Dias atrás, na cidade de São Paulo, uma mulher se encontrava num ônibus quando foi surpreendida pela conduta de um homem que, masturbando-se, ejaculou em seu pescoço. O agente foi preso em flagrante pela prática do crime de estupro porque, segundo a avaliação inicial da autoridade policial, havia constrangido a vítima a permitir que com ela se praticasse ato libidinoso diverso da conjunção carnal.
Houve grande repercussão, especialmente porque o agente foi posto em liberdade logo em seguida sob o argumento de que não se tratava de estupro, mas de importunação ofensiva ao pudor (art. 61 do Decreto-lei nº 3.688/41), infração penal que não autoriza, isoladamente, a decretação da prisão preventiva (art. 313 do CPP).
A decisão tem gerado intenso debate sobre a correta tipificação da conduta praticada, ou seja, se efetivamente se trata de infração de menor potencial ofensivo ou se houve crime hediondo de estupro.
Vou dar minha opinião. Não me digam, ao final, se a igual conclusão eu chegaria caso a vítima fosse a minha filha. Se fosse a minha filha, talvez o título deste artigo seria a revisão da pena de morte; também não me peçam para eu me colocar na “pele” do pai do infrator. Se fosse meu filho, iria discorrer sobre o perdão. Procurarei, portanto, ser técnico, sem paixões nos comentários, sabendo que, mesmo assim, não irei agradar a todos (e sequer teria essa pretensão numa ciência do DEVER SER).
1) A definição de ato libidinoso
A doutrina, de modo geral, define o ato libidinoso como aquele de cunho erótico praticado para a satisfação da lascívia. Ensina MirabeteManual de Direito Penal – Parte Especial. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, vol. 2, p. 413, citando Fragoso e Hungria: “Define Fragoso o ato libidinoso como ‘toda ação atentatória ao pudor, praticada com proposito lascivo ou luxurioso’. Trata-se, portanto, de ato lascivo, voluptuoso, dissoluto, destinado ao desafogo da concupiscência. Alguns são equivalentes ou sucedâneos da conjunção carnal (coito anal, coito oral, coito inter-femora, cunnilingue, anilingue, hetero-masturbação). Outros, não o sendo, contrastam violentamente com a moralidade sexual, tendo por fim a lascívia, a satisfação da libido. Estão incluídos os atos homossexuais como os de uranismo, pederastia, lesbianismo, tribadismo ou safismo. É considerado ato libidinoso o beijo aplicado de modo lascivo ou com fim erótico (RT 534/404). Afirma Hungria que ‘o ato libidinoso tem de ser praticado pela, com ou sobre a vítima coagida’. Isso não quer dizer, porém, que seja indispensável o contato físico, corporal, entre o agente e a ofendida”.
Não há dúvida, portanto, de que houve ato libidinoso. O ato de masturbação não tem outra finalidade senão a satisfação da própria lascívia por meio da autocontemplação. E, no caso, tinha como evidente objeto a vítima. A ejaculação em direção à vítima deixa claro que ela era o elemento por meio do qual o agente buscava satisfazer um desejo libidinoso.
2) Possibilidades para a tipificação penal
Consideraremos quatro possibilidades de subsunção da conduta aqui analisada: estupro (art. 213 do CPArt. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.), violação sexual mediante fraude (art. 215 do CPArt. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.), estupro de vulnerável (art. 217-A do CPArt. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. ) e importunação ofensiva ao pudor (art. 61 do Decreto-lei nº 3.688/41Art. 61. Importunar alguem, em lugar público ou acessivel ao público, de modo ofensivo ao pudor: Pena – multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.). Note-se: mesmo que determinados elementos desses crimes/contravenção não tenham sido direta ou explicitamente relatados no caso ocorrido, considerá-los, mesmo por hipótese, será de grande valia para compreendermos a gama de possibilidades que situações desse tipo podem abarcar.
2.1) Estupro
Consiste o crime de estupro em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Pune-se, como se nota, o ato de libidinagem violento, coagido, obrigado, forçado, por meio do qual se visa a constranger a vítima à conjunção carnal (relação sexual normal entre sexos opostos) ou a praticar ou a permitir que com ela se pratique outro ato libidinoso.
Não nos parece ter sido o caso, pois não houve relato de violência ou grave ameaça exercida pelo agente contra a vítima, que, aparentemente, sequer havia percebido o ato de masturbação. Mas, ainda que ela tivesse percebido o ato e se sentisse abalada, incapaz de reagir e de se voltar contra o agente, isso não seria suficiente para caracterizar o estupro, que pressupõe grave ameaça efetivamente empregada pelo estuprador. A conduta dele determinaria a ocorrência do crime (uma ameaça direta; um gesto ameaçador, etc.), não o estado de perplexidade de quem presenciava o ato de masturbação.
Uma das críticas sobre a decisão que, mesmo em caráter incipiente, desconsiderou a ocorrência de estupro por ausência de ato violento se fundamentou no fato de que a conduta de se masturbar contemplando uma mulher, e surpreendê-la com a ejaculação, traz ínsita a violência porque despreza os princípios mais básicos da dignidade humana e não passa de verdadeiro constrangimento de alguém à satisfação dos desejos sexuais do agente.
Bem, isso até pode ser verdadeiro, mas a palavra violência tem aí um sentido claramente metonímico, destacado do sentido semântico corrente. Não se trata, obviamente, da violência a que se refere o tipo do art. 213, que consiste no emprego de força física suficientemente capaz de impedir a reação da vítima. A violência de que trata o tipo é um instrumento de coação física para a realização do ato sexual, não algo inerente às intenções do agente. O fato de alguém ver outra pessoa como um mero objeto de contemplação sexual, sem o mínimo respeito à sua dignidade, pode ser tido como uma violência no sentido de ser um ato desrespeitoso, desumano, desprovido do mínimo sentido moral, mas não pode ser tomado na significação específica que lhe confere a lei penal relativa ao estupro.
Outra crítica à decisão decorreu do fato de o juiz ter negado a existência de constrangimento. Inúmeras vozes se levantaram contra essa afirmação argumentando que a conduta do agente havia submetido a vítima a evidente embaraço. E, de fato, ejacular sobre alguém em pleno transporte público é uma situação moralmente desconfortável que submete a pessoa atingida a um evidente vexame.
Houve, no entanto, mais uma confusão semântica. Ora, é evidente que o juiz utilizou a palavra constrangimento no sentido próprio que lhe confere o tipo do estupro, que é o de obrigar alguém à prática de ato de libidinagem, não no sentido usual, de mal-estar, de situação embaraçosa. Do contrário, sequer faria sentido a referência, feita pelo próprio juiz, à importunação ofensiva ao pudor, que simplesmente não pode existir sem algum constrangimento (aqui tomado na segunda acepção).
Dessa forma, somente poderíamos considerar a ocorrência do crime de estupro se o agente houvesse empregado violência – efetiva força física para impedir a reação – ou grave ameaça – promessa de um mal grave, como matar ou ferir – para se masturbar contemplando a vítima e a constranger a permitir que nela ejaculasse.
2.2) Violação sexual mediante fraude
O tipo do art. 215 do CP pune as condutas de ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima.
Trata-se do estelionato sexual, comportamento caracterizado quando o agente, sem emprego de qualquer espécie de violência ou ameaça, pratica com a vítima ato de libidinagem lançando mão de meios fraudulentos que impeçam a livre manifestação de vontade (não se trata de anulação da vontade, situação em que se caracteriza o estupro de vulnerável).
Não nos parece ser o caso também, pois o tipo faz referência à prática de ato de libidinagem com alguém, o que pressupõe uma interação entre o autor e a vítima, interação por meio da qual há indução ao erro. Mediante determinado estratagema, o agente vicia a vontade da vítima, que concorda com a prática de um ato sexual que, não fosse a conduta ardilosa, provavelmente não ocorreria. Daí porque, aliás, o crime é denominado estelionato sexual. Um dos exemplos, citado por Damásio de Jesus, é o caso do homem que entra no quarto escuro de uma mulher casada, e, simulando ser seu marido, com ela mantém relação sexual.
Não foi o que ocorreu em São Paulo, pois o agente e a vítima não tiveram nenhum contato antes do fato, razão por que nem mesmo poderia ter havido indução ao erro.
2.3) Estupro de vulnerável
Há estupro de vulnerável, segundo o art. 217-A, § 1º, do CP§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. , nas condutas de ter conjunção carnal ou de praticar outro ato libidinoso com alguém que, por qualquer causa, não pode oferecer resistência.
Podemos citar como exemplos as situações da pessoa que, embora não padeça de nenhuma anomalia mental, embriaga-se até a inconsciência, e, inerte, é submetida ao ato sexual sem que possa resistir; ou da pessoa que é induzida, por meio de drogas, à inconsciência por alguém que tem o propósito de com ela manter relação sexual não consentida.
No caso ocorrido em São Paulo, há relatos de que a vítima estava dormindo, o que a teria impossibilitado de perceber o ato de masturbação e de evitar que o agente ejaculasse em seu pescoço. Seria esse um caso de vulnerabilidade momentânea capaz de fazer a conduta se subsumir ao tipo do estupro de vulnerável?
A nosso ver, não.
De acordo com o que a Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal estabelecia, no item 70, a respeito da agora inexistente presunção de violência, “se a incapacidade de consentimento faz presumir a violência, com maioria de razão deve ter o mesmo efeito o estado de inconsciência da vítima ou sua incapacidade de resistência, seja esta resultante de causas mórbidas (enfermidade, grande debilidade orgânica, paralisia etc.), ou de especiais condições físicas (como quando o sujeito passivo é um indefeso aleijado, ou se encontra acidentalmente tolhido de movimentos)”.
Vemos que a intenção era a de garantir a punição de agentes que se aproveitassem de uma condição física não passageira, que impossibilitasse o consentimento, para praticar com alguém atos de libidinagem.
Não é outra conclusão que se extrai, por exemplo, da lição de Rogério Greco Curso de Direito Penal – Parte Especial. 11ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2014, vol. III, p. 545:
“Vale recordar algumas situações em que uma pessoa, em estado de coma, engravidou, supostamente, de um enfermeiro encarregado de prestar os cuidados necessários à manutenção de sua vida vegetativa; ou ainda daquele cirurgião plástico que, depois de anestesiar suas pacientes, fazendo-as dormir, matinha com elas conjunção carnal; ou daquele terapeuta que abusava sexualmente de crianças e adolescentes depois de ministrar-lhes algum sedativo.
(…)
Poderão ser reconhecidas, também, como situações em que ocorre a impossibilidade de resistência por parte da vítima, os casos em embriaguez letárgica, o sono profundo, a hipnose, a idade avançada, a sua impossibilidade, temporária ou definitiva, de resistir, a exemplo daqueles que se encontram tetraplégicos, etc.”.
A vulnerabilidade de que cuida o tipo penal é aquela de caráter duradouro ou ao menos extensa o bastante para tornar impossível a resistência. Um sono leve, ou mesmo a distração, não são suficientes para caracterizá-la. O que se leva em conta, para que se manifeste este crime – mais grave do que o estupro no qual se emprega a violência real ou a grave ameaça –, é obviamente a completa incapacidade de reação enquanto o ato está sendo cometido. Alguém em estado de embriaguez completa, em coma ou, embora consciente, com limitações físicas que lhe impossibilitem repelir a agressão é o objeto de tutela penal; não é o indivíduo pego de surpresa mas plenamente capaz de reação.
2.4) Importunação ofensiva ao pudor
Na análise inicial realizada, o juiz concluiu que os fatos narrados talvez se subsumissem com maior adequação ao tipo do art. 61 do Decreto-lei nº 3.688/41, infração de menor potencial ofensivo consistente em “Importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor”.
Importunar significa causar embaraço, envergonhar. Aqui sim é possível utilizar a expressão constrangimento em seu sentido mais comum, de expor alguém a escárnio, a situação moralmente desconfortável.
O ato de constrangimento deve ser ofensivo ao pudor, ou seja, contra a decência, especialmente de caráter sexual, e só subsiste se cometido em local público ou a que o público tem acesso.
Cotejadas as circunstâncias do ato noticiado com o arcabouço legal em vigor, e considerada a análise já efetuada sobre outras possíveis figuras criminais, parece-nos que a única solução possível é mesmo vincular a conduta à contravenção penal.
Não se pode afirmar que, no plano ideal, esta seja a solução mais adequada possível, pois, se a gravidade do ato não pode ser equiparada à do estupro, tampouco deveria estar adstrita ao baixíssimo (ou mesmo inexistente) rigor a que se submetem as contravenções penais. Surpreender alguém, em pleno transporte público, com atos de masturbação e ejaculação não é algo a ser tratado no mesmo patamar de um beijo súbito na face ou de uma apalpadela sem maiores consequências. É um ato repugnante, asqueroso, que todavia não encontra correspondência mais adequada na lei penal vigente.
Mesmo na hipótese de haver uma tipificação intermediária entre a contravenção penal (aplicável aos atos efetivamente menos graves) e o estupro (o mais grave na esfera do constrangimento sexual), jamais será possível estabelecer taxativamente todas as situações em que incidirá cada uma das figuras penais. Noutras palavras, sempre haverá debates em torno de atos que se encontrem na linha divisória entre os diversos tipos penais porque é simplesmente impossível (e seria mesmo inadequado) ao legislador formar uma lista de atos característicos de cada crime. Como agora, caberá sempre ao aplicador da lei, confrontado com o fato, interpretá-lo à luz da lei vigente para promover a imputação adequada. Ainda que aparentemente injusta, é a lei vigente que deve guiar o aplicador, sendo-lhe vedado, seja qual for o argumento, manipular o ordenamento jurídico a pretexto de promover justiça.