O art. 10 do NCPC contém um princípio importantíssimo, que se convencionou chamar de “não-surpresa”. Eis a redação:
“O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”
Trata-se de consequência lógica e necessária de outro princípio constitucional, o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV da Constituição)Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;, inclusive com reflexos no dever de fundamentação (art. 93, IX, da Constituição)Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: (...) IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;. Explica-se.
O processo é instrumento de manifestação do poder e da vontade estatal, assim como o processo legislativo e administrativo. Ele é condição necessária para que a referida manifestação de vontade e poder (que conhecemos pelo nome de “jurisdição”) seja legítima. É exigência constitucional, que decorre do Estado Democrático de Direito. Como já se afirmou em sede doutrinária, “o processo não pode ser qualquer processo”. Deve ser respeitado o devido processo legal.
E o Código de Processo Civil, aprovado em período democrático – ao contrário do anterior, de 1973 – dá uma nova ênfase ao devido processo legal, exigindo o respeito aos princípios constitucionais durante o processo e no processo. Isso pode ser observado de forma bem clara no art. 1º do CPCArt. 1o O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código..
O juiz ainda conduz o processo. “Ainda” porque hoje se tem a possibilidade de um processo negociado (art. 190)Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade., em respeito ao princípio da autonomia da vontade. Porém quando não houver um processo negociado entre as partes é preciso respeitar o devido processo legal, com todos os princípios e regras previstas no CPC. Na condução do processo hoje em dia o juiz perde o “destaque” que a lei antiga lhe dava, representada de forma simbólica pela colocação da cadeira do juiz, em uma sala de audiências, em um tablado, de modo que ele pudesse ficar acima das partes, representando a superioridade estatal. Essa cadeira “mais alta” não tem nada a ver com um melhor ângulo para o juiz observar as partes, e sim com a autoridade superior naquele local, simbolicamente o processo.
Mas agora o juiz dirige o processo em cooperação com todos os sujeitos do processo (art. 6º)Art. 6o Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.. Há um novo ambiente, cooperativo, que pode ainda levar algum tempo para ser implementado, mas precisa começar já essa mudança.
Um dos reflexos dessa nova postura do magistrado, mais aberta, transparente, cooperativa e democrática é observada no princípio da não-surpresa. Não pode o Juiz surpreender as partes, porque além de ser deselegante dar sustos em uma pessoa distraída, o que se faz eventualmente apenas com as pessoas que nos são mais próximas, dependendo do grau de intimidade, não é um comportamento que se espera do Estado-Juiz. Não há democracia no processo se o Estado surpreende as partes, agindo de forma sorrateira e inadvertida. Não há cooperação assim.
E o que exatamente significa a não-surpresa no processo civil?
Significa que tudo precisa ser debatido ANTES que o juiz decida. Obviamente que há as exceções decorrentes da urgência do caso concreto (parágrafo único do art. 9º do CPC)Art. 9o Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica: I - à tutela provisória de urgência; II - às hipóteses de tutela da evidência previstas no art. 311, incisos II e III; III - à decisão prevista no art. 701., porém são exceções, e assim sendo é preciso conhecer bem a regra: o juiz não pode decidir nada antes que as partes tenham a oportunidade de debater, entre elas e com o Juiz, as questões do processo.
O art. 357 do CPCArt. 357. Não ocorrendo nenhuma das hipóteses deste Capítulo, deverá o juiz, em decisão de saneamento e de organização do processo: I - resolver as questões processuais pendentes, se houver; II - delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos; III - definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373; IV - delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito; V - designar, se necessário, audiência de instrução e julgamento. – que trata do saneamento e da organização do processo – está perfeitamente alinhado com o referido princípio, ao obrigar o Juiz a definir – ANTES da sentença – quais as questões de fato e de direito relevantes para a decisão de mérito. Decisão de mérito essa que hoje deve ser prestigiada (princípio da primazia do julgamento do mérito – arts. 4ºArt. 4o As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa. e 6ºArt. 6o Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva., do CPC).
As questões de fato devem ser definidas antes para que as partes possam sobre elas produzir as suas provas. As questões de direito – que em regra não precisam ser objeto de prova (art. 376 do CPC)Art. 376. A parte que alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário provar-lhe-á o teor e a vigência, se assim o juiz determinar. – precisam ser definidas com antecedência para que possa haver debate (contraditório) sobre elas. É derivação da não-surpresa!
O juiz precisa “abrir a mente”, ou seja, expor às partes ANTES da sentença, as questões de direito consideradas relevantes para que a (justa) decisão de mérito possa ser dada, sem “pegadinhas processuais” que não têm a menor graça. Podem ser engraçadas em programas de televisão, mas não quando o Estado está, via processo, manifestando poder e vontade.
Se o juiz eventualmente, como lamentavelmente tem ocorrido, desrespeitar a não-surpresa, tem-se uma decisão nula, por ofensa a uma regra essencial ao (novo) processo civil.
E essa obrigatoriedade de não pregar peças nas partes faz com que o ambiente processual seja mais cooperativo. Não pode, por exemplo, o Juiz decidir as matérias de ordem pública sem ouvir as partes ANTES da decisão. O fato das questões de ordem pública poderem ser conhecidas de ofício não implica em surpreender as partes. Imaginemos um processo em que a contestação e a réplica já tenham sido apresentadas. Qual o próximo passo? As partes esperam que venha a decisão do saneamento, ou até mesmo a fase criada pela prática forense, chamada de “especifiquem provas”. Não pode assim o Juiz declinar da competência ao argumento de que a incompetência absoluta é matéria de ordem pública e que ele assim podia proceder. É um argumento inclusive autoritário (argumento da autoridade).
Como deve então proceder o juiz? Ora, deve intimar as partes para que elas se manifestem sobre a suposta incompetência absoluta, por ele verificada de ofício. A partir daí as partes irão se manifestar, apresentado seus argumentos a favor ou contra o declínio e o juiz, sem surpresas, decidirá. E ainda deve enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo, arguidos pelas partes, sob pena de nulidade por falta de fundamentação (art. 489, § 1º, IV, do CPC)§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (...) IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;. Esse é o palco ideal de um processo verdadeiramente democrático.
Mas em agindo assim em todas as decisões não haveria uma perda de tempo, violando a garantia constitucional da razoável duração do processo?
Importante deixar claro que não há a promessa do legislador constituinte de um “processo imediato”! O tempo, no processo, é um mal necessário. É preciso tempo para que o processo seja devido, para que as garantias constitucionais sejam respeitadas. Processo imediato é ruim. Processo muito demorado (nossa infeliz realidade) também é ruim. O correto é que o processo deva demorar o tempo que ele precisa demorar, e não há um tempo fixo, porque cada caso é um caso.
Se nós formos a um restaurante e pedirmos um prato de massa ao alho e óleo, ficaremos desconfiados se o garçom trouxer nosso pedido (procedência do pedido) em 1 minuto… Mas também não nos agradaria em nada esperar 3hs pelo prato. O certo é o prato demorar o tempo que precisar para ser servido. Isso é razoável duração do processo: o processo precisa demorar o tempo necessário. E todo tempo “investido” no respeito às garantias processuais constitucionais não pode ser considerado tempo “perdido”, porque faz parte do devido processo legal.
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