O advento da Lei nº 13.432/17, que regulou a profissão de detetive particular, trouxe à baila novamente um debate que se encontrava adormecido: a validade das investigações realizadas por particulares para a deflagração de procedimentos inquisitórios penais (inquérito policial ou procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público), ou, até mesmo, de ações criminais de legitimidade do Ministério Público.
Com a lei, fica claro que o detetive particular poderá realizar somente a atividade de coleta de dados e informações de natureza não-criminal (artigo 2º)Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se detetive particular o profissional que, habitualmente, por conta própria ou na forma de sociedade civil ou empresarial, planeje e execute coleta de dados e informações de natureza não criminal, com conhecimento técnico e utilizando recursos e meios tecnológicos permitidos, visando ao esclarecimento de assuntos de interesse privado do contratante. § 1º Consideram-se sinônimas, para efeito desta Lei, as expressões “detetive particular”, “detetive profissional” e outras que tenham ou venham a ter o mesmo objeto., podendo ainda colaborar com os inquéritos policiais mediante conveniência e oportunidade da autoridade presidente do feito (artigo 5º)Art. 5º O detetive particular pode colaborar com investigação policial em curso, desde que expressamente autorizado pelo contratante. Parágrafo único. O aceite da colaboração ficará a critério do delegado de polícia, que poderá admiti-la ou rejeitá-la a qualquer tempo..
Após refletir sobre o assunto e ler o último artigo publicado aqui no meusitejurídico.com, resolvi fazer um contraponto à tese do meu amigo Rogério Sanches Cunha, que entende configurar o crime de usurpação de função pública a atividade investigativa particular de natureza criminal.
Começarei essa tarefa inglória (discordar do meu mestre da época de concursos), ressaltando que entendo não existir qualquer óbice ao fato de particulares praticarem atos de investigação contra quem quer que seja (Estado ou particulares – pré-candidatos, candidatos, partidos políticos, cabos eleitorais, doadores de campanha etc). No sentido do que defendo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiuHC 90.174/PR, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 10/11/2015, DJe 25/11/2015. que “A seriedade probatória da acusação penal, definida pela certeza da materialidade e indícios de autoria (justa causa) pode provir de elementos probatórios oriundos ou não do inquérito policial, que não é seu suporte exclusivo de justa causa”, motivo pelo qual “admite-se em tese, pois, a persecução criminal por qualquer fonte confiável de prova, estatal ou mesmo particular, nada impedindo seja essa fonte de prova provinda do órgão Ministerial.”
Pois bem, estabelecida essa premissa, dividirei a análise, para fins didáticos, tendo em conta quem seja o investigado.
Se o investigado for um agente público no exercício da função, um ente político, uma entidade pública, ou até mesmo uma entidade privada que recebe recursos públicos, registro que a investigação ampla é um direito assegurado ao cidadão pela Constituição Federal de 1988, que, dentre outros mecanismos, estabeleceu:
1 – O direito fundamental de liberdade de informação (artigo 5º, XXXIII), segundo o qual “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”, cuja regulamentação legislativa (Lei nº 12.527/11) foi taxativa no sentido de que “são vedadas quaisquer exigências relativas aos motivos determinantes da solicitação de informações de interesse público” (vide artigo 10, § 3º) e que a recusa da informação solicitada configura responsabilidade administrativa punível com, no mínimo suspensão, e ato de improbidade administrativa (vide artigo 32);
2 – O direito fundamental do cidadão em ajuizar a ação popular contra atos lesivos ao patrimônio público ou a moralidade administrativa (artigo 5º, LXXIII)LXXIII - qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;, tendo, para tanto, a lei de regência (Lei nº 4717/65) assegurado o direito do cidadão de requerer “as certidões e informações que julgar necessárias, bastando para isso indicar a finalidade das mesmas” (vide artigo 1º, §4º), cujo descumprimento configura ato de improbidade administrativa (artigo 11, II, da Lei nº 8429/92) Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente: (...) II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;;
3 – O direito fundamental da ação penal privada subsidiária da pública nos casos de crime com ação pública, se esta não for intentada no prazo legal por quem de direito (artigo 5º, LIX)LIX - será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal;.
Trata-se, mutatis mutandis, da aplicação da teoria dos poderes implícitos, que foi referendada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para legitimar os atos investigatórios realizados diretamente pelo Ministério Público na seara criminal. Ora, se o particular/cidadão dispõe do fim (possibilidade de ajuizamento de ações), não é lícito lhe inibir os meios (atividade investigativa).
Nessa mesma linha de pensamento, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já referendou a possibilidade da ação penal privada para os crimes eleitorais, deixando transparecer, a priori, não haver vedação à atividade investigativa prévia pelo particular também na área eleitoral (RECURSO ESPECIAL ELEITORAL nº 21295, Acórdão nº 21295 de 14/08/2003, Relator(a) Min. FERNANDO NEVES DA SILVA, Publicação: DJ – Diário de Justiça, Volume 1, Data 17/10/2003, Página 131 RJTSE – Revista de Jurisprudência do TSE, Volume 14, Tomo 4, Página 227).
Pois bem, esclarecida a situação inicial, passamos a analisar o fato da investigação ter como alvo um particular.
Entendo que, diante do direito fundamental do manejo da ação penal privada subsidiária da pública e da teoria dos poderes implícitosLembre-se que os partidos políticos, as coligações e os candidatos possuem legitimidade ativa para a quase totalidade das ações eleitorais., é plenamente possível a atividade investigativa realizada/promovida por um particular (pessoa física/jurídica) contra outro sujeito de igual categoria.
É claro que, nesse caso, a ação encontra-se limitada pelas mais variadas garantias constitucionais e legais asseguradas em prol dos cidadãos, não sendo, porém, vedada a busca e/ou arrecadação de elementos probatórios por pessoas alheias aos órgãos responsáveis pelas investigações oficiais. O que está proibido é a utilização de meio coativos ou invasivos nessa atividade, como a realização de notificações, conduções para depoimentos, etc. Qual a ilegalidade na gravação de vários depoimentos espontâneos sobre um crime de ação pública que sejam entregues ao Ministério Público?
Nesse tocante, parece-me incidir a teoria da eficácia horizontal (privada ou externa) dos direitos fundamentas, já aplicada em situações muito menos gravosas pelo Supremo Tribunal Federal (STF)Eis o trecho do Acórdão que se encaixa perfeitamente a tese ora proposta: “As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados”. (RE 201819, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11/10/2005, DJ 27-10-2006 PP-00064 EMENT VOL-02253-04 PP-00577 RTJ VOL-00209-02 PP-00821)., quiçá, então, em atividade que possui nítida tendência a colidir com as garantidas fundamentais asseguradas a todos pelo Texto Supremo.
Outro exemplo bastante elucidativo da aplicação dessa teoria dá-se no caso das gravações ambientais realizadas por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro e em ambiente privado. De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), fixada em decisão com repercussão geral, tal atividade é lícita (RE 583937 QO-RG, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, julgado em 19/11/2009). Será, então, que uma gravação de um ato de corrupção não seria válido se, junto com ele, a pessoa colhesse em vídeo os depoimentos dos corruptores ou apresentasse os dados bancários espontaneamente fornecidos? Pensamos que sim!
Além disso, cumpre registrar que, seguindo essa tendência, o Novo Código de Processo Civil (artigo 384)Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião. Parágrafo único. Dados representados por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos poderão constar da ata notarial., legitima a investigação particular e até permite que seja dada fé pública a atos investigativos praticados por agentes não estatais, ao dispor sobre a ata notarial, que é o instrumento apto a atestar ou documentar a existência e o modo de existir de algum fato, inclusive, prevendo a possibilidade de nela constar as informações apresentadas por imagem ou som gravados em arquivos eletrônicos.
Portanto, diante do exposto, entendo que são plenamente válidas as investigações realizadas por particulares que respeitem as garantias constitucionais e legais dos investigados, devendo-se ter como inconstitucional a expressão “não-criminais” constante do artigo 1º da Lei nº 13.432/17.
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