Informativo: 623 do STJ – Processo Penal
Resumo: Na primeira fase do Tribunal do Júri, ao juiz togado cabe apreciar a existência de dolo eventual ou culpa consciente do condutor do veículo que, após a ingestão de bebida alcoólica, ocasiona acidente de trânsito com resultado morte.
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Encerrada a primeira fase do procedimento do júri, denominada instrução preliminar, caso o juiz se veja convencido da materialidade do crime e da existência de indícios de autoria, deve pronunciar o réu, conforme prescrito no art. 413 do CPP. A sentença de pronúncia, portanto, é cabível sempre que o juiz reconhecer a existência do crime e indícios de quem seja seu autor, quando então remeterá o acusado para julgamento pelo júri.
Nesta altura, cabe ao juiz singular analisar se os elementos produzidos durante a primeira fase do procedimento são suficientes para demonstrar que o crime de fato ocorreu (prova da materialidade) e que o acusado pode ser seu autor (indícios de autoria).
Além disso, cabe ao juiz analisar se os termos da imputação são minimamente adequados aos fatos submetidos a julgamento. É tese do STJ, por exemplo, que qualificadora manifestamente improcedente e descabida pode ser excepcionalmente excluída pelo juiz na pronúncia (imaginemos a situação em que se imputa o emprego de veneno que, durante a instrução preliminar, comprovou-se não ter sido utilizado).
Na mesma esteira, é possível ao juiz singular avaliar se a imputação de dolo eventual tem mínima correspondência fática. É comum, em crimes de homicídio praticados por motoristas embriagados, a imputação de dolo eventual em virtude da embriaguez. Mesmo com a recente entrada em vigor da Lei 13.546/17 – que, por qualificar o homicídio culposo pela embriaguez, impede a imputação automática do homicídio doloso –, não se afasta a possibilidade de que, no caso concreto, haja elementos suficientes indicando que o condutor se embriagou e, ao tomar a direção do veículo e conduzi-lo de determinada forma, assumiu o risco de matar alguém.
Caso o Ministério Público atribua ao motorista conduta permeada pela assunção do risco, o juiz singular pode se convencer do contrário e desclassificar a imputação para o homicídio culposo. É fato que a possibilidade de que tenha ocorrido uma morte proposital – ainda que não visada diretamente – faz com que se prefira a análise dos jurados, mas se a atribuição da conduta dolosa é manifestamente improcedente, desacompanhada de referências fáticas, nada impede que o juiz o constate e ajuste a imputação, como decidiu o STJ no REsp 1.689.173/SC (DJe 26/03/2018).
Para o tribunal, a avaliação do aspecto anímico quando se confrontam o dolo eventual e a culpa consciente é complexa até mesmo para quem tem preparo técnico baseado em séculos de estudos da dogmática penal. Logo, com muito mais razão é um obstáculo praticamente intransponível para juízes leigos, que, ademais, sequer precisam justificar suas conclusões. O Código de Processo Penal estabelece duas fases para o procedimento do júri justamente para que o juiz togado possa analisar, por meio de critérios técnicos, se a imputação tem mínimo suporte, razão pela qual não se pode atribuir toda e qualquer análise ao Conselho de Sentença sob o argumento de que, na fase da pronúncia, a dúvida favorece a sociedade:
“Note-se que a primeira etapa do procedimento bifásico do Tribunal do Júri tem o objetivo principal de avaliar a suficiência ou não de razões (justa causa) para levar o acusado ao seu juízo natural. O juízo da acusação (iudicium accusationis) funciona como um filtro pelo qual somente passam as acusações fundadas, viáveis, plausíveis e idôneas a serem objeto de decisão pelo juízo da causa (iudicium causae). Deste modo, não é consentâneo, aos objetivos a que representa na dinâmica do procedimento bifásico do Tribunal do Júri, a decisão de pronúncia relegar a juízes leigos, com a cômoda invocação da questionável regra do in dubio pro societate, a tarefa de decidir sobre a ocorrência de um estado anímico cuja verificação demanda complexo e técnico exame de conceitos jurídico-penais”.
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