Exortado pela atenta colaboração de alguns seguidores (em especial de Gustavo Casagrande Canheu, Gê Belique, Clarisse Perez, Erica Roberts Serra, M. Goreth Gonçalves, Marina Matoso, Flávio Medrado, Naiana Lourenço, Maraisa Beraldo Sanches, Alise Formenti, Maria Fernanda Meyer Dalmaz, Andrea Oliveira, Alessandra Lapoente, a quem agradeço, sinceramente, a atenção e competência que me dispensaram), republico o texto para retificar um importante trecho, relativo à escolha da naturalidade.
Foi publicada no Diário Oficial da União do dia 27 de abril, a Medida Provisória 776, impondo alterações na Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73), notadamente no que tange ao registro civil de nascimento de filhos menores.
De acordo com a nova regulamentação da matéria, os pais (em conjunto ou separadamente) podem escolher, agora, realizar o registro do nascimento de filhos menores no local do parto ou na própria residência dos genitores, quando distintas. Afasta-se, assim, a norma-regra que impunha o registro no local do nascimento.
A norma já está em vigor, obrigando os cartórios a proceder ao registro de nascimento quando, malgrado tendo nascido em outra cidade, os pais (ou, pelo menos, um deles) estão domiciliados naquela localidade. Havendo indevida recusa do oficial do cartório, deve ser suscitado o procedimento administrativo de dívida (art. 198, LRP)Art. 198 - Havendo exigência a ser satisfeita, o oficial indicá-la-á por escrito. Não se conformando o apresentante com a exigência do oficial, ou não a podendo satisfazer, será o título, a seu requerimento e com a declaração de dúvida, remetido ao juízo competente para dirimí-la, obedecendo-se ao seguinte: I - no Protocolo, anotará o oficial, à margem da prenotação, a ocorrência da dúvida; Il - após certificar, no título, a prenotação e a suscitação da dúvida, rubricará o oficial todas as suas folhas; III - em seguida, o oficial dará ciência dos termos da dúvida ao apresentante, fornecendo-lhe cópia da suscitação e notificando-o para impugná-la, perante o juízo competente, no prazo de 15 (quinze) dias; IV - certificado o cumprimento do disposto no item anterior, remeterse-ão ao juízo competente, mediante carga, as razões da dúvida, acompanhadas do título. ao juiz de registros públicos, pelo próprio notário ou pelo particular interessado (a chamada “dúvida inversa”), para que seja dirimida por sentença.
Para muito além da discussão sobre a duvidosa presença dos pressupostos constitucionais das Medidas Provisórias (relevância e urgência), o ato normativo pretende facilitar a realização de registros de nascimentos, contribuindo para evitar que infantes permaneçam longos períodos sem o registro de nascimento por dificuldades de seus pais em fazê-lo, quando o parto ocorreu em município distinto da residência – por questões de assistência hospitalar, ilustrativamente, uma vez que muitos dos municípios brasileiros, lamentavelmente, não dispõem de maternidades ou hospitais. Serve, outrossim, como um contributo para diminuição das ações de investigação de paternidade quando um dos pais não poderia se deslocar para realizar o registro civil em local diverso.
Mas não é só. A possibilidade de registo no local de residência também contribuirá para ações e políticas públicas de controle epidemiológico e mapeamento de dados da saúde pública dos brasileiros.
De todo modo, urge uma importante advertência: a MP aludida, ao conferir nova redação ao Par. 4o do art. 54 da LRP, termina por suavizar, mitigar, o princípio da veracidade (que norteia os registros públicos, para conferir segurança jurídica). É que se autoriza aos pais escolher a naturalidade do filho no município do nascimento ou no município da residência da mãe do registrando. Assim, constará como local do nascimento o lugar em que efetivamente ocorreu o parto ou o local de domicílio da genitora.
Enfim, foi criada, por MP (sem respeito ao processo legislativo), a regra da NATURALIDADE AFETIVA!
Acresça-se, inclusive, que o regramento se aplica ao filho adotivo, admitida a fixação de s ua naturalidade no município de residência do adotante na data do registro, caso o procedimento tenha se iniciado antes do registro de nascimento (Par. 5o da nova dicção do art. 54, LRP).
Também merece lembrança que alguns estados brasileiros (como Pernambuco, por exemplo) permitem que o registro espontâneo de paternidade seja feito pelo pai biológico ou pelo pai socioafetivo. Em casos tais, os pais (biológicos ou afetivos) podem registar a prole em seu local de domicílio, não precisando se deslocar até o lugar do nascimento, garantindo ao menor o exercício de cidadania. Por igual, podem optar pela naturalidade no lugar do nascimento ou da residência da mãe.
Parece-me necessária uma discussão acerca de eventual afronta à isonomia entre homem e mulher, na medida em que só permite a fixação de domicílio da mãe, ignorando que o pai pode, também, ter domicílio distinto do lugar do parto. E mais: esse pai terá, por força da regra geral do sistema (CC 1.583 e 1.584) a guarda compartilhada do menor. Nesse caso, pode, seguramente, o juiz autorizar o registro da naturalidade no domicílio do pai.
Entrementes, se os pais possuirem domicílios distintos do local do parto, indago: seria possível uma pluralidade de naturalidades? O filho poderia ter a naturalidade de casa local em que residem os pais – que, repita-se à exaustão, estão no exercício do poder familiar?
Por derradeiro, já prospecto uma situação que tende a se mostrar mais frequente em nosso país, por conta do influxo de imigrantes, como no exemplo dos haitianos: é possível aplicar a nova regra também em casos de crianças nascidas fora do Brasil, permitindo o registro em nosso território? Seria possível, também, uma NACIONALIDADE AFETIVA, usando as regras do nível Diploma Legal por analogia? Aliás, o já saudoso ZYGMUNT BAUMAN, em um de seus últimos escritos (Estranhos à nossa porta), tratava da questão imigratória pelo prisma antropológico, observando a necessidade de proteção das pessoas humanas envolvidas, garantindo um mínimo de direitos. Dentre eles, poder-se-ia garantir o direito ao registro de nascimento para quem ainda não o foi? E em se tratando de crianças ou adolescentes que imigram sozinhos, sem os pais (que, não raro, estão em local incerto) seria possível encaminhar para registro em cartório e, em seguida, para a vara da infância e juventude para fins de inclusão no cadastro de adoção? Os genitores estrangeiros precisariam ser citados?
Temas para uma reflexão cuidadosa…
Malgrado eventuais pontos dignos de aplausos, só não me parece que o tema pudesse ser tratado por meio de medida provisória, exigindo o respeito ao processo legislativo, como mecanismo de cidadania!
Para se aprofundar, recomendamos:
Curso: Carreira Jurídica (mód. I e II)
Livro: CURSO DE DIREITO CIVIL – V.1 – PARTE GERAL E LINDB (2017).