1) O expressivo valor do tributo sonegado pode ser considerado fundamento idôneo para amparar a majoração da pena prevista no inciso I do art. 12 da Lei n. 8.137/90.
Em seguida às figuras relativas aos crimes contra a ordem tributária e contra a economia e a as relações de consumo, a Lei 8.137/90 estabelece, em disposições gerais, causa de aumento de pena (1/3) se a conduta subsumida aos artigos 1°, 2°, 4° e 7° ocasionar grave dano à coletividade.
Com efeito, é possível que as condutas que caracterizam os crimes tributários, econômicos e contra as relações de consumo provoquem resultados que extrapolem a gravidade já considerada para a cominação da pena em abstrato. Se determinado comerciante, proprietário de um pequeno estabelecimento, expõe à venda vinte unidades de um produto impróprias para o consumo, pratica uma conduta grave apenada com detenção de dois a cinco anos. Se, no entanto, um atacadista expõe à venda vinte mil unidades impróprias para o consumo humano, o dano à coletividade é muito maior, razão por que se justifica o aumento da pena.
Dá-se o mesmo nos delitos de natureza tributária. Se a prestação de declaração falsa à autoridade fazendária permite que o agente suprima trinta mil reais em tributos, a conduta é grave, mas se insere nos desdobramentos ordinários de ações dessa natureza. Se, por outro lado, a conduta permite a supressão de cinquenta milhões de reais em tributos, potencializa-se o prejuízo à coletividade (ainda que, talvez, de forma menos visível do que a venda de produtos impróprios para o consumo), o que enseja, só pela expressão do valor, a possibilidade de majoração da pena em 1/3. É o que tem decidido o STJ:
“Este Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento no sentido de que o não recolhimento de expressiva quantia de tributo, como no caso concreto (aproximadamente R$ 2.000.000,00, excluídos juros e multa), atrai a incidência da causa de aumento prevista no art. 12, I, da Lei n. 8.137/1990, pois configura grave dano à coletividade, não sendo parâmetro a Portaria n. 320 de 2008 da PGFN. Precedentes. Súmula 83/STJ.” (AgRg no AREsp 1.268.981/SP, j. 17/05/2018)
Note-se que, no julgado, o tribunal faz menção à Portaria 320/08, da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, para negar que se trate de parâmetro para avaliar a expressividade do prejuízo causado pela sonegação tributária. Segundo a norma administrativa, são considerados grandes devedores aqueles inscritos em dívida ativa da União cujos débitos tenham, unitária ou agrupadamente, valor igual ou superior a dez milhões de reais. Há quem argumente que a sonegação inferior a este valor não pode ensejar o aumento do art. 12, inc. I, da Lei 8.137/90. O STJ, no entanto, não encampa a tese.
2) É possível que o magistrado, na sentença, proceda à emendatio libelli, majorando a pena em razão da causa de aumento prevista no art. 12, I, da Lei n. 8.137/90, quando houver na denúncia expressa indicação do montante do valor sonegado.
Em virtude do princípio da correlação ou da congruência da condenação com a imputação, não pode o juiz, de forma alguma, desvencilhar-se do fato trazido pelo autor na inicial, não devendo julgar, portanto, nem além, nem aquém e nem fora do que foi narrado pela acusação. De se ver, porém, que a correspondência que se exige é aquela existente entre o fato e a sentença, e não entre a capitulação dada pelo acusador e a decisão final do juiz. Em outras palavras: o julgador não está vinculado à classificação legal, sugerida pela denúncia ou queixa, podendo, em consequência, “atribuir-lhe [ao fato] definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave”, conforme expressamente previsto no art. 383 do CPP, que trata da emendatio libelli. Se o fato é perfeitamente narrado na denúncia, pode o juiz corrigir o libelo, isto é, a acusação, conferindo a capitulação legal que bem entender, sem que precise adotar nenhuma providência prévia, ainda que, em decorrência de tal alteração, tenha de ser aumentada a pena.
No caso da majorante do art. 12, inc. I, da Lei 8.137/90, o STJ firmou a tese de que o juiz pode aumentar a pena se a denúncia, embora sem mencionar expressamente o dispositivo legal nem argumentar que a conduta foi mais grave do que o ordinário em crimes semelhantes, trouxer expresso o montante do valor sonegado e este for significativo o bastante para justificar a exasperação da pena:
“Com a ressalva de meu entendimento pessoal, esta Corte firmou a compreensão de que, quando a denúncia aponta o valor sonegado que se mostra expressivo, independentemente de conter, na narração dos fatos, menção expressa a maior reprovabilidade da conduta, é possível que o magistrado, na sentença, proceda a emendatio libelli, majorando a pena em razão da causa de aumento prevista no art. 12, I, da Lei n. 8.137/1990.” (AgRg no HC 171.371/MG, j. 16/03/2017)
Note-se, portanto, que a tese vai além do que normalmente se admitiria para a emendatio libelli, pois permite a aplicação da majorante pela simples menção do valor do tributo sonegado, ainda que, na narração dos fatos, o Ministério Público não tenha feito destaque para o expressivo prejuízo à coletividade.
3) Nos crimes tributários, o montante do tributo sonegado, quando expressivo, é motivo idôneo para o aumento da pena-base, tendo em vista a valoração negativa das consequências do crime.
Na aplicação da pena, o juiz segue o critério trifásico, segundo o qual se aplica inicialmente a pena-base, em seguida são analisadas as circunstâncias agravantes e atenuantes e, por fim, incidem, se o caso, as causas de aumento e de diminuição da pena.
Na aplicação da pena-base, os parâmetros são estabelecidos pelas circunstâncias judiciais do art. 59 Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I - as penas aplicáveis dentre as cominadas; II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível. do CP, dentre as quais se inserem as consequências do crime. São os efeitos decorrentes da infração penal, seus resultados, particularmente para a vítima, para sua família ou para a coletividade, como nos crimes de natureza tributária.
Com base nestas circunstâncias, é possível, segundo o STJ, que o juiz exaspere a pena-base se a sonegação tributária atinge valores expressivos, que tornam a conduta mais grave (ainda que pouco mais) do que o normal:
“Na linha da jurisprudência desta Corte Superior, é admissível a valoração negativa das consequências do crime de sonegação fiscal quando expressivo o valor do crédito tributário suprimido ou reduzido na forma do art. 1º da Lei 8.137/1990. No caso, o montante sonegado atualizado até 8/7/2004 equivale a mais de quatrocentos mil reais, sendo inegável a expressividade econômica da lesão provocada pela conduta delitiva do réu.” (AgRg no REsp 1.640.455/SP, j. 22/05/2018)
Há quem argumente que se o montante do tributo sonegado for resultado de diversas condutas cometidas na forma continuada, o aumento da pena-base somado ao aumento relativo à continuidade caracteriza bis in idem. Considerando, no entanto, que o critério para a exasperação da pena-base é apenas a expressividade do valor e que a majorante da continuidade é lastreada tão somente no número de infrações, o STJ tem negado a ocorrência da dupla imputação indevida, como se extrai do mesmo julgado acima citado:
“O reconhecimento da continuidade delitiva não impede o incremento da reprimenda penal no primeiro estágio dosimétrico pela reprovação das consequências do crime. Há de se levar em consideração a evidente distinção dos critérios determinantes para ambas as medidas penais, pois enquanto uma está fundada apenas na repercussão econômica negativa do fato ilícito a outra incide sobre o aspecto quantitativo das ações delitivas reiteradamente praticadas.”
Note-se, por fim, que a expressividade do valor do tributo não pode sustentar, simultaneamente, o aumento da pena-base e a incidência da já mencionada majorante do art. 12, inc. I:
“Quanto ao grave dano à coletividade, importa consignar que este pode ser sopesado ou na primeira ou na terceira fase da dosimetria, ficando apenas vedado o bis in idem.” (AgRg no AREsp 1.194.509/MG, j. 08/02/2018)
4) Os delitos tipificados no art. 1º, I a IV, da Lei n. 8.137/90 são materiais, dependendo, para a sua consumação, da efetiva ocorrência do resultado.
O art. 1º da Lei 8.137/90 estabelece cinco formas por meio das quais pode o agente suprimir ou reduzir tributo ou contribuição social e qualquer acessório. Dentre elas, quatro são classificadas como crimes materiais:
I – omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II – fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;
III – falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV – elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato.
Quer isto dizer que a consumação pressupõe a ocorrência de resultado naturalístico, consistente na efetiva ocorrência de supressão ou redução de tributo que provoque danos ao erário. É esta a razão pela qual a súmula vinculante 24 (que comentaremos a seguir) estabelece a necessidade de constituição definitiva do crédito tributário para que se caracterize o crime baseado num dos quatro incisos acima transcritos:
“2. De acordo com a reiterada jurisprudência desta Corte e da Corte Suprema, o tipo descrito no art. 1.º, inciso II, da Lei n. 8.137/90 consubstancia crime material, isto é, sua consumação depende da ocorrência de resultado naturalístico, consistente em dano ao Erário. 3. Segundo o enunciado n. 24 da Súmula Vinculante, a consumação desta infração penal se dá apenas com a constituição definitiva do crédito tributário, quando então inicia-se o curso da prescrição, por força do art. 111, I, do Estatuto Repressivo. Antes da consumação do delito não há se falar em início, tampouco em suspensão do lapso prescricional.” (AgRg no AREsp 584.088/SP, j. 14/09/2017)
5) A constituição regular e definitiva do crédito tributário é suficiente à tipificação das condutas previstas no art. 1º, I a IV, da Lei n. 8.137/90, conforme a súmula vinculante n. 24/STF.
Nos crimes materiais contra a ordem tributária, questionava-se amplamente a possibilidade de ajuizamento da ação penal sem que o órgão fazendário pudesse exigir o tributo pela via da execução fiscal. Argumentava-se que se no âmbito fiscal não se havia esgotado o procedimento de cobrança do tributo, impedindo portanto que o Estado o exigisse (art. 151, III, do Código TributárioArt. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: (...) III - as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;) não seria possível utilizá-lo como fundamento da pretensão punitiva criminal. Além disso, lançar mão precocemente da via criminal significava ignorar a eficácia da fiscalização e da execução das dívidas tributárias pelos órgãos estatais, invertendo as prioridades de atuação entre o Direito Tributário e o Direito Penal.
Não bastasse isso, uma das vertentes que sustentavam a tese da impossibilidade de instauração da ação penal antes do esgotamento da via administrativa argumentava que, sem o pronunciamento formal de que o tributo era devido, não havia sequer a possibilidade de tipificação, pois o crime objeto do debate consistia em “suprimir ou reduzir” tributo ou contribuição social (art. 1º da Lei nº 8.137/90). Se não havia se estabelecido formalmente a existência do tributo suprimido ou reduzido, o tipo penal não poderia ser considerado perfeito.
Foram reiteradas as decisões do STF a respeito da impossibilidade de deflagrar a ação penal sem a constituição definitiva do tributo, até que o tribunal editou a súmula vinculante nº 24, segundo a qual “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”.
Portanto, uma vez definitivamente constituído o tributo, pode o Ministério Público ajuizar a ação penal. Basta, para isso, a prova da constituição definitiva, dispensando-se a juntada do procedimento administrativo-tributário para instruir o futuro processo-crime, pois particularidades envolvendo a constituição do tributo não devem ser discutidas na esfera criminal:
“2. Dessa forma, não há se falar em indispensabilidade da juntada do procedimento administrativo tributário. Com efeito, o procedimento administrativo tributário e a íntegra dos documentos tributários foram analisados em sede própria. Portanto, eventual irregularidade ou equívoco no procedimento tributário deveria ter sido impugnado na via própria, que não é a criminal. Nesse contexto, não se revela indispensável a juntada dos documentos tributários, mas apenas a comprovação da constituição definitiva do crédito tributário. Eventual desconstituição do que foi averiguado tributariamente não pode ser feito no juízo criminal, cabendo ao recorrente se valer dos meios próprios para tanto. 3. Em suma: a) para o início da ação penal, basta a prova da constituição definitiva do crédito tributário (SV 24), não sendo necessária a juntada integral do PAF correspondente; b) a validade do crédito fiscal deve ser examinada no Juízo cível, não cabendo à esfera penal qualquer tentativa de sua desconstituição. c) caso a defesa entenda que a documentação apresentada pelo Parquet é insuficiente e queira esmiuçar a dívida, pode apresentar cópia do referido PAF ou dizer de eventuais obstáculos administrativos; d) se houver qualquer obstáculo administrativo para o acesso ao procedimento administrativo fiscal respectivo, é evidente que a parte pode sugerir ao Juiz sua atuação até mesmo de ofício, desde que aponte qualquer prejuízo à defesa, que possa interferir na formação do livre convencimento do julgador. No ponto, a regra contida no art. 156 do CPP é de clareza solar.” (RHC 94.288/RJ, j. 22/05/2018)
6) É possível a aplicação da súmula vinculante n. 24/STF a fatos ocorridos antes da sua publicação por se tratar de consolidação da interpretação jurisprudencial e não de caso de retroatividade da lei penal mais gravosa.
Ao mesmo tempo em que impede a deflagração precipitada da ação penal, a súmula vinculante 24 tem um efeito negativo para os interesses daquele a quem se atribui a sonegação: se o crime não se tipifica até a constituição definitiva do tributo, também não corre a prescrição (se não há crime, não pode haver pretensão punitiva). Dessa forma, se alguém falsifica notas fiscais para reduzir o tributo a pagar, sua conduta pode ser ignorada por alguns anos até que a fiscalização tributária constate os indícios de sonegação. Em seguida, mais alguns anos podem se passar até que se finalize o procedimento tributário e se constitua definitivamente o tributo. Nesse ínterim, poderia ter ocorrido a prescrição.
Em razão disso, há quem argumente a impossibilidade de aplicar a súmula a fatos ocorridos antes de sua aprovação pelo Supremo Tribunal Federal, pois isso equivaleria à retroatividade maléfica da lei penal, absolutamente vedada. Ocorre que não se trata disso, pois a súmula apenas consolidou, com efeitos vinculantes, a orientação adotada havia alguns anos pelo Supremo. É que tem decidido o STJ:
“[…] Esta Quinta Turma, em diversos julgados, afastou a alegação de que o enunciado 24 da Súmula Vinculante só se aplicaria aos crimes cometidos após a sua vigência. Em verdade, não se trata de aplicação retroativa de norma penal mais gravosa, o que, como cediço, encontra óbice no texto constitucional, mas de consolidação de entendimento jurisprudencial, que conferiu a correta exegese a dispositivos legais vigentes na data dos fatos, sendo a sua observância cogente para todos os órgãos do Poder Judiciário, não havendo se falar em retroatividade ‘in malam partem'”. (RHC 83.753/SP, j. 15/05/2018)
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