No dia 29 de setembro do ano em curso, conforme amplamente noticiado pela imprensa, o ex-médico Roger Abdelmassih voltou a se ver livre das grades, desta feita por decisão liminar do ministro Ricardo Lewandowiski, do STF (HC 148314/SP).
Poucos meses antes, por outros motivos, o STJ (HC 405735/SP) já havia afastado a prisão (de verdade) desse criminoso e restituído a ele a prisão domiciliar, ao argumento de que o mandado de segurança não pode ser utilizado para conferir efeito suspensivo a recurso que não o tenha (notaNum brevíssimo histórico para rememorarmos o caso, lembramos que o juízo de primeiro grau de Taubaté/SP havia concedido prisão domiciliar a Roger. Contra essa decisão, o Ministério Público apresentou o recurso cabível (agravo em execução) e, simultaneamente, impetrou mandado de segurança, postulando ao Tribunal de Justiça decisão liminar que deferisse efeito suspensivo ao mencionado recurso. A decisão liminar foi concedida, mas, na sequência, foi cassada pelo STJ.) – assunto sobre o qual se pretende provocar o debate.
Juízes – porque são humanos – erram, assim como erram os promotores de Justiça, os advogados, os delegados de polícia e os demais profissionais do Direito ou de quaisquer outras áreas. Criminosos – porque são criminosos – matam, estupram, ameaçam vítimas, coagem testemunhas, adulteram provas, fogem.
Errar – sabe-se de há muito – é humano e é inevitável, em maior ou menor intensidade, independentemente da capacidade intelectual e da seriedade da pessoa que esteja a realizar um ato qualquer. Que atire a primeira pedra quem nunca falhou.
Por outro lado, matar, corromper, traficar, fugir também são práticas comuns de boa parte dos delinquentes.
Sendo o erro algo inexorável, o mundo jurídico prevê mecanismos de revisão das falhas contidas nas decisões judiciais, por meio de recursos ou outros meios de impugnação, como o habeas corpus e o mandado de segurança. Se o defeito versar sobre matéria urgente, que gere algum tipo de risco iminente, indispensável que o instrumento de revisão admita uma análise igualmente célere.
Pois bem. A mencionada decisão do STJQue observa a jurisprudência consolidada da corte. traz à tona uma velha questão: como corrigir, com urgência, um provimento judicial que seja errado para menos?
Explica-se.
Se o juiz errar para mais, vale dizer, se, por exemplo, mandar prender alguém que não devesse ser encarcerado, o erro facilmente poderá ser submetido a uma análise superior em poucas horas ou, na pior das hipóteses, em poucos dias, por meio de um habeas corpus, que admite, inclusive, decisão em sede liminar. Esse instrumento, apelidado no juridiquês de remédio heroico, é adequado e suficiente para a reanálise do caso com a brevidade que a situação exige – afinal de contas, alguém pode estar preso sem merecer.
Agora, e se o juiz errar para menos? E se o magistrado, por erro, mandar soltar um assassino perigoso que tem grandes chances de voltar a matar? Ou um agente público corrupto que pretende destruir provas? E se juíza que soltou Abdelmassih tiver errado (mérito em relação ao qual este artigo não pretende ingressar)? Quid juris?
Ora, a resposta é simples. Nessas hipóteses, bastaria que o promotor de Justiça, acaso discordasse da decisão judicial, manejasse o recurso adequado, como de sentido estrito ou o agravo em execução, a depender da fase processual. Em poucos meses, talvez uma dúzia deles, a instância superior corrigirá a mácula – da qual ninguém está livre, reiteramos!
E o que fazer se o indivíduo solto por erro for perigoso, se a necessidade de sua prisão for urgente? De acordo com o STJ, o conhecido Tribunal da Cidadania, resta ao Ministério Público sentar e chorar enquanto aguarda o passar dos meses ou dos anos até que o seu recurso seja julgado, pois não existe instrumento que preveja, de maneira expressa, a possibilidade de rapidamente mandar alguém de volta para a cadeia.
À população convém que se tranque em casa, que não vá a consultórios médicos de fertilização e que não se coloque em quaisquer outras situações de risco, pois o delinquente pernicioso está à solta e, caso efetivamente mereça ser preso, isso demorará bastante a ocorrer.
Embora nosso ordenamento jurídico não cuide – literalmente – de qualquer mecanismo para fazer prender com rapidez alguém que tenha sido solto de maneira inadequada, a recíproca, todos sabem, não é verdadeira. É da cultura legislativa brasileira haver pressa apenas para soltar bandidos, para esvaziar as cadeias, mas nunca o contrário, jamais para proteger os indivíduos de bem, honestos e trabalhadores, que não aguentam mais o nível de criminalidade a que se chegou.
Apegado a literalidades, olvida-se o STJ, no entanto, que a Constituição Federal, nossa Lei Maior, assegura os direitos fundamentais à vida, à segurança e ao patrimônio. Prevê, também, que um dos fundamentos desta República Federativa é a dignidade da pessoa humana. Ainda afirma, expressamente, que entre os objetivos fundamentais do País se inserem a construção de uma sociedade justa e solidária, que promova o bem de todos. Esquece-se, além disso, ser lição comezinha de Direito que todo magistrado pode e deve exercer seu poder geral de cautela, assim como lhe cabe colmatar as lacunas legislativas e integrar a norma jurídica. Tudo isso somado leva à inafastável conclusão de que o Direito é formado não apenas pelo que se lê nas palavras dos textos legais, mas também e principalmente pelo que se extrai de sua análise ampla, conglobada.
É nesse contexto que, à mingua de outro meio de impugnação específico para essa finalidade – o que, de lege ferenda, seria conveniente para evitar discussões – se sustenta a admissibilidade do mandado se segurança, com possível liminar, não apenas para se conceder efeito suspensivo a recurso desprovido dessa característica, mas para efetivamente fazer valer o direito líquido e certo, passível de comprovação de plano, de ver encaminhado ao ergástulo o indivíduo que ofereça risco à ordem pública, à instrução processual ou à aplicação da lei penal (notaE também para o cumprimento de pena imposta em definitivo.), sublimando-se, assim, com a urgência que o caso demanda, os direitos fundamentais dos cidadãos.
Com efeito, não há dúvida que a decisão do mandado de segurança estará gravada com a cláusula rebus sic stantibus, ou seja, reconhecerá o direito líquido e certo da sociedade de ver detido o indivíduo naquela ocasião, sob aquelas circunstâncias, sem prejuízo de posterior modificação. Inexiste óbice para tanto, senão a própria jurisprudência do STJ, que, com o devido respeito, no ponto, é equivocada e obsoleta, estando a merecer imediata evolução.
O mandado de segurança, assim como o habeas corpus, pode ser julgado com extrema rapidez, protegendo o direito em risco, de onde vem sua importância. Por óbvio, a par do mandado de segurança, caberá ao Ministério Público comprovar haver interposto também, prévia ou simultaneamente, o recurso legal pertinente, em cujo julgamento poderá ser mantida ou reformada a decisão tomada pela via rápida. Esta decisão tem finalidade meramente cautelar, fundada na plausibilidade jurídica do pedido e no risco de dano efetivo até o julgamento do mérito do recurso.
Aliás, não custa lembrar que impetração de mandado de segurança contra ato judicial é, de longa data, admitida pela jurisprudência, estando, inclusive, expressamente consagrada em sua atual lei de regênciaLei n. 12.016/09, artigo 5.º, inciso II., que, a contrario sensu, destaca o cabimento dessa ação constitucional contra decisão judicial da qual não caiba recurso com efeito suspensivo. Ademais, também parece induvidoso ser ilegal o ato (judicial) que, presente hipótese de encarceramento, deixa de decretar ou revoga ordem prisão.
É nítida a mens legis: que o mandado de segurança seja utilizado como instrumento hábil a evitar um dano irreparável. Nas palavras precisas e sempre atuais de Carlos MaximilianoHermenêutica e aplicação do Direito. 18 ed. Forense, pp. 118/119. : “deve o Direito ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis.”
Não exsurge, do que se propõe, qualquer restrição a direitos do réu, tampouco ofensa ao devido processo legal. Ao contrário, busca-se a paridade de armas entre a acusação e a defesa, entre a sociedade em perigo e o bandido perigoso. Apenas isso…
A canção de Toquinho (Errar é humano) nos faz lembrar que “Não, não é vergonha, não. Todos sempre têm algum defeito, não existe a perfeição.” Vergonha, segundo nos parece, é se apegar a literalidades inócuas, a exegeses bitoladas, e não dar ao arcabouço legislativo a interpretação constitucional que merece e que protege o povo.