Medida socioeducativa não é sanção penal e, por isso, admite a nova técnica de julgamento do art. 942, CPC/15Art. 942. Quando o resultado da apelação for não unânime, o julgamento terá prosseguimento em sessão a ser designada com a presença de outros julgadores, que serão convocados nos termos previamente definidos no regimento interno, em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial, assegurado às partes e a eventuais terceiros o direito de sustentar oralmente suas razões perante os novos julgadores., quando há voto vencido nos Tribunais.
Talvez por conta do senso comum que se forma no jurista há uma ideia, de certo modo reiterada, de que o ato infracional corresponderia aos crimes e, via de consequência, as medidas socioeducativas ostentariam a mesma natureza das penas. Não é verdade!
Concretamente, adolescente não pratica infração penal. Falta-lhe discernimento e, consequentemente, imputabilidade. No Brasil, a imputabilidade penal surge aos 18 anos de idade, o que se harmoniza com a maioria dos países ocidentais, tais como Alemanha, Itália, Espanha, Grécia, Croácia, República Tcheca, além de nossos vizinhos Argentina, Uruguai, Peru, Chile e Paraguai.
Entre os 12 e os 18 anos de idade, porém, é possível a prática de atos infracionais, que correspondem, nos termos do ECA, àquilo que caracterizaria crime ou contravenção penal (art. 103 Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal. ).
Apesar da aparente similitude, porém, ato infracional não é crime! E, exatamente por isso, aos adolescentes infratores não se aplica sanção penal. Equivale a dizer: não há pena por não se tratar de ilícito penal, cabendo uma medida socioeducativa (que estão listadas no art. 112 do ECA Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV - liberdade assistida; V - inserção em regime de semi-liberdade; VI - internação em estabelecimento educacional; VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.), ancorada nos princípios da proteção integral e prioridade absoluta, de envergadura constitucional (art. 227Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. ), com expressa repetição valorativa no Estatuto (arts. 1º Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. e 4º Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.).
Sei que é muito difícil para alguns juristas (até por conta de uma formação mais dogmática, menos filosófica), mas é necessário estabelecer uma premissa metodológica para a compreensão e tratamento dos atos infracionais: a sua gênese NÃO é de sanção, mas de educação pessoal e social, com vistas a salvaguardar o futuro daquele adolescente infrator. É um compromisso em propiciar melhores condições para a sua dignidade pessoal e, por vias oblíquas, da sociedade como um todo.
Até mesmo porque, conforme a sensível reflexão de GOETHE, “só é possível ensinar a uma criança a amar, amando-a”.
Ora, fixada essa especial e peculiar natureza da medida socioeducativa (que não é punição, insista-se à exaustão), nota-se que ela é aplicada EM FAVOR do adolescente infrator, e não em seu desfavor. Por isso, inclusive, devem ser consideradas circunstâncias personalíssimas na análise da medida mais adequada. Nessa esteira, emana da jurisprudência superior a assertiva de que a finalidade principal da medida “é educar (ou reeducar), não deixando de proteger a formação moral e intelectual do jovem” (STJ, HC 347.434/SP, rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro).
Há um belo trecho de uma música de GONZAGUINHA, percebendo que “ontem o menino que brincava me falou que hoje é semente do amanhã”, registrando uma mensagem que não pode ser esquecida nos estudos da matéria.
Bem por isso, inclusive, a superveniência da maioridade não obsta a apuração do ato infracional e a eventual aplicação da medida que se mostrar adequada, como reza a Súmula 605 do STJ (A superveniência da maioridade penal não interfere na apuração de ato infracional nem na aplicabilidade de medida socioeducativa em curso, inclusive na liberdade assistida, enquanto não atingida a idade de 21 anos), lastreada, a toda evidência, nessa compreensão de que o ato infracional não tem feição punitiva.
Nessa ordem de ideias, vislumbra-se o argumento suficiente para dirimir uma curiosa controvérsia: aplica-se, no julgamento de um recurso interposto pelo adolescente infrator contra a decisão que lhe aplicou uma medida socioeducativa, a técnica inovadora do art. 942 do CPC, que prevê a complementação do julgamento não unânime? Isto é, se um órgão fracionário delibera pela não aplicação de medida socioeducativa (note-se que não se trata de absolvição porque ele não seria condenado) de forma não unânime, aplicar-se-ia a técnica de convocação de outros julgadores para a complementação do julgamento, podendo alterar a decisão e assim aplicar alguma medida?
A resposta é sim!
O art. 198Art. 198. Nos procedimentos afetos à Justiça da Infância e da Juventude, inclusive os relativos à execução das medidas socioeducativas, adotar-se-á o sistema recursal da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil), com as seguintes adaptações (...) do ECA é de clareza solar ao determinar a aplicação do sistema recursal do CPC, e não do CPP (no que andou bem). Dessa maneira, a nova técnica de julgamento – que substituiu os extintos embargos infringentes, nos julgamentos por maioria de votos – há de ser aplicada, inclusive nas ações socioeducativas, podendo perfeitamente gerar alteração de julgamento, no sentido de se aplicar, ou não, medidas socioeducativas.
Não é despiciendo observar que a aludida técnica se mostra mais célere e eficaz do que o antigo procedimento dos infringentes, dispensando razões e contrarrazões, bem como o processamento do recurso. Faculta-se, no entanto, aos advogados e ao Ministério Público sustentar seus argumentos perante a nova composição do órgão julgador, efetivando a dialética e a comparticipação no processo civil. No ponto, à luz do comando do art. 198 do Estatuto, seria possível dizer, como na transmissão do futebol da Rede Globo, “a regra é clara”!
Demais de tudo isso, não se olvide, uma vez mais, que a natureza da medida socioeducativa não é sancionatória, razão pela qual é descabida a alegação da proibição de eventual “reformatio in pejus”. Com efeito, se o novo colegiado deliberar, diferentemente do julgamento anterior não unânime, pela aplicação de alguma medida não estará agravando, piorando, a situação do adolescente, por não se tratar de punição, mas por se compreender necessária a sua adequação comportamental.
Este entendimento foi, recentemente, consagrado pelo STJ (REsp 1.694.248/RJ, DJe 03/05/2018, informativo 626, AgRegREsp. 1.673.215/RJ, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 30.5.2018), permitindo antever a correta orientação que deve imperar sobre o tema, inspirando as instâncias inferiores, em respeito à teoria dos precedentes.
É um bom momento para o jurista se permitir antever a verdadeira natureza da medida socioeducativa, tirando de si a falsa correlação implicacional com as sanções penais. É preciso boa vontade e querer enxergar para além de si mesmo. Ou, como diz uma bela música dos Los Hermanos, “é preciso força pra sonhar e perceber que a estrada vai além do que se vê” (CAMELO, Marcelo, Além do que se vê).