esforço a ser somado no combate a prática tão nefasta. E se analisarmos as condutas tipificadas no parágrafo único do art. 16, veremos que algumas delas não estão necessariamente ligadas às circunstâncias descritas nas justificativas parlamentares, como ocorre, por exemplo, com os incisos I, IV, V e VI.
De fato, o maior perigo causado pela posse ou pelo porte de uma arma de uso restrito não tem nenhuma relação com o ato de suprimir marca, numeração ou sinal de identificação de arma de fogo, tanto que esta conduta pode ser cometida inclusive sobre armas de uso permitido. Exatamente o mesmo pode ser dito dos demais incisos citados, pois todas as condutas neles tipificadas podem se fundamentar tanto em armas de uso permitido quanto em armas de uso restrito.
Quando da entrada em vigor da lei vislumbramos o surgimento de discussão semelhante àquela travada, anos atrás, na doutrina e na jurisprudência a respeito dos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor. Na época – antes da Lei 12.015/09 –, a Lei dos Crimes Hediondos elencava essas duas figuras delituosas e fazia referência aos dispositivos legais da seguinte forma: “art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único”; “art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único”. Tratava-se, como se nota, de redação mais detalhada do que a referência feita agora ao art. 16 do Estatuto do Desarmamento, mas que não impediu o debate sobre se as formas básicas desses delitos deveriam ser também incluídas entre os crimes hediondos. Acabou por prevalecer a tese de que sim, a forma simples do estupro e do atendado violento ao pudor deveria ser considerada hedionda.
No caso da Lei 13.497/17 já havia mais motivos para o debate, justamente em virtude da referência genérica ao art. 16 do Estatuto do Desarmamento e à frágil relação lógica que se estabelece entre as figuras do caput e algumas das dispostas no parágrafo único.
Defendemos desde o início, todavia, não ser possível limitar a incidência das disposições relativas aos crimes hediondos apenas à conduta do caput do art. 16. O projeto da Lei 13.497/17 tramitou, entre o Senado e a Câmara, por mais de três anos, e foi objeto de extenso debate, tanto que foram diversas as modificações promovidas ao longo do caminho (originalmente, aliás, o projeto contemplava o comércio ilegal e o tráfico internacional de armas de fogo). Fosse para limitar a incidência do maior rigor ao caput, temos de supor que o legislador o teria feito expressamente.
Além disso, limitar a incidência da Lei dos Crimes Hediondos a uma parte do tipo penal criaria uma situação desproporcional.
Ora, ainda que se considere a natureza diversa de algumas das condutas tipificadas no parágrafo único, trata-se de figuras equiparadas ao caput por expressa disposição legal. Se, ao elaborar tipo do art. 16, o legislador utilizou a fórmula “nas mesmas penas incorre”, isso se deu porque as condutas ali elencadas eram consideradas da mesma gravidade das anteriores. É, afinal, o que fundamenta as formas equiparadas nos tipos penais. Ignorar isso e destacar, para os efeitos da hediondez, o caput do parágrafo único seria nada mais do que conferir tratamento diferenciado a figuras penais que o legislador erigiu à categoria de equivalentes.
Diante disso, entendemos que qualquer conduta do art. 16, caput e parágrafo único, da Lei 10.826/03 atrai os consectários relativos aos crimes hediondos. E em decisão monocrática proferida no HC 460.910/PR, o ministro Jorge Mussi, do STJ aderiu, à mesma orientação.
O habeas corpus foi impetrado porque, condenado pela prática de uma das figuras equiparadas do art. 16, o agente – reincidente – havia sido obrigado a cumprir três quintos da pena para a progressão de regime. A defesa interpôs agravo em execução alegando que o parágrafo único do art. 16 não estava inserido no âmbito de incidência da Lei 13.497/17. O Tribunal de Justiça, no entanto, confirmou a decisão do juízo da execução e foi corroborado pelo STJ:
“Na hipótese dos autos, o crime foi praticado após a edição da Lei n.º 13.497/2017 que não especificou que só o caput seria abrangido pela hediondez, daí o entendimento de que tal natureza se estende a todas as condutas narradas no art. 16. Ante o exposto à progressão de regime deve ser aplicada a fração de 3/5 (três quintos), porque hediondo o crime e reincidente o paciente.”